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Capítulo 1

Olympia olhava para o advogado com a atenção de um felino pronto para aprisionar a presa em uma caçada, mesmo que soubesse que não era nada pertinente uma dama fixar os olhos em um cavalheiro sem a intenção de despertar sua admiração. Não que ela desejasse flertar ou algo do tipo com um cavalheiro que tinha a idade para ser seu avô, mas porque não queria perder qualquer detalhe da explicação que ele lhe dava sobre o testamento da tia.

Lady Elnora Greenwood era uma dama de reputação impecável, mesmo que tivesse se mantido solteira e se dedicado a empreitadas poucos ortodoxas para o universo feminino. Tantas histórias circulavam ao redor da anciã, que se tornou praticamente um mito. Mas a verdade era que poucos a conheciam tão bem para que pudessem descrevê-la corretamente. A própria Olympia, mesmo sendo a parente com a qual mais convivia, desconhecia vários dos segredos da irmã do avô, tal como o fato de que ela praticamente havia adotado um garoto, resgatando-o das ruas mais sujas e fétidas de Londres.

Bem, até ali não chegava a ser uma surpresa, pois das irmãs do Duque de Watterson, Elnora era a que mais havia se envolvido com as causas assistenciais. A surpresa, no entanto, lhe veio com a descoberta de que ela havia feito dele um herdeiro.

E surpresa maior foi descobrir sua identidade durante a leitura do testamento.

Frederick Chandler tornava-se conhecido à medida que seu nome se associava aos Hartwell. Ele era um dos muitos bastardos que colaboraram para a fama de garanhão do falecido Visconde de Hambleden. E corriam boatos, inclusive, de que era mais velho do que o legítimo herdeiro. Obviamente que seu nascimento incomum e o patrocínio que recebeu de Elnora possibilitou que enriquecesse a ponto de tornar-se o principal credor da maioria dos aristocratas endividados. Frederick Chandler, como o burguês que era, não tinha qualquer pudor de trabalhar para enriquecer.

— Não é possível que titia Elnora não tenha estabelecido quais bens devem pertencer a cada um de nós. – Olympia estava desolada com o que acabava de descobrir. — Sou teoricamente uma mulher rica e independente, mas tudo que herdei de minha tia é tão meu quanto do Senhor Chandler.

— A não ser que um venda para o outro seu quinhão. – O advogado explicou e seu ar de cansaço não passou despercebido por Olympia. — Lady Elnora não vedou tal possibilidade.

Eram tantas proibições naquele testamento que qualquer mera possibilidade se tornava a descoberta do século.

E da incredulidade passou rapidamente para a irritação, pois, por mais rica que ela fosse, era mulher e não poderia exigir que o irmão adiantasse seu dote para comprar o quinhão do outro herdeiro. Bronwen não era o tipo de homem que gostava de inovações e, diferente de seu avô, jamais permitiria que uma Greenwood não seguisse a vocação para o matrimônio.

— Não tenho fundos disponíveis no momento para comprar o quinhão do Senhor Chandler – avisou, muito chateada. — Foi um presente de grego este que titia me deixou.

— Lady Elnora tinha um propósito, milady. – O advogado a relembrou.

— Que o senhor não deve revelar, pois trata-se de sigilo profissional. – Olympia inclinou a cabeça e piscou enquanto enrolava uma mecha de cabelo castanho no dedo; era uma mania que a deixava charmosa e que costumava capturar a atenção masculina e, sem sombras de dúvidas, a ajudava a enganar aqueles menos atentos por amenizar a rispidez de uma personalidade forte e que não tolerava ser menosprezada em sua inteligência.

— Sua tia me alertou sobre a senhorita, Lady Olympia – disse o advogado —, de que costuma ser muito eficaz em chantagens emocionais para ter seus desejos atendidos. No entanto, são as últimas vontades de sua tia, uma mulher que a tinha em alta estima por acreditar que o mundo era muito opressor para uma mente tão selvagem.

— Selvagem? – Olympia esbugalhou os olhos em clara surpresa. — Minha tia me julgava uma selvagem, doutor?

— No bom sentido do termo, é óbvio. – O homem ajeitou a peruca na cabeça e usou um lenço para secar o suor da testa.

Olympia o encarou por julgar incômodo demais usar peruca, mas era a moda, principalmente entre os mais velhos. Pela graça do bom Deus, aquele costume estapafúrdio de usar cabelos dos outros um dia seria abandonado.

— Se minha tia lhe explicou o significado para tal adjetivo, seria de bom tom que me explicasse. – Ela sorriu, batendo os dedos enluvados em cima da mesa.

— Infelizmente não! Milady terá que se esforçar para descobrir por si só.

— E o que devo fazer quanto à herança? – Olympia decidiu clarear todas as dúvidas possíveis, já que estava pagando muito bem pela consulta.

— Se não tem dinheiro para comprar o quinhão do outro herdeiro, venda-o para ele. O Senhor Chandler é um dos homens mais ricos, e se não for, está próximo de se tornar.

Olympia cruzou os braços e movia os lábios de um lado para o outro na tentativa de encontrar uma solução rápida. Não poderia simplesmente vender sua parte sem correr o risco de o irmão colocar a mão na fortuna. Bronwen era seu tutor legal desde a morte do pai, há dois anos, e apenas o casamento a libertaria daquele domínio injusto. Mas se casar não era a melhor possibilidade quando se lembrava de que apenas aconteceria uma transferência de poder: do irmão para o marido, sem que ninguém lhe considerasse uma pessoa autônoma e inteligente para cuidar de sua própria vida.

Inferno! Ela apenas queria viver como a tia.

— Não é a melhor solução para o meu caso, doutor. – Ela foi firme na resposta e se levantou, decidida a fazer o que a tia queria para ter o que era seu por direito. — Vou me mudar hoje mesmo para a mansão de titia em Chelsea.

***

Não muito distante do gabinete do advogado, Frederick se encontrava com seus irmãos para o que ele costumava chamar de reunião de negócios. Sim, ele mantinha negócios com Michel e Douglas, e graças a isso eram três homens bem-sucedidos. Até mesmo Michel havia conseguido obter ótimos rendimentos depois que se associaram, deixando de lado aquela ideia pouco conveniente de que o comércio não era digno de quem havia nascido aristocrata.

— Vocês sabem o quanto Lady Elnora costumava ser misteriosa. – Ele aceitou o copo de uísque das mãos de Michel e se sentou em uma das poltronas que havia importado de Paris para decorar seu escritório em Holborn. Tudo era muito sóbrio, em tons que iam do preto ao cinza, mesmo que a moda em voga exigisse mais cor e extravagância. — O testamento que ela preparou em vida é um verdadeiro tratado de como enrolar uma herança. Mas isso não me surpreendeu tanto quanto a descoberta da existência de outra herdeira. – Frederick agia em nome de Lady Elnora desde que havia concluído seus estudos em Cambridge, administrando cada um de seus empreendimentos, então era natural que a anciã lhe deixasse parte da fortuna.

— Lady Olympia Greenwood – soltou Michel, o irmão cuja legitimidade do nascimento possibilitou que herdasse o título de Visconde de Hambleden, mesmo sendo alguns anos mais jovem que Frederick. — A dama mais imprevisível que os salões londrinos tiveram o privilégio de receber.

— Você a conheceu? – perguntou Douglas, que dos três era o mais novo, e assim como Frederick, era bastardo.

— Eu cheguei a frequentar algumas temporadas em busca de uma esposa... sendo muito realista, devo ter frequentado uma. – Michel estreitou os olhos e fixou o olhar no conteúdo escuro de seu copo. — Minha mãe estava doente e não poderia negar tal pedido. E então a filha do Duque de Watterson foi apresentada naquela temporada. O dote era uma fortuna, a dama em questão era de uma beleza que impressionava, mas a língua ferina espantava qualquer pretendente. E sinceramente eu não estava lá para arrumar uma esposa, por isso não sei muito além do que corria entre as rodas de cavalheiros. – Ele deu de ombros.

Frederick foi transportado para o dia em que se encontraram na leitura do testamento. Lady Olympia era o tipo de mulher que atraía a atenção com o objetivo de enganar. Ele havia conhecido outras como ela em sua passagem pelas ruas, sempre dispostas a dar o tapa e esconder a mão. Os cabelos castanho-claros faziam conjunto com os olhos cor de âmbar, incomuns e misteriosos; os lábios bem arqueados e o nariz fino e elegante se encaixavam graciosamente no rosto. De feia, honestamente, não poderia ser chamada.

Não foi a primeira vez que se encontraram, já que Lady Elnora fez questão de exigir que os dois a acompanhassem em seu leito de morte. E o convívio forçado não lhe rendeu muito mais do que palavras ríspidas de quem estava muito preocupada com a morte de uma parente para perder tempo com um plebeu. O resultado foi uma antipatia instantânea, cujos motivos, além do fato de a dama acreditar piamente que ele se tratava de um mero administrador de confiança, lhe eram desconhecidos.

— Mas afinal, o que o advogado lhe disse para resolver o impasse? – perguntou Michel, tirando-o das divagações acerca das impressões sobre a herdeira de sua benfeitora.

— Que devo comprar o quinhão atribuído à Lady Olympia. A mesma possibilidade é permitida a ela, pois não há impeditivo no testamento – argumentou.

— Eu adoraria ler esse testamento – comentou Douglas, cuja curiosidade em desvendar um testamento escrito a partir de proibições o deixava em cócegas.

— Uma verdadeira arapuca para tolos, isso sim – lamentou Frederick. — Eu quero os bens de Lady Elnora, estou disposto a cumprir cada uma das cláusulas para fazer a herança triplicar, mas não contava com uma sócia indesejada. Bem sabem que vocês, meus irmãos, são os únicos que tolero como sócios. Eis a razão para me esforçar em comprar o quinhão dela, por um valor justo, é claro. Se soubesse que Lady Elnora usaria de tais artimanhas, a teria convencido a não me beneficiar em testamento. Sou grato por me tirar das ruas, financiar meus estudos e me dar um primeiro emprego como seu administrador, não me interpretem mal.

— É o melhor que tem a fazer diante das circunstâncias. – Michel depositou o copo de volta no aparador e conferiu as horas no relógio que tirou do bolso. — Tenho que ir! Fiquei de buscar Annette na mansão dos Belfort.

— Um homem apaixonado à disposição da mulher. – Douglas debochou e levou um tapa na cabeça.

— O seu dia chegará, caçulinha, e eu estarei lá na primeira fila para assisti-lo ser enforcado pelas rendas de uma dama. – Michel devolveu a provocação e partiu depois de colocar o chapéu tricorne na cabeça.

Douglas saltou de trás da mesa em que estava sentado para seguir o visconde.

— Vou com você – falou em um timbre de voz alto de modo a não perder a carona. — Desejo sorte, irmão! – E saiu porta afora, sem lembrar de fechá-la na saída.

Frederick sacudiu a cabeça e levantou-se para fechar a porta, encontrando, assim, o mensageiro que havia despachado em busca de Lady Olympia. Retribuiu o serviço com uma gorjeta e se apressou para romper o lacre com a insígnia dos Greenwood. Ele havia se acostumado com o brasão devido aos longos anos que se correspondeu com sua benfeitora. Deslizou rapidamente os olhos e a elegante caligrafia não foi capaz de amenizar o impacto da prepotência com que ela tingiu o pedaço de papel.

Em hipótese alguma poderia chamar aquilo de recado. Era uma afronta com perfume de rosas. Ao menos, ela cheirava muito bem, pensou.

Mas o que ele faria diante da recusa por parte dela em negociar? Ficou muito claro que não pretendia vender seu quinhão, mas também não demonstrou interesse em comprar o dele no dia da leitura do testamento.

E então lembrou da maldita cláusula que exigia muito mais do que se tornar proprietário.

Não havia alternativa, Frederick teria que se mudar para a mansão em Chelsea.

Era isso ou colocar em risco a fortuna de Lady Elnora. E entre ele e uma dama mimada da aristocracia, Frederick era o único merecedor da herança, pois havia se empenhado em administrá-la e tinha planos perfeitos para pôr em prática.

Devia ser justo com o fato de que não se tratava apenas de preservar os feitos de Lady Elnora, mas evitar que uma aristocrata qualquer dilapidasse mais uma fortuna construída com o suor de outros. 

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