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Capítulo 8- Medo

Um único soco e o homem que dividia o ringue com ele foi arremessado ao chão, de onde não voltou a levantar. Até minha alma recordou a sensação de ser acertado por aqueles punhos. Tentei controlar meu corpo, mas ainda assim o senti tremer. Podia jurar ter ouvido o som que o golpe dele fez. O ''crac'' do crânio sendo quebrado.

Nem mesmo o público soube como reagir durante bons segundos. Era surreal demais. E quando o espanto se foi a explosão da plateia ergueu-se sobre até mesmo pensamentos.

Quando cheguei em casa a cena ainda me perturbava. E no escuro do quarto o som do golpe soava mais alto. Mais alto. Maliciosamente alto. Como se um demônio o houvesse gravado e posto para tocar.

Depois de uns minutos levantei da poltrona e fui tomar banho. Ascendi as luzes antes de entrar no banheiro na esperança de afugentar aquele ruído. Mas ao invés de fazer sumir fiz surgir. Num canto da sala a figura sentada abriu os olhos sonolentamente e ao me ver estendeu um pequeno sorriso. Os problemas não tinham acabado por aquela vez.

A rotina de treinos reiniciou ao nascer do sol pairando sobre toda a tensão extra posta acima dos meus ombros. Consegui começar ela mesmo com o foco oscilando entre a determinação rígida, a dúvida e o torpor do cansaço. A lateral do meu rosto inchara, alguns cortes nessa área ainda ardiam e o estômago regurgitava uma reclamação a cada passo. Antes de encerrar a corrida me peguei caminhando docilmente. Não devia sequer ter cogitada sair para treinar após uma luta, mas depois daquela noite precisava arejar a cabeça. As palavras, os acordos e o perigo, permaneciam abaixo de cada pensamento.

A bateria de exercícios tornou-se uma simples volta a passos lentos pela rota que fazia ao correr. Dobrei o percurso para terminar na porta do prédio onde morava e forçar-me um pouco mais.

Mas não estava funcionando. Ainda me perguntava se ter aceitado ajudar aquele sujeito que invadiu minha casa durante a madrugada contra o criminoso que comanda a cidade não iria acabar em sangue e carnificina.

Juca, o porteiro em serviço na hora, disse que alguém queria falar comigo e que aguardava no refeitório. Assenti e percebi a vista rodar por um instante. Não havia dormido depois da luta. Entrei no edifício e segui até o local mencionado. Ela sentava numa mesa ao fundo e viu-me no instante que pisei ali. Haviam poucas pessoas, era tarde para um café da manhã e um tanto cedo para almoçar. Então peguei dois sucos e uma garrafa d'água e sentei-me junto a Fabricia. O jornal em cima da mesa me deu algumas respostas de antemão. E tornou minha mente ainda mais tensa.

— Eu o conheci vagamente, mas foi um golpe duro. - disse antes que ela começasse. - Chorei por ele e fiz algumas coisas estúpidas para tentar me livrar de algo assim.

Mentira.

— De ser morto? - perguntou. Estava com uma expressão estranha, uma mistura de preocupação e medo escondidos sob calma e serenidade. Ela era péssima nisso de esconder os sentimentos.

— Não, de ver mais conhecidos mortos. Se você ou o velho ou mais algum cara da academia morresse eu provavelmente acabaria perdendo a razão e talvez até morrendo também. Esse garoto não tinha que morrer. - sabia estar falando demais, mas precisava desabafar nem que fosse aquele pouco. E sem Mariana a pessoa a minha frente era tudo o que tinha e mais do que merecia.

— Eu sei... os ingressos, recebi alguns do homem de Boneco que costuma ficar no bar. Está envolvido com ele e o garoto morto foi um aviso para que não o desobedessece, certo?

Como sempre soube, ela era uma mulher esperta.

— Sim. Quando acabar essas lutas espero nunca mais ver esse cara. - ''e só para garantir preciso vencer e para vencer: treinar, não há certeza na outra alternativa ainda'' pensei recobrando a determinação para continuar. - Obrigado pela visita, agora tenho que ir.

Me levantei da cadeira, mas Fabricia não pareceu ter acabado.

— E antes, antes da luta, por que tinha todos aqueles ferimentos? - ela também ergueu-se do assento. - Você começou e mesmo quando eu te disse para parar... - a vi baixar o olhar e esfregar as íris. - Ao menos parou depois daquele dia lá em casa?

Novamente senti que havia feito as escolhas erradas como da vez que brinquei com o fogão e acabei órfão ou daquela que escolhi evitar Mariana quando ela recusou namorar comigo. De repente eu percebi que estava realmente cansado, a mente e o corpo lentos e pesados demais para manter-se consciente ou mover-se, e triste. Queria afundar meu rosto na barriga dela e deixar que as lágrimas corressem livres.

— No dia que ficou bêbado e brigou com um capanga do chefão dessa cidade eu fiquei assustada, pensei que iam te matar! Mas não aconteceu e as coisas ficaram tranquilas por um tempo até você sair por aí batendo em mais delinquentes! Que droga, a cadeia não bastou para você!? Por que, por que...

Ela começou a soluçar.

— Desculpa. - disse e fui embora sem olhá-la uma segunda vez ou aguardar resposta.

Mas a mão dela agarrou meu ombro. Virei-me para fitá-la e notei um lampejo de lágrimas antes de ser pego na investida que fez. O choque impediu meu corpo de reagir e Fabricia guiou o movimento. Foi estranho fazer aquilo com outra que não Mariana. Um beijo.

Quando nos separamos nossa íris se encotraram. As dela pareciam esperançosas, brilhantes e prestes a partir. Frágeis. Eu estava atordoado demais para dizer qualquer coisa correta a alguém com aquele olhar. Então Fabricia correu enquanto minha boca tentava relembrar como abrir.

— Não vai querer o suco? - alguém pareceu perguntar, mas andava depressa e com pensamentos demais.

Subi as escadas até meu quarto e joguei-me sobre os lençóis. Em parte suado pela corrida que quase completei, em parte suado por causa do beijo. Podia ouví-la reclamando calmamente do cheiro ao qual estava sujeitando nossa cama, Mariana não gostava de fedor onde dormia. Quase ri quando o pensamento surgiu no meio da zona na minha cabeça. E da culpa, sim, a pinicante sensação de que o mundo ainda seria meio rosa se não tivesse feito isso ou aquilo. Enfiei o rosto na almofada e só o tirei um bom tempo depois. ''Ele morreu, o garoto morreu! Tudo porque achou uma boa ideia desafiar a porra dum chefe de gangue!'' despertei com um estranho ímpeto de sair dali, as pernas ergueram-me e os pés carregaram meu corpo de volta à rua. Corri durante horas até cair ralando o joelho no chão áspero. Minha boca seca parecia clamar por água.

Uma cortina negra cobria os céus, tinha chegado o momento de pôr em ação o plano daquele homem. Tentei levantar. Despenquei apenas não sendo afligido num encontro com o concreto pela rápida reação das mãos. Os membros inferiores tremiam e o esforço trazia à tona pequenos espasmos. Teria ficado paraplégico? A pergunta foi tão idiota que tive de rir. Ri e ri até lágrimas irromperem dos olhos e desejar esquecer toda e qualquer obrigação. Não tinha forças para lidar com criminosos, corações partidos e pesar juntos como um só. Quis ser aquele cujo corpo havia sido encontrado despido de vida de frente a biblioteca, terio sido menos complicado assim.

— Ei, o que faz aí no chão?- a voz pairou sobre mim, estranha e familiar ao mesmo tempo.

Estava tarde no momento em que bati na porta do casarão da rua dos Ladrões, na parte realmente pobre da cidade. O edifício cheirava e exibia prosperidade para deixar claro sua soberania perante todo o resto. Não queria ser confundida com lixo. Feita com tijolos negros, com parte central alta e robusta pincelada de janelas coloridas de vermelho, azul e amarelo, tendo nas laterais torres de topo triangular erguendo-se tal qual dedos tentando alcançar as nuvens. Na dianteira um jardim modesto de piso revestido de grama e enfeitado com duas árvores era protegido por uma pequena cerca de barras de ferro. Tive de recordar meus motivos duramente para superar o esplendor sombrio da propriedade. Tinha de tirar quantos sentinelas pudesse dali, por quantas horas fosse capaz.

Me dirigi a um dos homens na portinhola do cercado. Os óculos escuros pendiam na face mesmo a noite e o mesmo se podia afirmar do terno sobre a pele.

— Preciso falar com seu chefe.

— E eu preciso de uma boceta.

Por um instante o ar noturno soou gélido e as pernas ficaram corroborando a vontade de dar meia volta.

— É sobre as lutas, detestaria que seu patrão fosse pego de surpresa então vim contar algo crucial. - falei tentando imitar a personagem de uma série onde três amigas se envolvem no mundo do crime. - Mas não importa, posso apenas dizer que um de seus guardas precisava de uma boceta se algo der errado. - agora ele desceu um pouco o queixo, podia quase enxergar as engrenagens trabalhando por trás das lentes negras.

Por fim, ele disse que iria pedir permissão e sumiu dentro da enorme construção engolido pelas trevas que a compunham. Suspirei me perguntando se ainda não haviam descoberto os celulares naquela organização criminosa. O outro guarda continuava encarando a noite e sequer parecia ligar para minha presença, a face era banhada pelo laranja do poste e a boca pendia levemente aberta.

Minutos, horas, não soube dizer, passara tanto tempo olhando o tênue movimento da rua, os pobres e mal vestidos, que eternidade não seria fora de questão para o que levou até a resposta positiva voltar. Fui guiado casarão a dentro entre o salão dourado, com acentos similares ao de igrejas, e escadarias e corredores incrustados de telas que vê-se a venda nas ruas. Praias, céu, a praça e pessoas que nunca vi, eram as imagens mais comuns. Quando chegamos no único lugar que não remetia a metal precioso, uma ala feita de madeira marrom, uma porta de carvalho num tom escuro me foi indicada. Estava entreaberta e uma faixa de luz branca escapava para fora, esmagando a amarela do corredor como se fosse simples escuridão. Um leve tremor percorreu meu pescoço.

— Entre. - dissera-me o guia rudemente.

Obedeci ignorando o pulsar acelerado no peito. Não havia motivo para ele.

Meus olhos semicerraram-se tentando enxergar sob a forte claridade. Vislumbrei a escrivaninha, as estantes de livro e os jarros com plantas de caule verde e grandes folhas. Mas era difícil como desviar de um jab particularmente veloz.

— Sente-se e me conte. - a voz macia, firme e zombeteira pairou ali dentro. Retesei-me sobre os pés e percebi um pouco de suor escorrer pelo pescoço.

Andei até a mesa, quando bati numa cadeira praguejei. A frente vi cintilar os cabelos dourados, esbranquiçados devido a luz, e o negro das íris ainda mais escuro. Parecia quase uma divindade envolto naquele mar alvo. Meus punhos fecharam com força. Boneco tinha um sorriso fino e arrogante na face. Do quê você está rindo?

— Você parece horrível sob essa luz. - ele soltou após uns instantes de observação mútua. Queria dizer o mesmo, mas a prova do contrário me fitava com um olhar atento e fixo.

— Se parece exatamente com o que não é, algo incrível. - retruquei e ele riu. Tive de admitir que fora uma resposta idiota.

— Devo encarar como elogio ou como tentativa de ofensa? - e riu novamente, um som baixo e gracioso. - Bem, diga, o que veio buscar?

Sentei-me na cadeira, respirei profundamente e o encarei. A escuridão nas fendas de seus olhos era assustadoramente fascinante.

— Sparring, preciso de quantos homens conseguir para agora e um ringue onde praticar. - o pedido soara menos tolo na minha cabeça, horas antes, quando pensara nele.

As pálpebras de Boneco apertaram as íris e os lábios tornaram-se uma linha reta no rosto de pele caucasiana. Senti um frio estranho soprar no meu estômago fazendo-o se agitar. Aquele olhar afiado, o que será que significava ali, diante do pedido tão suspeito? Quase disse que não precisava, que fora só um devaneio bobo, mas a boca dele agiu primeiro.

— Uma súplica incomum, estou surpreso. - cada palavra fazia meu espírito encolher mais. - Mas não. Sou familiar as artes marciais e obviamente conheço a necessidade de parceiros com que praticar...

Suspirei sem querer. O olhar dele brilhou e um tênue sorriso voltou a brincar na sua face.

— Porém, ''agora'' e com esses cortes e inchaço, não esquecendo do sutil traço de desconforto que demonstrou ao andar até essa mesa? Não quero supor que me subestima, mas não achou que eu suspeitaria?

Estava sem saída e isso fez meu sangue ferver. Ser pressionado por um sujeito que ordena assassinatos e vandalismo? Não podia acabar sem que conseguisse vencer alguém como ele.

— Pense o que quiser e me atenda se quiser, tive ideias de como vencer o mais forte desse torneio e preciso testá-las antes de serem esquecidas, isso é tudo. - suor frio escapou pelas costas do pescoço junto a um desejo de fugir dali. Falar por instinto gerava bastante tensão emocional.

Ele me observou, forçando-me a manter a compostura. Aquelas íris pareciam cavar através das minhas buscando a real intenção por trás do que acabara de dizer. E com as mãos unidas à frente dos lábios sua capacidade de descobrir parecia aumentar. Então, de repente, encostou-se na cadeira e fechou os olhos aliviando a expressão facial.

— Muito bem, precisava mesmo sair para respirar. - falou. - Farei as ligações e reunirei cerca de oitenta por cento dos homens aqui, se fizer a gentileza de aguardar lá fora.

Quase não pude segurar a face no mesmo lugar. Ele não mandou me matar, nem mesmo ordenou que fosse embora apesar de suas palavras... simplesmente não compreendi o que estava ocorrendo. No entanto apenas saí sem proferir nenhuma outra coisa. O lado de fora me fez hesitar, eram as mesmas paredes de marrom madeira com quadros de artistas de rua, mas soava mais escuro do que lembrava. Faltavam detalhes, brilho e clareza. Me senti estranhamente perturbado com aquilo.

Não tardou a ser abordado por um guarda, que chegou e pôs-se na minha frente, quase tocando na parede oposta. Sua boca não pronunciou palavra e sequer poderia ter a certeza de que sob os óculos negros as íris fitavam a mim e não a porta ligeiramente a direita. Finquei os olhos num ponto qualquer do revestimento de madeira e voltei-me para dentro. Repassei a cena mentalmente tentando descobrir o que houve. Boneco estava num raciocínio denso, minha desculpa fora porca e até suspirei aliviado, o resultado não faz sentido, deveria estar sendo enxotado ou preso numa masmorra qualquer. Mas ao invés disso estou concluindo o objetivo. Precisava descobrir o fator que provocou aquela incoerência, porém fazê-lo seria um problema. Não podia perguntar, não sabia o que ou onde procurar, não tinha opções diante de mim para achar a resposta.

— Está tudo pronto, vamos indo. - a voz fez com que meus olhos abrissem-se num espasmo, voltando a notar os arredores. Estava ali, de volta ao aspecto mortal, Boneco. — Espero que possa mostrar algo divertido.

O sorriso dele, cheio de arrogância e paz, me fazia um estranho calafrio na espinha, mas o segui quando pediu que o fizesse. Cada passo temendo emaranhar-me no fio de uma armadilha. 

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