3
O feitiço das sombras, o vidro que mostrava o futuro estava envolvido pelas sombras. Tupã não estava mais lá, não aparecia, e ela não conseguia ouvir sua voz, e ela sabia que ele estava preso, as trevas tinham sido libertas, e deus aprisionado em uma masmorra, onde não tinha luz, onde a escuridão era espeça e opressora. Um lugar para aprisionar deuses.
As correntes precisavam ser quebradas, tupã precisava ser liberto de seu cativeiro para que o sol voltasse a brilhar, para que as trevas fossem aniquiladas novamente.
Ela sabia que parte do que estava acontecendo era culpa dela. Porque no passado ela tinha sido fraca. Ao menos era o que ela pensava, o que fazia sentido para ela.
Por longos anos sua família foi guardiã da esfera, e o trabalho era apenas vigiar, apenas garantir que ela permanecesse nas profundezas das águas onde estaria segura, onde as trevas estariam afogadas para sempre. Mas naquele dia ela tinha sido uma fraca, uma traidora de seu clã, e por causa de sua fraqueza o mundo iria ser consumido pelas trevas.
Mas quem poderia culpá-la? Ela era apenas uma criança de oito anos, apenas uma indiazinha indefesa, vivendo sozinha no meio da floresta, onde os índios já não viviam mais, onde as tribos tinham sido dizimadas. Ela mesma tinha feito o sepultamento dos pais, seguindo todos os rituais e tradições (mesmo que agora eles fossem inúteis). Alguma obscura doença os levou, os deuses não foram capazes de realizar a cura, e ela acabou ficando sozinha na cabana. Não se podia esperar muito de uma criança de oito anos sozinha no mundo. O pai disse a ela tudo o que precisava ser feito, deixara escrito nos livros, na língua dos homens brancos, o porquê de eles ainda estarem ali, naquele lugar. Era uma missão, uma em que ela tinha falhado miseravelmente.
Uma flecha poderia ter resolvido as coisas, mas ela tinha hesitado, não tinha sido forte o suficiente, ao menos era o que ela achava. Agora ela estava vendo as consequências, terríveis, avassaladoras. Se ao menos soubesse, se tivesse o vidro naquela época e pudesse dar uma espiada no futuro, mesmo que somente através da fresta da porta, talvez tivesse cumprido seu papel como deveria ter sido feito.
Nayeli tinha feito um feitiço, o feitiço das sombras, sua casa estava protegida, as trevas não iam conseguir destruir a luz ali. Mas o resto do mundo estava desprotegido, cada centímetro dele seria consumido pelas trevas até não restar mais nada. Sua casa seria a única coisa que restaria. Ela podia repetir o feitiço uma segunda vez, se fosse necessário, e ela achava que seria, mas depois ela também seria consumida. Era assim que terminava, ela tinha cometido uma falha, uma inadmissível, e mais cedo ou mais tarde sofreria as consequências. A vida era assim, ela cobrava o seu preço, mais cedo ou mais tarde, não perdoava nenhuma dívida, por menor que fosse.
Mas parte dela sabia que ela absorvia a culpa toda para si, e essa não era a única verdade. Era inegável que houvera a mão do destino em toda aquela coisa. Sempre havia, o destino era um animal não adestrado que brincava com as pessoas, fazia o que queria, sem que se pudesse evitar.
“A coisa o chamou. “ Disse a voz de sua razão.
A coisa sempre chamara. Ela mesma tinha visto o brilho, e tinha sido uma coisa mágica, maravilhosa de se ver. Era a maneira da coisa atrair, chamar a atenção para si, porque aquilo também tinha vida e vontade próprias.
Sentada em uma cadeira, vendo os seres das trevas rastejando pela floresta, sem poderem vencer o círculo de proteção que o feitiço tinha construído, Nayeli viajou ao passado por alguns instantes, ela viu-se em um dia quente do verão de 1979, Nayeli, de oito anos saiu para caçar. Sempre se podia caçar um peixe nas margens do rio. Há alguns meses antes seus pais tinham morrido, vítimas de alguma obscura doença, que mais tarde ela passou a ponderar como algum tipo de bruxaria. O destino prega peças, e naquele dia todos eles estavam na frente dele, o homem branco no barco também. E quando se ficava na frente do destino ele passava por cima sem dó nem piedade.
Quando ela chegou, ele já tinha tirado a esfera das profundezas das águas. Mas antes viu o brilho e correu para a margem, todo o leito do rio brilhava intensamente como se a água fosse feita de ouro. Lembrava-se de ter achado aquilo lindo, a coisa mais linda que ela já tinha visto na vida.
Nayeli se aproximou e viu o homem, e arregalou os olhos. A esfera estava nas mãos dele, e ele parecia hipnotizado, a manuseava com aquele sorriso nos lábios, como se aquilo falasse com ele, como falava com ela todos os dias, mesmo nas profundezas, mesmo nas sombras ele dizia coisas profanas, esperando ser ouvida algum dia. O homem devia ter algum tipo de iluminação, talvez fosse um xamã dos homens brancos, ele também conseguia ouvir o chamado da coisa, e ele era mais forte naquele dia.
Então ela soube qual era o seu papel, ela sabia o que precisava ser feito. Nayeli preparou uma flecha e apontou para o homem, e mesmo sendo uma criança, sabia que não erraria de onde estava. Bastava puxar a corda e soltar.
Nunca foi capaz de entender porquê não disparou a flecha. Quando o homem a viu, seus olhos se cruzaram. Ela viu compreensão nos olhos dele, ele entendia. Nayeli podia ter resolvido a coisa, mas ela também entendia que de certa forma a coisa estaria segura, com aquele homem, porque ele jamais seria capaz de abri-la. Somente o sangue de uma virgem seria capaz de tal feito. E pensar que aquilo seria difícil demais para se conseguir foi outro erro que ela cometeu.
Por um breve momento, tudo aquilo foi transmitido através do olhar. E depois o homem foi embora, E Nayeli descobriu que tinha errado, que tinha falhado na missão, e em algum lugar, alguma coisa que ela não compreendia o que era, ficou feliz por isso, aquela coisa contava com aquela falha, era parte de um plano, era uma etapa dele. Outras etapas viriam, mas ela podia esperar, por enquanto obtivera uma vitória, e aquilo bastava.
Mas por enquanto, eles pareciam estar seguros. Mas havia outro sentimento, o real sentimento que a travou: o de transferência de responsabilidade. O fardo agora era daquele homem. Era uma falsa sensação, mas no momento parecia ser perfeitamente aceitável e reconfortante. Ela conseguia até sentir alívio. A responsabilidade agora estava toda nas mãos daquele homem. No fundo ela sabia que não. Mas era uma criança e gostou de achar que sim.
Algum tempo depois ela viu o homem novamente, ele estava na floresta, caçando, e pela segunda vez ela poderia tê-lo matado, e pela segunda vez ela não o fez. Talvez, se na ocasião a esfera estivesse com ele, ela o faria, jogaria o corpo e a esfera de volta ao rio e tudo teria se resolvido. Mas ele não estava com a esfera, segundo ele a esfera estava guardada em um lugar seguro. Mas o único lugar realmente seguro para ela eram as profundezas do rio, era não ter sido tirada de lá, agora ela sabia, tarde demais, mas sabia.
Ele precisava saber, ele tinha que saber o que era a coisa, e ela contou, e ele ouviu com resignação, ele entendeu que a partir do momento em que tirara a coisa das águas, o papel que era dela, passou a ser dele. Ele teria de decidir qual seria o destino da coisa. Nayeli viu desespero nos olhos dele, ele não queria aquilo, ele não aceitava, mas também entendia que não tinha escolha. Jogar a coisa de volta no rio não resolveria a situação, porque agora ela já tinha sido tirada, e ela entendia que aquilo tinha vontade própria.
Nayeli começou a se preparar para o pior já naquela época, porque ela sabia que aquele mal, o pior que já existira sobre a face da terra, não podia ser evitado. Mais cedo ou mais tarde ele eclodiria, sairia daquele “ovo” como um pássaro mortal, e espalharia seu séquito mortal sobre a face da terra aniquilando tudo e todos.
E o dia tinha chegado, ela tinha vivido para ver aquilo.
Aos 50 anos ela levava sobre si todo o peso da falha que tinha cometido no passado. Seu corpo estava cansado, mas ela se obrigava a se manter em pé. O que ela buscava era alguma maneira de se redimir, de concertar seu erro, por mais que erros não pudessem ser concertados. Talvez houvesse alguma coisa que pudesse fazer. Ela buscava nos grimórios que abarrotavam sua estante. As anotações que seu pai deixara na língua dos homens brancos e também na língua terena.
Nayeli olhou para fora através da janela, viu as trevas, ao redor do jardim. O feitiço transformava sua casa em uma bolha. O mal não podia tocá-la (ainda). Ao menos ela ainda tinha algum tempo. Precisava aproveitar cada segundo.
Ela caminhou até a sala, jogou um pouco mais de lenha na lareira, breve teria que sair lá fora e pegar mais lenha. Mas ainda tinha tempo.
Atravessou a sala, pegou uma vela e a acendeu, deixou um pouco da cera cair sobre um crâneo que usava como suporte e fixou ali a vela. Depois sentou-se na velha cadeira e voltou a examinar os grimórios. Talvez houvesse alguma coisa ali. Talvez houvesse algum tipo de salvação, ao menos uma redenção, mesmo que isso significasse a morte.
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