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O bicho papão podia estar debaixo da cama, mas em cima da cama, de baixo das cobertas era seguro, era o lugar mais seguro que havia.
E ele estava enfiado dentro da cabana que tinha feito usando a coberta e os travesseiros. E de repente o quarto não era mais o quarto, e sim uma floresta sombria, que era habitada por criaturas dos mais variados tipos e níveis de periculosidade. Havia monstros também, e o pior deles era o bicho papão, que tinha esse nome porque gostava de papar garotos, era sua comida preferida, geralmente ele comia garotos levados, que não obedeciam aos pais, mas nada o impedia de comer os bons garotos também. O sabor da carne dos bons garotos era ainda melhor e de vez em quando o bicho papão os pegava, os puxava pelos pés, diretamente para baixo da cama, que era o lugar onde ele morava. De baixo da cama era só um disfarce, na verdade era uma toca imensa e fedorenta, cheia de ossos de garotos mortos, garotos mortos podres e fezes. André sentia náuseas só em pensar na coisa.
Ele saía de noite para caçar, invadia os quartos, trazia os garotos para a dimensão dele e os comia.
Mas ele estaria seguro se ficasse dentro da cabana. Havia um circulo de proteção que circundava a cabana, uma aureola que emitia uma luz pulsante, e o monstro não gostava da luz. Além disso ele tinha uma lanterna. Ficaria seguro se ficasse na luz.
O pano da coberta era fino, e com a lanterna, ele conseguia ter um vislumbre da floresta (quarto). Havia seres rastejantes entre as árvores, tão perigosos quanto o bicho papão. Os seres rastejantes habitavam a escuridão, e a escuridão se espalhava ao redor e estava tomando conta. Tinha sido um avanço progressivo. Primeiro ela tinha consumido a lua. Havia uma lua majestosa que dominava o céu. Uma noite agradável, como aquela em que ele fora acampar com mamãe e Lucas, uma vez, na beira do lago. Ele era mais novo, mas se lembrava. Tinha mais gente também, não se lembrava dos outros, mas sabia que eles estiveram lá. A ideia tinha sido de Lucas, que era o namorado de mamãe, e André lembrava-se de que não gostava de Lucas, porque, por causa dele, mamãe e papai tinham se separado. André se lembrava que havia uma fogueira, e eles estavam queimando marshmallows e carne na fogueira, enquanto alguém contava historias de terror. Ele não se lembrava muito das histórias mas achava que tinha alguma coisa a ver com aqueles seres rastejantes que habitavam a escuridão.
Naquela noite tinha lua, e ele conseguia vê-la pela janela de seu quarto, ficou olhando para ela e conseguiu ver que aos poucos ela foi sendo tomada pela escuridão, que se parecia fumaça preta. Primeiro ela ficou vermelha demais, grande demais, e depois foi desaparecendo, sendo consumida pela escuridão, e depois vieram aquelas coisas que pareciam fumaça negra, mas rastejavam na escuridão, eram como animais, seus olhos medonhos se destacavam na escuridão, porque eram vermelhos e acesos, como as lanternas da traseira do carro de Lucas.
Elas surgiram no gramado, rastejavam-se entre as árvores. André se encolheu em sua cabana de cobertas, um medo pulsante tomando conta de si.
Então alguma coisa começou a acontecer com a energia, porque o abajur que ficava aceso em seu quarto começou a piscar. As lâmpadas pega-mosca de neon que ficavam acima de sua cama também começaram a falhar e de repente o quarto mergulhou na escuridão. Ele olhou para a janela e lá fora o mundo estava pintado de preto. Escuridão total e absoluta, mas era uma escuridão viva, habitada por seres terríveis e rastejantes que se alimentavam de luz.
André pensou em seu pai, seu pai iria saber o que fazer. Era seu pai que o acudia nas noites em que ele tinha pesadelos, às vezes sonhava que estava em um pântano cheio de bruxas que o perseguiam, porque queriam cozinha-lo. Na corrida pelo bosque maldito das bruxas ele caía no lodo podre do pântano e começa a ser puxado por mãos igualmente podres. O resultado era que ele acordava aos berros, em pânico e suando frio.
O pai sempre entrava pela porta, acendia a luz, e ficava ali com ele, até acalmá-lo, geralmente contando piadas ou alguma música legal que ele gostava.
Às vezes o pai lia histórias de terror para ele. As histórias causavam pesadelos mas ele gostava. Sua mãe sempre brigava com seu pai por causa das histórias, às vezes as brigas que esses tinham eram feias e ele ficava com medo.
André amava o pai, porque ele sempre o amparava, sempre estava lá quando precisava dele.
Então aquilo aconteceu. Os adultos chamavam a coisa de divórcio e era uma palavra que André odiava, porque ele conseguia entender o significado. No divórcio os pais se separavam e depois podiam se casar novamente, uma pessoa totalmente estranha vinha morar na sua casa e você era obrigado a gostar dela. E você ficava como uma marionete, sendo levado de um lado para outro, porque durante a semana você morava com a mãe e aos fins de semana tinha que ficar com o pai.
André gostava dos fins de semana, porque ficava com o pai, não tinha que ir para a escola, não precisava limpar os pés para entrar em casa e lavar as mãos sempre que usava o banheiro, e não precisava olhar na cara de Lucas, que ele não gostava, porque tinha sido por causa de Lucas que os pais tinham se separado. Alem disso, na casa do pai sempre tinha sorvete e chocolate, e vídeo game, o pai o deixava jogar Medal of Honnor enquanto estava escrevendo e André gostava de matar nazistas, porque esse era o objetivo do jogo, matar nazistas, mas André gostava de imaginar que ao invés de matar nazistas ele estava matando Lucas. Sua mãe também brigava com o pai por causa dos jogos. Ela dizia que eram muito violentos para um garoto da idade dele. Mas ele gostava.
Agora ele estava sozinho no (na floresta) quarto, porque o pai não morava mais naquela casa, porque seus pais estavam separados, e a escuridão estava chegando, tomando conta das coisas, comendo elas e se alimentando de luz, os seres rastejantes saiam da escuridão e de repente se confundiam a ela, eles eram as próprias trevas.
André se encolheu ainda mais em sua cabana e de repente tinha sido transportado de volta para seu quarto, o pai não estava ali para protegê-lo e nem para cantar uma música que o acalmava. Sua mãe estava dormindo no quarto ao lado com Lucas, o invasor, mas o quarto dela parecia muito longe, do outro lado da cidade, além disso ele tinha medo de sair da proteção da cabana.
Se ficasse na luz ficaria bem.
A lanterna.
Ele olhou para a lanterna. A difusa luz parecia ser fraca demais para conter as trevas que estavam se aproximando.
Precisava de mais luz. E de repente ele se lembrou das luzes de natal, que sua mãe mantinha guardadas em uma caixa, em algum lugar ali no seu guarda-roupas.
As luzes de natal seriam sua salvação. Luz era o que ele precisava, se ficasse na luz ficaria bem, embora parecesse que as coisas que habitavam a escuridão rastejante se alimentassem de luz. Mesmo assim a luz era a solução.
André começou a bolar um plano, ele ia precisar. O guarda-roupas ficava a uns dois metros de distância, e isso era longe demais, era uma distância descomunal. Mas se ficasse na luz estaria bem, teria uma chance, e ele precisava das luzes de natal, pois alguma coisa lhe dizia que a bateria da lanterna não ia durar a noite inteira.
Ele abriu a barraca e olhou para fora. Árvores escuras sendo abraçadas pela escuridão. A noite tenebrosa se fechava sobre ele como uma mortalha. Seu pai tinha lhe explicado que mortalha era o nome que se dava aos sacos onde eles colocavam os mortos. A mãe brigara com ele por lhe explicar aquilo, mas André não via qual o problema, ele sabia exatamente o que eram os mortos. Eram aquelas pessoas deformadas, que andavam de maneira estranha nos filmes. O pai dissera que eram zumbis.
Um ruido cortou a escuridão, quebrando o silêncio. Era o agourento pio de uma coruja.
“ Só dois metros”, ele pensou, “ são só dois metros. Seja homem.”
Ele já era um garoto grandão, tinha seis anos e já nem usava mais chupeta, estava mais do que na hora de agir como um garoto grandão.
Sempre segurando a lanterna bem firme, ele saiu correndo em direção ao guarda-roupas, e aquela foi a corrida mais longa que ele já tinha dado na vida. Era como se a cada passo que ele dava em direção ao guarda-roupas, este desse três para trás.
Depois de algum tempo ele chegou. Viu os seres que habitavam a escuridão com o canto dos olhos, mas procurou ignora-los, tinha que focar no que estava fazendo. Abriu o guarda roupas e começou a revirá-lo em busca da caixa em que a mãe guardava as luzes de natal. Ia jogando as coisas pelo chão, enquanto procurava. Sua mãe iria ficar bravo e lhe dar umas palmadas na bunda por causa daquilo, mas agora aquilo não importava, tudo o que importava agora era achar as luzes de natal, porque as trevas estavam chegando e quanto mais luz ele tivesse melhor.
As luzes estavam em uma caixa de sapatos, ele a pegou e saiu correndo na direção da cama. Parou na janela e por um momento olhou para fora. Já não conseguia ver a rua e as outras casas, a maioria das lâmpadas da rua tinham desaparecido, as que tinham sobrado lançavam uma luz que não tinha efeito naquela escuridão.
A escuridão rastejava, lentamente, mas seu rastejar era tenebroso.
André ficou parado ali por um momento, hipnotizado, vendo aquilo se rastejar enquanto engolia a paisagem noturna urbana. De repente a escuridão bateu na janela e André gritou. O susto foi bom, o colocou nos eixos novamente, ele se lembrou do que precisava fazer.
Correu até o quarto e tirou as lâmpadas de natal da caixa, desenrolou o fio com cuidado, tendo uma certa dificuldade e começou a enrolar o pisca-pisca ao redor da cama e da cabana. Uma vez pronto ele ligou na tomada e acionou o botão para acender as lâmpadas, e o quarto se iluminou. Na janela a escuridão pareceu gemer, como se a luz a tivesse ferido.
André começou a entrar na cabana, então parou e olhou para sua estante de livros, correu até ela e escolheu um livro de capa azul que ele conhecia bem, seu pai tinha lhe dado de presente, se chamava "Como capturar um monstro". Pegou o livro e correu para a cabana. Segurou a lanterna e ali ficou.
Se ficasse na luz ficaria bem.
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