XV. Quando o Céu Rasga e a Terra Grita.
O silêncio da noite foi subitamente quebrado pelo som de uma batida pesada na porta da biblioteca. Getsu, que estava deitado sobre um dos colchões, ergueu-se de um salto, os olhos ainda meio fechados pela sonolência. Monique, com um taco de baseball em mãos, olhou para a porta com desconfiança.
- Quem diabos bate a essa hora? - murmurou, já se levantando, os olhos atentos ao redor.
Bob, com um bocejo prolongado, tropeçou para a frente, ainda mais curioso que os outros dois. Alagneb, que tinha as costas apoiadas contra uma das estantes, manteve-se em silêncio, observando com seu olhar penetrante.
- Vou abrir - disse Eliza, levantando-se calmamente e indo até a porta. Os outros seguiram-na com os olhos.
Quando abriu a porta, o rosto de alguém familiar apareceu no vão. Era Alexander Moreira, com uma expressão grave e os olhos vermelhos, como se estivesse exausto. Ele segurava um tablet na mão e um celular no outro.
- Preciso que vocês saiam agora - disse Alexander com voz firme, quase cortante.
Todos se aproximaram da porta, olhares atentos.
- O que é? - Monique perguntou, os braços cruzados sobre o peito. - Outra criatura de lodo?
- Pior - respondeu Alexander, entrando na biblioteca e fechando a porta atrás dele. Ele se sentou na mesa do café, ligando o tablet para mostrar imagens e dados. - Estamos enfrentando múltiplas anomalias. Criaturas de lodo surgindo em diferentes pontos da cidade, e não é só isso. Elas estão ficando cada vez mais agressivas.
Bob se aproximou, curioso.
- Como assim agressivas? Elas estão atacando pessoas?
Alexander balançou a cabeça, deslizando os dedos pelo tablet.
- Sim, não só atacando pessoas. Elas estão se agrupando, criando até armadilhas, como se estivessem sendo comandadas por alguma inteligência. É quase como se estivessem aprendendo.
- Caramba - murmurou Getsu, franzindo a testa. - E quem diabos está fazendo isso?
- Essa é a pergunta do milhão - respondeu Alexander, inclinando-se para mostrar uma imagem em seu tablet. A cidade estava coberta por um manto de escuridão, como uma nuvem de chuva pesada pairando sobre as ruas. As anomalias eram claramente visíveis, cobertas por aquele lodo negro que se movia como água espessa. - Estou passando por todos os dados que conseguimos, mas nada faz sentido ainda.
- Eles começaram a aparecer do nada? - Akainu perguntou, curiosa.
Alexander assentiu.
- Parece que sim. Um momento estavam normais, no outro, surgiram essas criaturas por toda parte. E o mais estranho é que são diferentes das anteriores - ele deslizou para frente um vídeo onde as criaturas formavam padrões complicados, como se estivessem dançando. - Elas não estão só atacando, estão se comunicando de alguma forma.
Monique se aproximou, examinando os vídeos e imagens com atenção.
- Essas anomalias são novas? Ou já estavam aqui?
- Boa pergunta - Alexander respondeu. - Não conseguimos rastrear o início disso. Eu estava tentando identificar o ponto de origem quando esses vídeos começaram a aparecer. Agora tudo faz sentido.
Getsu inclinou-se para frente, um olhar desconfiado em seus olhos.
- Você disse "vídeos". Quantos pontos de surgimento temos? Quantos vídeos?
Alexander pausou por um momento antes de responder.
- No mínimo cinco pontos diferentes, com diferentes tipos de criaturas. Só que todas elas estão conectadas de alguma maneira. Eu... - Ele hesitou, uma carranca aparecendo em sua expressão. - Eu tenho um palpite de onde essa confusão toda começou.
- Onde? - perguntou Bob, ansioso.
- Em Uxmal. - Alexander apontou para a tela de seu tablet, onde uma imagem capturava o evento no centro da cidade. - É onde está começando.
- Certo, certo. Mas estamos preparados para isso? - Monique perguntou, cruzando os braços.
Alexander passou as mãos pelo cabelo, como se estivesse pensando rápido.
- Não, não estamos. É por isso que precisam sair agora.
- Não vamos sair - respondeu Monique com uma certeza que surpreendeu até ela mesma. - Precisamos ficar e ajudar as pessoas. Não posso simplesmente deixar a cidade ser engolida por essas coisas.
- Você não está entendendo. - disse Alexander, sereno. - Não dá para ficar. Essas criaturas estão se multiplicando mais rápido do que qualquer coisa que já vi. Elas têm um propósito que ainda não conseguimos desvendar, mas está muito além do que vocês podem enfrentar sozinhos.
- Nós não estamos sozinhos - Akainu falou, sua voz um pouco mais firme. - Temos você, Alexander. E temos Eliza, que sabe mais sobre magia e outras coisas do que qualquer um de nós.
Alexander olhou para Eliza, como se esperasse uma confirmação. Ela parecia concentrada, os olhos fixos no tablet.
- Eu posso tentar - disse Eliza, finalmente. - Mas precisamos de tempo. E Uxmal está prestes a se tornar o epicentro dessas anomalias.
Bob, ao lado de Getsu, coçou o queixo, pensativo.
- O que você quer que a gente faça?
Alexander suspirou, passando os dedos pela tela mais uma vez.
- Entrem nessa confusão e tentem direcionar essas criaturas.
- Como assim direcionar? - Monique perguntou, franzindo a testa. - Elas não estão indo para onde querem?
- Não - respondeu Alexander, balançando a cabeça. - Elas estão seguindo padrões, como se estivessem sendo guiadas por alguma força externa. Se conseguirmos interromper esse padrão, talvez possamos descobrir a origem dessa inteligência.
- E o que há de errado em matá-las? - Getsu perguntou, irritado. - Não seria mais fácil?
- É como cortar a cabeça de uma hidra - respondeu Alexander, sem hesitação. - Você corta uma e duas novas surgem no lugar.
Todos assentiram, com as expressões focadas.
- Estamos prontos - Akainu afirmou, enquanto os outros concordavam silenciosamente.
- Boa sorte - disse Alexander, levantando-se e pegando seu tablet. - É melhor vocês começarem logo. Cada minuto conta.
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Corpos humanos, despedaçados e cobertos pela substância negra e viscosa, jaziam espalhados pelas ruas. Alguns ainda agonizavam, seus gritos de dor e desespero ecoando pelos becos e avenidas. O ar estava impregnado de um cheiro pútrido, uma mistura nauseante de sangue, carne em decomposição e o odor químico do lodo. Pequenos riachos escuros corriam pelas calçadas, misturando o líquido grotesco ao sangue que se acumulava em poças espessas.
As criaturas não apenas matavam; elas pareciam se deleitar com o sofrimento. Em algumas esquinas, famílias inteiras foram cercadas, seus corpos usados como iscas para atrair mais vítimas. Outras vezes, as criaturas se moviam como uma onda devastadora, invadindo residências e estabelecimentos, arrastando pessoas para o abismo líquido que se formava sob seus pés.
Nos poucos momentos de calmaria, era possível ouvir o som gutural das criaturas. Elas não rugiam como animais, mas emitiam uma série de estalos e murmúrios abafados, como uma língua primitiva e inumana. Era um som que provocava calafrios nos sobreviventes, carregado de algo que ia além da violência física: um ódio profundo, quase ancestral.
Os pontos mais afetados da cidade se tornaram zonas de guerra. Carros em chamas formavam barricadas improvisadas, enquanto pequenos grupos de sobreviventes tentavam resistir, armados com o que encontravam. Mas a resistência parecia inútil; o lodo consumia tudo, enfraquecendo os materiais mais resistentes e transformando objetos sólidos em cinzas escuras.
Enquanto isso, a cidade ecoava com sons de destruição. Vidraças estilhaçavam, paredes ruíam, e o choro desesperado dos sobreviventes era rapidamente silenciado pelo avanço inexorável das criaturas. O caos era absoluto, uma cena de pesadelo que parecia arrancada das páginas de um apocalipse escrito por mãos sanguinárias.
A visão era particularmente aterradora. Um grupo de criaturas havia se reunido ao redor de um monumento de pedra, que agora estava completamente coberto pela substância negra. Elas pareciam executar um tipo de ritual, seus corpos se movendo em padrões precisos, como uma dança. Os poucos que ousaram observar descreveram um pulsar sombrio que emanava do centro do grupo, como se o monumento estivesse vivo.
Um deles pulou sobre um humano e arrancou pedaços de sua face com uma mordida brutal. O grito da vítima foi abafado pelo som de sua própria carne sendo mastigada. Outro foi empalado pelas garras afiadas de seu oponente, seus olhos revirando antes de cair morto no chão.
No meio do massacre, uma das criaturas conseguiu arrancar um braço de uma de suas vítimas e, em um acesso de raiva cega, começou a espancá-la com seu próprio membro, os golpes sendo acompanhados por estalos nauseantes de ossos se partindo.
No caos crescente que assolava, nem mesmo os aliados conseguiam manter sua unidade. A tensão e o desespero, amplificados pela influência obscura que emanava, corroíam laços de confiança e camaradagem entre as criaturas. No calor da luta, amigos e companheiros começaram a se voltar uns contra os outros, como se fossem dominados por uma fome insaciável e irracional.
Os olhos antes repletos de determinação agora brilhavam com um estranho frenesi, enquanto vozes outrora uníssonas se transformavam em gritos de discórdia e raiva. Não era apenas a ameaça externa que destruía a cidade, mas uma corrupção interna que fazia até os mais fiéis se devorarem, física e emocionalmente.
abriu sua boca grotescamente larga e soltou uma língua preta e viscosa. Como um chicote, ela envolveu o pescoço do companheiro e o puxou com força. Garras arranharam desesperadamente o chão enquanto era arrastado, mas ele não conseguiu escapar.
Getsu, ainda paralisado diante da visão, sentiu o sangue gelar. Ele não conseguia desviar o olhar do amontoado de carne e lodo que se contorcia na rua, iluminado por uma luz piscante de um poste danificado. Suas mãos tremiam, e sua respiração ficou pesada.
- Puta merda... - murmurou ele, baixo, mas o suficiente para que os outros ouvissem.
Monique, que estava logo atrás dele, apertando com força o taco de baseball que segurava, deu um passo à frente e bateu levemente no ombro de Getsu.
- Ei, foco! Não temos tempo pra travar agora! - disse, com a voz séria, embora um traço de nervosismo a traísse.
- Você tá vendo o mesmo que eu? -Getsu respondeu, a voz quase histérica.
Bob, um pouco atrás, espiou por cima do ombro de Getsu e arregalou os olhos.
- Cara, ela tá... se mexendo mesmo depois de matar o cara. Parece que tá sugando ele ou sei lá! Isso é... isso é... nojento.
- Todos quietos! - cortou Alagneb, sua voz baixa e controlada. - Ficar gritando aqui só vai atrair mais disso.
Getsu virou-se para ele, o rosto contorcido de raiva e medo.
- Tá me dizendo pra ficar calmo vendo isso?!
Eliza, ainda examinando as criaturas de longe, falou sem desviar o olhar.
- O que quer que elas estejam fazendo... estão se alimentando. Absorvendo energia vital ou algo semelhante. Isso significa que podem ficar mais fortes.
[...]
Quando uma cabeça humana atinge Akainu, ela explode em uma nuvem de sangue vermelho-vivo, juntamente com coágulos de lodo preto. Fragmentos de pele se espalham em todas as direções enquanto os líquidos espirram por todos os lados, misturando-se com a poeira e a sujeira que cobre seu corpo. A explosão é rápida e intensa, lançando partículas por todo o ambiente.
Akainu, por outro lado, olha para a cabeça explodindo com um olhar vazio e inexpressivo. Não há surpresa ou raiva em seu olhar; parece quase como se ela esperasse por algo assim. Seus olhos permanecem fixos, inalterados, enquanto os restos caem ao seu redor, ignorando completamente o caos que se desenrola à sua frente.
O som de um choro baixo chamou sua atenção. Quando olhou para a sua direita, viu uma menina pequena, de no máximo oito anos, encolhida entre os destroços de uma bicicleta e uma parede rachada. Seus olhos estavam arregalados de medo, e o corpo tremia.
- Ei, calma... - disse Akainu, abaixando-se lentamente - Está tudo bem, eu vou te tirar daqui.
A criança hesitou, mas balançou a cabeça afirmativamente, com lágrimas escorrendo pelo rosto sujo.
De repente, uma das criaturas de lodo avançou, rastejando rapidamente em direção à menina. Getsu, alguns metros à frente, ouviu o grito de Akainu e virou-se. Ele ergueu sua arma e atirou na criatura. O impacto fez com que ela hesitasse por um segundo, espalhando parte do lodo em todas as direções, mas logo a massa se juntou novamente, mais agressiva.
- Merda, isso só deixou ela mais puta. - Getsu murmurou, disparando mais tiros para tentar chamar a atenção da criatura.
A cada passo, o lodo parecia querer se expandir, como se estivesse perseguindo o grupo com uma consciência maligna.
[...]
Quando Akainu finalmente chegou correndo a um prédio abandonado, ela colocou a menina no chão e se ajoelhou na frente dela.
- Você está bem? - perguntou, tentando soar calma, mesmo com o coração disparado.
A criança assentiu, soluçando.
- Fique aqui. Eu prometo que volto pra te buscar - disse Akainu, antes de se virar para voltar ao seu grupo.
[...]
Do lado de fora, Alexander observava tudo pelo tablet, sua expressão tensa.
- Isso não vai funcionar... - ele murmurou para si mesmo, enquanto os dados mostravam que as criaturas estavam se multiplicando ainda mais rapidamente.
Ele pegou o rádio improvisado e falou para o grupo:
- Precisam recuar e encontrar outro jeito. Não estamos fazendo progresso aqui!
Getsu respondeu no rádio, enquanto recarregava sua arma.
- Se a ideia é só sobreviver, tá tranquilo. Mas proteger todo mundo aqui é impossível!
Foi então que um som abafado chamou a atenção de todos. Um murmúrio estranho, como um sussurro coletivo, vindo de um edifício parcialmente destruído à frente. Eles pararam imediatamente, trocando olhares rápidos.
- Alguém ouviu isso? - perguntou Bob, sua voz pouco mais que um cochicho.
- Não só ouvi, como senti. - disse Eliza, franzindo a testa.
Getsu ergueu a arma, andando em direção à entrada do prédio, com os outros o seguindo de perto. Quando entraram, o som ficou mais claro: um coro de vozes, todas murmurando algo incompreensível, como se recitassem uma oração.
No centro do salão parcialmente iluminado, havia um grupo de pessoas. Seus corpos estavam contorcidos de maneiras antinaturais, as cabeças pendendo para os lados, os braços tremendo de forma errática, como se fossem marionetes cujos fios estavam sendo puxados por mãos invisíveis.
Akainu finalmente chegou. Estreitou os olhos, notando algo peculiar nos rostos dos indivíduos. Suas bocas se moviam, mas suas expressões estavam completamente vazias, como se não estivessem conscientes de suas ações.
De repente, um dos possuídos ergueu a cabeça, encarando diretamente Alagneb com olhos brilhando em um tom dourado. O movimento foi tão abrupto que todos recuaram, alarmados.
A voz era rouca e distorcida. Quase como um sussurro, como se viesse de um poço profundo. - Abel enviou saudações.
Alagneb congelou no lugar, seus olhos fixos no homem à sua frente.
- O quê? - ele perguntou, sua voz firme.
O possuído deu um passo à frente, o corpo tremendo como se estivesse prestes a se desfazer.
- O Patrão vê tudo, controla tudo... Está assistindo.
Akainu franziu a testa, algo no nome "Abel" lhe parecia familiar. Ela lançou um olhar desconfiado para os possuídos que ainda se moviam como marionetes deformadas dentro da construção.
- Espera aí... - ela disse, parando abruptamente. - Vocês disseram Abel. Vocês querem dizer... Abelardo?
As palavras ecoaram no silêncio momentâneo da rua. Por um instante, os movimentos dos possuídos pareceram desacelerar, como se algo dentro deles estivesse deliberando. Mas, em vez de responder, os murmúrios incoerentes voltaram, mais baixos e quase indistintos.
- Eu perguntei algo! - gritou Akainu, apertando o cajado em mãos. - É Abelardo ou não?
Os possuídos começaram a rir novamente, aquela risada distorcida e horrenda que parecia vir de algum lugar profundo e inumano.
- Não vai adiantar - disse Eliza, colocando uma mão no ombro de Akainu para detê-la. - Eles estão conectados a algo, mas não têm controle. São apenas... ecos do que essa coisa quer que ouçamos.
- Não é coincidência! - insistiu Akainu, virando-se para Alagneb. - O nome "Abel"... Alagneb, você sabe se ele atende por Abelardo?
Alagneb hesitou, o maxilar apertado. Ele evitou o olhar dela, como se estivesse deliberando o que responder.
- É possível... - admitiu ele, finalmente. - Mas eu sempre o conheci como Abel. Nunca ouvi ninguém chamá-lo de Abelardo.
Getsu, irritado com o rumo da conversa, interrompeu, sua voz carregada de frustração.
- Que diferença faz? Abel, Abelardo, sei lá! Essas coisas estão matando pessoas e rindo da nossa cara!
Akainu não respondeu de imediato. Ela olhou novamente para os possuídos, tentando encontrar algum sinal de consciência, algo que indicasse que poderiam ser interrogados. Mas eles apenas continuaram a murmurar em um idioma desconhecido, os olhos vazios brilhando com aquele tom dourado.
- Merda... - murmurou Akainu, recuando, mas ainda visivelmente incomodada.
- Isso não é coincidência - ele disse, sua voz carregada de uma intensidade que fez todos olharem para ele. - Eu já li esse nome antes.
Akainu ergueu uma sobrancelha.
- No livro? O que você lembra?
Getsu respirou fundo, tentando organizar os pensamentos.
- Nossa primeira vez na biblioteca, Akainu. - Ele olhou diretamente para ela. - Tinha uma seção sobre entidades e linhagens demoníacas. Não tinha muita coisa, mas dizia claramente: Abelardo, o primogênito de Perseu.
A tensão no ar se tornou palpável, uma presença densa e sufocante que parecia envolver a todos na sala, como se o simples ato de respirar fosse um esforço consciente.
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