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New Chamor, 24 de dezembro de 2017
21:43
20 dias
Helena está loucamente enfiando roupas em uma mala. Ouço-a xingar obscenidades enquanto observo a chama da vela consumindo a si mesma. A cidade toda está imersa em escuridão há pouco mais de duas horas, e não dá sinal algum de que voltaremos a ver alguma luz que não seja a das estrelas enquanto o dia não amanhecer.
Alguma coisa aconteceu, o apagão não foi por acaso, e minha irmã sabe muito bem disso. Ela está arrumando as malas para que saiamos desta cidade enquanto tudo não acabar.
— Onde você pretende ficar? — pergunto, ainda sem olhar para ela e mantendo o foco nos tons de laranja que iluminam meu rosto.
— Nós vamos ficar em um hotel — consigo sentir o tom de irritação em suas palavras. Ela está brava por ter alguém aqui pegando nossas crianças. Está brava porque não existe nenhum departamento de polícia em New Chamor, e a da cidade vizinha não faz seu trabalho direito. Está brava porque um sujeito aleatório decidiu começar todo este caos e arruinar nossas festas. Helena está furiosa e eu entendo perfeitamente seus motivos.
Mas, por algum motivo que não sei, algo dentro de mim diz que devo ficar aqui. Helena quer que eu vá junta, está convencida de que vou mesmo, mas não sei o que devo fazer. Se não fosse esta sensação ridícula de que vai ser pior sair do que ficar, eu mesma pegaria minha irmã pelo braço e nos levaria até o mais longe possível desta cidade maldita.
— Helena, eu...
Paro de falar assim que Donnie aparece no quarto com sua lanterna, e consigo perceber como seu rosto está pálido, branco como papel, mesmo com a pouca luz no ambiente.
— Não estão encontrando o pastor Felix. Ele... ele sumiu.
Consigo sentir uma onda de frio descendo da minha cabeça aos pés, e então subindo de novo. Olho para Helena, que me encara de volta também. Ela está tão chocada quanto eu, posso perceber.
— Quem te disse isso? — ela pergunta sem parar de enfiar roupas na mala.
— Estava falando com algumas pessoas ao telefone para tentar descobrir se alguém sabe o que aconteceu. Parece que ninguém sabe onde ele está.
— Então agora adultos são alvos também — ouço Helena resmungar. — Que maravilha.
Redireciono meu olhar mais uma vez para a vela, pensando em como o pastor estava agindo estranho hoje mais cedo, me encarando com o sorriso mais aberto que já vi e aqueles olhos azuis elétricos sem nem ao menos piscar. Assim como Donnie naquela vez em que o encontrei dormindo com os olhos abertos, e na mesma noite sonhei com a criatura nebulosa o capturando.
Se eu tivesse dez anos de idade, talvez acreditasse que realmente existe uma criatura daquelas por aqui, pegando as criancinhas para se alimentar, e, quando enjoou delas, partiu para os adultos.
Bem, esta cidade é tão estranha que não seria exatamente uma surpresa enorme descobrir que o que está acontecendo é realmente uma criatura sobrenatural se divertindo horrores com o caos que instaurou por aqui.
— Você vai ficar aí parada? — Helena me desperta dos devaneios, agora parada bem em frente a mim. Ela parece irritada comigo, mas sei que está apenas preocupada. — Donnie com uma perna só está fazendo mais coisas que você!
— Ah, muito obrigada pela motivação — me levanto para olhar ao redor, tentando achar qualquer coisa que possa fazer. — Quer que eu faça o que, exatamente?
— Você pode pegar comida e guardar nas mochilas, anda, vai logo.
Aceno com a cabeça, pego a vela nas mãos e passo por Donnie, indo até a cozinha. Tento pensar em alguma maneira de dizer a Helena que não quero sair da cidade. Ela vai pensar que estou louca, e talvez eu esteja mesmo, mas quero descobrir o que está acontecendo aqui.
Claro, existe um outro motivo bem específico para me fazer querer ficar, mas não vou dizer isso a ela. Me sinto uma completa idiota por ter me apegado tanto a uma pessoa que mal conheço, mas não posso controlar o que sinto. Quero ficar aqui porque Rachel está aqui.
E também não tive mais sinais de Mirabella. Nem sei se ela vai voltar desta vez.
O caminho do corredor até a cozinha parece ter triplicado de tamanho simplesmente pelo fato de a casa estar escura. Estou apavorada, mas respiro fundo enquanto percorro o espaço, a luz ao meu chacoalhando pela minha mão que segura a vela estar tremendo.
Quando chego a cozinha, coloco a vela sobre a mesa e vasculho os armários atrás de qualquer comida que possa ter serventia durante a fuga maluca de Helena. Pego salgadinhos e pães, biscoitos e todo o tipo de comida não saudável existente. Jogo tudo em um amontoado sobre os balcões, até não sobrar mais nada dentro de nenhum armário.
Me viro para os montes à minha frente e começo a separar em categorias específicas, cada tipo de comida industrializada com seus pares. Não tinha ideia de que Helena possuía tantos alimentos assim, mas pelo menos eles terão algum uso para ela agora.
Durante um segundo em que ergo involuntariamente os olhos para a janela, vejo algo esquisito que me faz gelar. Lá fora, na escuridão, dois pontos azuis pairam no ar, levitando. Dou alguns passos para trás, quase perdendo o equilíbrio, pois tenho a sensação de já ter visto uma coisa assim recentemente.
Desesperada, pego a vela e caminho de volta ao quarto para falar com Donnie e Helena. Eles me encaram confusos assim que apareço para eles, tentando euforicamente dizer alguma coisa, mas sem conseguir fazer com que qualquer som saia. Seguro minha irmã pelo braço para levá-la até a figura que me deixou fora dos eixos.
Mas, quando chegamos até a cozinha, os pontinhos azuis sumiram. Não há nada lá fora.
— Ti-tinha alguma coisa... lá — aponto para a janela, agora tremendo descontroladamente da cabeça aos pés.
— O quê?
— Era... parecia... — sinto que Helena vai pensar que estive sonhando acordada se detalhar tudo ao pé da letra, então decido mentir para dar um toque mais realista. — Parecia alguém parado, olhando para cá.
Ela se vira lentamente para mim, também começando a tremer.
— Sarah, você tem certeza?
Aceno que sim com a cabeça, engolindo em seco.
— Donnie! — ela grita. — Leve as malas pro carro!
Helena segura meus ombros com força.
— Nós vamos sair daqui, irmã — ela me abraça. — Vamos ficar seguras até esse pesadelo acabar.
Retribuo o abraço, mas não ficamos assim por muito tempo porque Helena me solta e começa a guardar as comidas embaladas em uma mochila. Fico ao lado dela o tempo todo, olhando para a janela. Vejo apenas a escuridão total, mas ainda não consigo me sentir segura.
Estamos no carro, saindo da garagem. Aquele desejo de ficar de repente já não está mais tão forte assim. Pelo contrário, sumiu quase completamente.
Fico no banco de trás enquanto Helena dirige até minha casa para que eu possa fazer minha própria mala. Donnie e eu observamos ao redor durante o caminho, ficando alerta a qualquer coisa que possa surgir de repente no escuro. Os faróis do carro são a única fonte de iluminação na área ao nosso redor, e aparentemente somos os únicos loucos na cidade com coragem suficiente para sair assim.
No entanto, não poderia estar me sentindo menos corajosa neste momento.
Chegamos até a minha casa, e desço do carro com as chaves na mão. Helena sai do carro também, mas olho para ela com reprovação.
— Não, você fica — tento falar com autoridade.
— Não vou deixar você sozinha.
— Irmã, tá tudo bem. Eu não vou demorar mais que dez minutos, e o seu marido com perna quebrada precisa mais de alguém do lado dele do que eu, tudo bem?
Ela hesita por um momento, mas então concorda e entra no carro. Pego a lanterna que estava ao meu lado no banco e fecho a porta. Luto para encaixar a chave na porta de entrada devido às minhas mãos trêmulas, mas então uma delas encaixa e vira. Entro em casa e vou diretamente ao segundo andar para não perder tempo. Movimentando a lanterna para todos os lados, pego máximo de roupas possível, mesmo que não vá precisar, e enfio tudo em uma mala de qualquer jeito.
Não se passaram sequer cinco minutos e já estou de volta ao primeiro andar, apressando o passo para chegar logo de volta ao carro.
Mas um som estranho vindo da parte de trás da casa me faz parar subitamente. Me viro devagar tentando identificar.
Parece... choro? Tem alguém chorando no meu quintal de trás?
Não sei o que fazer. Posiciono a mala em pé ao lado do sofá da sala e caminho lentamente em direção ao som, mesmo sabendo o quão má ideia isto é.
Conforme chego mais pero, percebo claramente um choro feminino, e sei que não é nada bom. Ilumino o quintal através da porta de vidro dos fundos e enxergo uma figura sentada em frente à cerca de madeira que divide a minha casa das outras, e ela olha para mim assim que a luz a atinge.
O quintal é pequeno, mas ela deve estar chorando muito alto para que eu conseguisse ouvir de onde estava, ou então eu tenho super audição. A mulher se levanta e então consigo identificá-la.
É Rachel. Ela vem na minha direção, e percebo que estou boquiaberta.
— Me ajuda! — ela bate no vidro, eufórica — Me deixa entrar, por favor!
Duvidando da situação, ergo as sobrancelhas, mas abro a porta e deixo com que ela entre. Aos prantos, ela me abraça quase sem forças.
— O que você está fazendo na minha casa?!
— Perdão, eu não quis te assustar, eu juro! Eu só... eu, eu entrei em pânico quando tudo ficou escuro e saí andando de casa em casa até perder a noção de onde estava.
Ela tem dificuldade em se explicar, então me sinto culpada por ter ficado brava com ela. Seguro sua mão e a levo até a cozinha.
— Não, está tudo bem. Você precisa de um pouco de água.
Posiciono a lanterna na mesa da cozinha direcionada ao teto, e assim o ambiente todo se ilumina, mesmo que minimamente. Encho um copo com água do filtro e entrego a Rachel, que ainda treme.
— Engraçado como, dentre todas as casas por aqui, você veio parar justamente na minha não?
Ela ri, talvez um pouco envergonhada.
— Juro que não foi de propósito.
— Tenho certeza que não.
Então, subitamente, a geladeira apita, como acontece quando a energia volta. Vou até o interruptor da cozinha e consigo ligar a luz. Olho incrédula para Rachel, que sorri enquanto dá seu último gole.
— Caramba — diz ela.
— Pois é.
Não consigo acreditar que estou vendo luz de novo, por mais que tenha se passado apenas algumas horas. Ainda assim, parece inacreditável.
Me viro novamente para Rachel, pensando em convidá-la ao carro de Helena para que a levemos para casa, mas paro antes mesmo de abrir a boca.
Rachel está em pé, olhando fixamente para mim com um sorriso. Assim como o pastor Felix, mas seus olhos de cores diferentes parecem ainda mais profundos que os dele. Ela puxa o vestido decotado para baixo, exibindo uma grade parte dos seus seios.
— Você não tem vontades olhando pra este corpo?
A pergunta me choca.
— O quê? Não! — tenho, sim. — Do que você está falando?
Ela se vira de costas para mim. Talvez seja o momento de eu me levantar e simplesmente sair, deixa-la sozinha aqui. Mas então paro de pensar na possibilidade, chocada com o que vejo.
Ela abriu o zíper do vestido, que agora está caído no chão. Com classe, desce do salto alto. Vejo suas costas e... bem, sua bunda. Sua silhueta parece uma escultura, com acabamentos nos mínimos detalhes. Sinto meu rosto esquentando.
Rachel fica de frente para mim novamente totalmente nua. Estou chocada demais para esboçar qualquer reação.
Seus lábios erguem-se novamente, formando um sorriso provocativo. O que ela está fazendo? O que ela quer comigo?
Se não fosse tão estranha, e se não fosse a situação bizarra, eu poderia estar aproveitando melhor isto aqui.
Mas essa mulher é completamente louca. Sinto isso se confirmando cada vez mais quando ela, de olhos fixos nos meus, se aproxima e pega o copo vazio da água que bebeu. Não vejo isso pois ainda estou com o olhar direcionado a ela, mas ouço o barulho do vidro se chocando com o mármore.
— Sabe, Sarah, você poderia ter ficado longe dos meus negócios. — Rachel diz de repente, me acordando do meu estado de choque. — Você se meteu onde não devia.
— O quê?
Seu sorriso erótico é desfeito. Agora ela não expressa nenhuma emoção. Está com a postura ereta, e abre bem as pálpebras de seu olho direito com os dedos. Utilizando a outra mão, Rachel enfia as unhas dentro de seu olho e o arranca.
Sangue cai no balcão. Ela não grita, mas eu, sim. Meu coração acelera, e espero, em vão, acordar deste sonho bizarro.
Percebo que a coloração do sangue está mudando. Passa de vermelho para roxo, e então para azul.
Nunca, em toda a minha vida, imaginei que veria algo assim. O que está na minha frente agora não é mais Rachel, e sim um ser esquelético de pele fina, espinhos saindo de suas costas, e um coração azul pulsando compulsivamente dentro da caixa torácica do que quer que seja esta criatura. Sua cabeça é um crânio fino e cheio de dentes, mas apenas dois buracos vazios no local onde deveriam estar os seus olhos.
Os braços do esqueleto se levantam, e suas garras azuis metalizadas vêm em minha direção. Ouço apenas um som semelhante a um rugido, mas que não se parece com nada que já tenha ouvido antes, e então apago com o toque do ser em meu pescoço.
O que achou do capítulo? Gostou? Comente pra eu saber, e não esqueça de votar. Até o próximo!
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