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A chuva parecia o oceano caindo do céu, e Maurício achava que tivera sorte de encontrar aquela lanchonete de beira de estrada aberta àquela hora da noite, uma das noites mais tempestuosas de que ele se lembraria mais tarde, quando tudo finalmente acabasse e ele pensasse na coisa, porque aquilo jamais sairia de sua memória. Ficaria implantado lá para sempre. O assombraria em noites tempestuosas, quando o mundo dos sonhos fosse tomado pelos pesadelos.
Maurício tinha 32 anos e era escritor de literatura de horror. Não chegava a ser muito famoso; seus livros não ficavam na lista dos 10 mais vendidos (isso tinha acontecido apenas uma vez, com seu quarto romance, Os vagantes), mas ele conseguia manter uma vida legal e pagar as contas. Tinha uma casa na praia e uma chácara nas montanhas, à beira de um lago, que era onde tinha ido morar quando se separara de sua mulher, há quase um ano.
A casa onde Rosana morava com o filho do casal, em Pindamonhangaba, também pertencia a Maurício, e a única condição que ele impusera foi que ela não levasse Lucas, o amante, para morar lá. Houvera protestos, tentativas de retirar a posse dele. Nada feito. A causa foi ganha por ele e, no final da coisa, Rosana não podia nem mesmo morar lá. Depois de algum tempo, Maurício cedeu e tinha feito isso única e exclusivamente por causa do filho. Ultimamente, tudo o que ele fazia era pensando no filho.
Maurício achava que, se não tivesse um filho, sua carreira já teria acabado, e ele não passaria de um alcoólatra. Pensar em André meio que o segurava nos eixos, o fazia querer ver a cor de mais um dia. Era bom para um homem ter alguma coisa em que se apoiar. Antes ele tinha Rosana; agora ele se apoiava no filho, e isso era bom, principalmente depois da separação, quando tudo em que ele apostara suas fichas ruíra de forma abrupta e inesperada.
A separação foi uma das coisas que quase destruíram Maurício. Uma das coisas que ele mais amara na vida tinha sido Rosana. Tinham se conhecido ainda na faculdade, quando ele tinha 23 anos e começava a vender seus primeiros livros de forma independente. Rosana era tipo um pilar em que ele se apoiava. Ele se lamentaria daquilo anos mais tarde, mas, na época, parecera perfeitamente normal alguém amar tanto uma pessoa, e Maurício se entregara àquele amor de corpo e alma. Na época, achara que Rosana tinha feito a mesma coisa, e foi horrível descobrir que ele estava redondamente enganado. Parte dele preferia nunca ter descoberto; parte dele queria viver enganado para sempre, ao menos não teria que sentir a dor da verdade.
Quando ele apresentou Rosana à família, que era evangélica, rigorosa e conservadora, seus pais foram totalmente contra.
— Rosana é a meretriz do diabo — disse sua mãe, afirmando que ela usava apetrechos para enganá-lo e levá-lo para o inferno.
O pai, que era pastor, completou:
— Eu não abençoarei esse casamento.
Na época, nenhum dos dois estava pensando em casamento. Ao menos, Rosana só queria se divertir, e no fundo ela pensava que ele tinha consciência daquilo. Ele achava que ela não sabia que ele sentia por ela amor de verdade.
No almoço de Páscoa de 1994, alguns meses antes do casamento, eles brigaram feio. Rosana falou um monte:
— Eu nunca fui tão humilhada na vida!
Maurício foi embora, mesmo sob os protestos de sua mãe, e disse que nunca mais voltaria ali. E ele só voltou em 1999, quando a mãe falecera, vítima de câncer no pâncreas. Ele nem ao menos chegou a vê-la viva uma última vez, não tivera tempo para se despedir.
Na ocasião, André tinha cinco anos. Ele viu sua família e não havia qualquer ressentimento da parte deles. Almoçaram na casa do pai dele. Maurício e o pai se abraçaram no final da tarde, e eles foram embora de noite. Maurício ainda mantinha contato com o pai, embora não fosse lá muitas vezes. No fundo, parecia ser difícil admitir que os pais estavam cobertos de razão, e que ele não passara de um palhaço, um idiota.
Às vezes ele se perguntava se tudo aquilo não fora um castigo, um castigo por ele não ter ouvido os pais, que diziam que Rosana não era a mulher certa para ele. Talvez, na época, ele estivera cego pela beleza de Rosana, que era completamente inconfundível. Rosana era uma das mulheres mais lindas do campus, e ele era o garoto idiota que a exibia como um troféu, que sentia orgulho por ter a mulher mais linda de todas.
Em 1992, Maurício morava em uma república na faculdade. Não se admitiam mulheres nas repúblicas destinadas aos homens, mas sempre se podia dar um jeito, e eles costumavam se encontrar às sextas-feiras. Transavam, tomavam um drinque e comiam alguma coisa; então Rosana se deitava de bruços na cama, sem calcinha, e lia os manuscritos que Maurício tinha escrito durante a semana, usando sua velha máquina Olivetti. Ela sempre tinha um sorriso de apoio, sempre adorava o que ele escrevia. Não era um fingimento (ao menos ele achava que não); ela gostava mesmo, dava para ver aquilo em seus olhos, que brilhavam enquanto ela lia, como se estivesse degustando cada linha.
— Você é um escritor maravilhoso. Eu te amo. — Ela sempre dizia com aquele sorriso lindo nos lábios, que era uma coisa que o cativava, uma coisa que ele, na época jovem e ingênuo, não conseguia escapar.
Daí eles transavam de novo, e era a melhor coisa que existia no mundo.
Maurício se formou com louvor em Letras, em 1995, e eles já estavam casados há quase um ano. Tinham se casado em uma cerimônia informal, sem celebração religiosa. Foram ao cartório e simplesmente assinaram os papéis, e quando saíram de lá estavam casados. Chamaram alguns amigos da faculdade e encheram a cara, e foi só. Nada de alarde, nada de família, nem da parte dele e nem da parte dela.
Uma semana depois, alguns parentes de Rosana apareceram no campus onde eles ainda moravam. Maurício ficou sabendo que ela tinha uma irmã e que estava com problemas financeiros e viera até ela pedir dinheiro. Maurício sabia que ela tinha algumas reservas; só Deus sabia como aquela irmã soubera daquilo. A irmã dela chegou a parabenizá-lo pelo casamento, dissera que ele era um homem de coragem, e ele apenas abriu um largo sorriso cheio de ingenuidade e disse obrigado.
Em novembro de 1994, Maurício arranjou um estágio e eles foram morar em uma casa alugada. Ele dava aulas durante o dia e estudava de noite, uma rotina bem pesada, mas que os dois resolveram encarar. Jamais chegou a passar pela cabeça de Maurício que já naquela época sua mulher estava tendo um caso com o chefe do escritório em que trabalhava. Rosana ficou grávida naquele ano. As coisas iam bem entre eles, ao menos era o que ele achava. E jamais chegou a passar pela sua cabeça que André poderia não ser seu filho; ele nem mesmo cogitou a ideia. André era praticamente a cópia dele. Incontestável.
No final de 94, ele foi procurado pelos representantes de uma editora de porte grande, em São Paulo. Eles queriam publicar uma edição em capa dura de um de seus livros. A proposta não era muito boa, não tinha retorno financeiro, mas naquela época Maurício ouvia os conselhos de seu amigo e professor, Murilo, e ele achava que aquele contrato poderia alavancar a carreira de Maurício, e de fato ele tinha razão. Aquilo foi sua porta de entrada no mercado dos livros. “Dando o Braço a Torcer” vendeu que nem água. Maurício foi lançado na Bienal de São Paulo, em 1995, e o diretor da editora queria fechar com ele um contrato de dois livros e 10%. Praticamente o sonho de qualquer escritor em ascensão.
Rosana também estava se dando bem no escritório de contabilidade em que trabalhava e passou a ganhar mais. Hoje ele entendia o porquê, e uma onda de ódio incontrolável o dominava.
Eles compraram a casa em que ela morava hoje, a casa que ele resolvera deixar para o filho.
Em 1997, Maurício viu o anúncio de uma chácara sendo vendida em Santo Antônio e resolveu ir ver. Rosana não gostou, e aquela foi a primeira vez em que ele a contrariou, fechando o negócio pelo que ele achava ser uma bagatela de 80 mil reais. O proprietário antigo deixou absolutamente tudo o que tinha na chácara, e entre os pertences estava o jipe Willys que ele dirigia até hoje. O jipe era modelo 83, 4x4, e precisou passar por uma restauração. Rosana argumentara, dissera que eles deviam vender aquela coisa; “monte de ferro velho,” era assim que ela se referia ao jipe. Mas Maurício achava um ótimo carro e pretendia ficar com ele, e foi isso que fizera. O jipe se tornou o carro dele, e ele se sentia bem rodando pra lá e pra cá de jipe. O jipe era o que seu pai chamava de “carro de verdade.”
Essa fora a parte boa da coisa toda, a parte ruim começou no final de 1999. Foi quando ele descobriu que sua mulher mantinha uma relação extraconjugal. Aconteceu quase por acaso. Maurício passava de jipe em uma avenida da cidade e vira o carro de sua mulher na entrada de um motel. Certo é que havia milhares e milhares de Vectras pretos espalhados por aí, mas não um com o adesivo de “André a bordo” no vidro traseiro. O adesivo não; o adesivo tinha sido ele mesmo quem colara no vidro.
A traição foi descoberta uma semana antes do Natal e Maurício não se lembrava de outro fim de ano pior que aquele. Um fim de ano em que parecia que todo o peso do mundo (o mundo real, e não aquele mundo de sonhos em que vivia) estava desabando sobre suas costas, e ele sabia que não era capaz de suportar.
Na época se falava em bug do milênio, as pessoas diziam que o mundo ia acabar, houvera até casos de pessoas se matando em diversas partes do país, e Maurício só queria que aquilo fosse verdade, que o mundo acabasse de verdade, porque ele não queria mais viver. Era ridículo pensar daquela forma, mas ele não era capaz de evitar.
Maurício achava que a conversa que tivera com seu pai na virada do milênio o tinha salvado de um destino pior. No final das contas, ele acabara lá, na casa do pai, se lamentando por não ter ouvido os conselhos dos pais.
Primeiro, seu pai jogava em sua cara toda a realidade da coisa:
— Você foi avisado, Mauri. A gente falou pra você, mas você não ouviu. A sua mãe sempre dizia que ela não prestava, mas você brigou com a gente e foi embora. Então você está nessa merda por sua culpa mesmo. Então seja homem, pare de se lamentar e encare a coisa de frente. Você tem um filho, e esse sim precisa de você. Ele é a única coisa que importa agora. Seja homem e pare de chorar, ela não vale as suas lágrimas.
Foi como receber um balde de água fria na cara, algo que o acordou do que poderia ser anos hibernando em uma zona depressiva de autodestruição. Maurício resolveu dar a volta por cima e sair do buraco existencial em que tinha caído.
Em março de 2000, exatamente um mês depois do divórcio propriamente dito, Rosana entrou na justiça contra ele na questão da casa. Uma audiência foi marcada, eles se encontraram no tribunal, Lucas também estava lá, mas Maurício conseguiu se controlar. Ele ganhou a causa e o juiz determinou que ela deixasse a casa em 90 dias, tempo demais, na opinião de Maurício.
Ela implorou algumas vezes, disse que não tinha para onde ir e apelou para o filho. Maurício cedeu pensando justamente no filho e no que seu pai lhe dissera. Agora tudo o que importava era André, e ele devia ser forte e continuar por ele. Deveria ser sua razão para continuar.
Maurício estava tentando, mas havia momentos em que a fraqueza e as lembranças o pegavam de jeito, e ele cedia. Ele enchia a cara de vinho, ficava vendo fotos de Rosana (não entendia porque ainda não conseguira se livrar delas) e se lembrava dos momentos que tiveram juntos, das aventuras dos tempos de faculdade, e não aceitava a maneira como a coisa tinha acabado. Algumas coisas eram inaceitáveis. Ele era o tipo de pessoa que precisava de uma razão, uma explicação coerente para cada acontecimento, e aquela explicação nunca vinha.
De quem teria sido a culpa? Dele, talvez? Nos últimos anos, mergulhara no trabalho como se aquilo fosse a única coisa que importava. Em 1998, assinou um contrato grande com uma editora e vinha se dedicando àquilo com unhas e dentes, achando que estava fazendo bem à família, pensando que assim estivesse garantindo um bom futuro para a esposa e o filho. Ele colocara o trabalho na frente da família, e talvez aquilo tenha sido seu erro, seu único erro.
Às vezes, ele chegava a dormir no escritório, pretendia trabalhar um pouco mais em um capítulo, avançar um pouco mais na história, mas acabava escrevendo dois capítulos grandes e, às vezes, até três. Às vezes, ia para a cama tarde da noite, e Rosana já tinha dormido. E ele não se dava conta de que estava deixando de cuidar de seu casamento.
Teria sido sua culpa? Seria ele culpado por querer dar uma vida melhor para sua família? Teria ele culpa por querer aproveitar a chance que a vida estava lhe dando de poder trabalhar naquilo que ele amava fazer, que era escrever e ganhar para isso?
Na época, não passara pela sua cabeça o fato de que ele poderia estar sendo um pai ruim e um péssimo marido, acima de tudo, um péssimo marido. Um que amava e achava que amar era o suficiente.
Talvez a culpa fosse sua. Talvez não. Talvez sua mãe tivesse razão, quem sabe Rosana fosse mesmo uma prostituta do diabo, travestida na pele de uma linda mulher, com o único objetivo de levá-lo para o inferno. Ou talvez a culpa fosse dos pais dele, que rejeitaram a relação desde o início, ou de seu pai, que, mesmo sendo um pastor na época, se recusara a abençoar a união dos dois. Ou talvez a culpa fosse de Lucas, o amante dela. Ele era o chefe dela no escritório de contabilidade, um cara boa pinta, estilo de empresário, parecia ter dinheiro. Talvez ele não passasse de um aliciador maldito que estava acostumado a destruir casamentos. Talvez fosse isso.
Mas havia ainda uma outra possibilidade, a possibilidade de não haver culpados, de ser coisa do destino, o tipo de coisa que acontece o tempo todo em todo o mundo. Coisa do destino. Maurício achava que não acreditava em destino; ele achava que o destino era feito pelas escolhas, que nada estava realmente pré-escrito no caminho de ninguém, que eram as pessoas que escreviam seu próprio destino. Algumas o escreviam de forma consciente; outras, como ele, só percebiam o que fora escrito, tarde demais.
Destino e nada mais.
Destino.
A palavra rimbombava em sua mente e tinha uma entonação um tanto quanto sinistra, bastante intimidadora, como se dissesse: eu sou o destino, não se meta comigo, ou passo por cima de você e não haverá nada que você possa fazer para evitar, seu bosta.
Era assim. Nada podia ser feito. O que aconteceu, aconteceu e não podia ser desfeito, jamais.
Maurício pensava em tudo aquilo enquanto dirigia seu jipe azul ano 83, debaixo da tempestade que desabava sobre o mundo naquela convulsa noite de sexta-feira, uma noite em que o destino o pegaria pela segunda vez, de jeito, sem piedade, mesmo que ele não acreditasse.
O rádio estava ligado, e ele estava ouvindo Iron Maiden cantar "Fear of the Dark", e a letra parecia fazer todo o sentido do mundo, porque ele se sentia um homem sozinho, andando por uma estrada escura, sem rumo nenhum na vida, sem planejar nada. Pensava em escrever livros, ser chamado para eventos, dar autógrafos, mas fora isso, nada mais.
— É. E no meio da tempestade. — Disse ele para o carro vazio, e sua voz soou amorfa.
I am a man who walks alone
And when I'm walking a dark road
At night or strolling through the park.
A diferença era que ele não tinha medo da escuridão. Não mais. Ao menos ele achava que não. Ao menos ainda não.
Houvera um momento, mesmo que breve, em que ele pensou que não fosse resistir, em que ele teve a certeza de que a escuridão fosse tragá-lo, e uma vez lá dentro jamais conseguiria sair, cairia para todo o sempre.
Ele estava lutando para que aquilo fosse nada mais que passado. Era melhor ter esperança.
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