16
New Chamor, 1 de janeiro de 2018
03:33
12 dias
Ela já saiu há algumas horas, mas seu rastro obscuro e gélido ainda perdura no ambiente. Ainda luto para afastar os pensamentos que foram instaurados a força em minha mente. Sinto que já me acostumei ao escuro e consigo quase enxergar, então dou uma olhada ao meu redor. Percebo que a Lacuna levou um dos homens para se "alimentar", então agora somos apenas eu e Lilith.
Não consigo entender porquê não chegou mais ninguém depois de mim. Eu sou especial por algum motivo? Aquela que a Lacuna escolheu para ser a última antes de executar a próxima parte de um plano? Não sei explicar, mas sinto que é justamente isso o que está rolando. Ela vem preparando algo, não sei bem o quê, mas tenho certeza de um grande acontecimento está por vir.
E sei também que não é nada bom para ninguém além dela.
De qualquer forma, Lilith é a próxima. E então, depois dela, eu.
Não posso ficar aqui parada sem fazer nada. Sei que quando chegar a minha vez, não será um bom fim. Não quero isso, ninguém em sã consciência iria querer. Preciso fazer algo, e rápido.
— Ei — digo a Lilith num sussurro que acaba saindo alto demais. — Tá acordada?
Ela não responde, mas não consigo deixar para lá. Tateio ao redor procurando a maçã que não terminei de comer porque estava com um gosto estranho e a arremesso em sua direção. Ela então acorda assustada.
— Calma, sou eu. Preciso falar com você.
— Se não é uma praga dos internos com sangue azul me atormentando, é você me tacando uma... — irritada, Lilith pega a maçã e tenta identificar — o que é isso?
— Não importa. Olha, ela levou o cara. Você não acha que passou rápido demais desde a última vez que ela levou alguém?
Ela não parece entender meu raciocínio, pois demora a responder.
— Como assim?
— Olha, o ultimo que ela tinha pego pareceu durar bastante tempo pra alimentar ela. Agora, o tempo entre ela levar um e outro diminuiu alguns dias. Eu fico pensando se ela não ficou mais faminta ou algo assim.
— Talvez ela esteja com... — Lilith parece ter interrompido uma frase mais do que tê-la deixado em aberto. Me pergunto o que ela tentou esconder, mas logo não me importo mais.
— De qualquer maneira, não temos muito tempo. Olha, eu acho que é tranquilo fazer um buraco no teto e escalar, o problema são essas algemas aqui. Você tem alguma presilha de cabelo ou algo assim?
Silêncio. Não tenho certeza de que Lilith está entendendo minha ideia.
— Você quer... fugir?
— Eu pensei que fosse óbvio! Você não quer?
— Olha, Sarah, eu estou aqui já faz um bom tempo. Aprendi a aceitar, sabe? — ela faz pausas curtas entre as frases. — E eu não tenho nada lá fora pra quem voltar. Nada nem ninguém.
— Então vem comigo! A gente pode fugir juntas, recomeçar em um lugar bem longe daqui! Você não quer nem tentar?
Mais uma vez, faz-se um silêncio tão sólido que sinto poder até tocar.
— Você quer mesmo ficar aqui? Ser torturada e devorada por aquela coisa?
— Não é o que eu quero, mas o que eu posso fazer? Seja racional, Sarah, como é possível se livar dessas algemas? Por mais que eu realmente quisesse tentar, seria impossível! Qual é o seu plano?
Penso por um segundo antes de responder.
— Não sei. Não sei, mas eu vou pensar. Vou pensar em algo infalível, e então a gente vai sair daqui e nunca mais ter que olhar aquele ser asqueroso e azul. Você topa?
— Sarah...
— Você topa?
A resposta demora, mas vem:
— Tá. Vamos nessa.
New Chamor, 13 de janeiro de 2018
18:13
5 horas
Tenho passado os últimos dias comendo o mínimo que consigo, apenas o suficiente para me manter viva. São dois motivos: precisamos ficar magras o suficiente para que os pulsos e tornozelos fiquem mais afrouxados nas algemas e queremos que a Lacuna perca o apetite ao nos ver tão fracas e sem carne para saborear. Temos feito isso há tempo suficiente e acho que em breve posso tentar executar o plano que fiz na mente.
Nossas "refeições" são sempre super gordurosas e calóricas, e isso pode nos ajudar. Acho que a Lacuna já está de saco cheio em nos ver comendo apenas algumas mordidas pequenas todas as vezes, mas ainda não falou nada sobre isso. Ela deve estar ocupada com outra coisa, e essa possibilidade me deixa muito nervosa por não ter ideia alguma do que seja.
Aguardo sua chegada rotineira com o nosso jantar, que é o mesmo hambúrguer de fast-food de sempre. Se ela estiver de bom humor, inclui algumas batatas fritas. Espero que seja o caso hoje, porque preciso do máximo de óleo possível esta noite.
— Lilith.
— Sim?
— Tem que ser hoje. Não dá pra adiar mais.
— Eu sei — sinto um tom de preocupação em sua voz. Ela não parece muito segura. — Mas é tão arriscado...
— Temos que ser rápidas. Você sabe que ela pode perceber e nos pegar no flagra.
— Ela é inteligente. Temos que ser mais.
Estremeço ao escutar o típico som de passos na madeira vindo em direção à escada. Respiramos fundo tentando nos acalmar. A Lacuna abre a porta e a opaca luz da cabana invade o ambiente em que estamos. Ela está novamente possuindo o corpo de Rachel.
— Boa noite, imundas — ela arremessa uma embalagem de papel para cada uma. — Espero que comam tudo dessa vez. Caso contrário, serei obrigada a tomar atitudes drásticas.
Não respondemos. Ao invés disso, apenas pegamos os papéis e examinamos seu conteúdo.
— Vocês estão quietas demais. Querem conversar?
Permanecemos caladas. Ela entende isso como uma afronta.
— Saibam que algo grandioso está por vir. Quero manter vocês duas vivas para presenciarem. Saibam que esse é o único motivo de estarem aqui. Volto mais tarde para contar as novidades.
A Lacuna sorri, fecha a porta e sai. Sinto arrepios invadirem todo o meu corpo, juntamente com a certeza de que não podemos esperar mais um minuto sequer.
— Vamos! — ordeno a Lilith assim que tenho a certeza de que a Lacuna já está longe e não nos ouve mais. — Comece a tirar.
Tiro o conteúdo da minha embalagem e dou graças ao universo por ter aqui tudo o que eu preciso. Um lanche que parece infringir todas as normas da vigilância sanitária e uma pequena porção de batatas fritas no óleo mais gorduroso existente. Não acredito que ela nunca pensou que isso pudesse nos ajudar a sair daqui.
A primeira coisa que faço é pegar algumas batatas e espremê-las no meu pulso esquerdo. Quero tirar um de cada vez, pois sei que terei muito mais dificuldade com os pés, e preciso de mais liberdade quando chegar neles. Penso em perguntar a Lilith se está dando certo com ela, mas não quero me distrair. Preciso de toda a concentração do mundo nesse momento.
Minha pele já está machucada pelo atrito com as algemas. Puxo com toda a força que tenho enquanto sinto a gordura escorrer pelo meu braço, mas só o que sinto são pequenos cortes sendo formados e a dor da queimação.
Meu coração acelera cada vez mais enquanto penso na possibilidade de a Lacuna chegar de repente e descobrir o que estamos fazendo. Involuntariamente, meu cérebro cria cenários com os piores castigos que poderíamos receber caso isso aconteça, e apenas fico ainda mais tensa e preocupada.
— Não tá funcionando! — reclamo em meio a gemidos de frustração, desconforto e dor. — Que droga, eu jurava que ia dar certo.
— Continua puxando! — Lilith também se esforça o máximo que pode. Ouço o barulho da corrente se movimentando sem parar e os gritos que ela tenta conter. — Uma hora tem que sair!
Espremo mais um pouco de gordura com a mão boa e logo sinto uma parte do pulso finalmente passar pelo aro. A sensação que tenho é de que minha mão pode ser arrancada fora, mas mesmo assim continuo puxando e, depois do que parecem horas tentando, enfim minha mão esquerda é liberta. Sinto um pouco de sangue escorrer e se misturar com o óleo, mas esse pequeno incômodo não é nada comparado à situação como um todo. Grito me sentindo realizada, mas logo percebo que ainda falta a outra mão e então os pés.
— Deu certo! Lilith, deu certo, vamos continuar!
Ela não diz nada, e entendo os motivos. Precisamos de concentração pura nesse momento. Paro um momento para respirar, mas não posso me dar ao luxo de descansar. Molho o pulso direito e começo a puxar.
Sinto a queimação piorar a cada segundo que passa. Estou levantada agora, apertando com o pé a corrente que prende a algema e puxando o braço na direção contrária. Sinto que meus ossos podem realmente se soltar a qualquer minuto, e é assim que se perde uma mão de maneira rápida e fácil, no conforto do seu lar. Mesmo que no momento eu não esteja confortável e nem em um lar.
Parece que de alguma maneira peguei o jeito de fazer isso mais facilmente, pois agora minha outra mão está livre em menos tempo. Agora, a parte mais difícil. Imagino que os pés sejam ainda mais complicados que as mãos. Me apresso em tirar as botas e pensar calmamente em uma maneira de fazer isso. Me encosto na parede e inclino a cabeça para trás a fim de imaginar uma solução. As algemas prendem minhas canelas muito firmes, e parece ser impossivel passá-las como fiz com as mãos.
— Aquela vadia sabe como prender alguém — diz Lilith, sentada. Vejo que também já está com as mãos soltas, mas, assim como eu, não consegue soltar os pés.
— Tem que haver algum jeito. A gente só precisa analisar bem a situação.
— Sarah.
— O que foi?
Ela suspira de frustração.
— Não tem jeito. A gente tentou, mas não vai dar certo. Vai acabar quando ela chegar e perceber que tentamos fugir.
— Não! — grito alto demais, mas já não me importo. — A vida inteira eu tive uma visão pessimista do mundo, sempre pensei que tudo dá errado! Mas agora definitivamente não é um momento pra continuar assim, entende?! Eu tenho uma irmã pra ver, uma vida pra continuar! Eu não vou desistir! NÃO VOU!
Me viro para a parede, seguro a corrente que prende meus pés e começo a puxar. É uma parede de madeira fina, e imagino que talvez eu possa causar algum estrago. Puxo como se minha vida dependesse disso — e realmente depende. As palmas das minhas mãos estão quentes e doem, mas continuo puxando. Impulsiono mei corpo para trás repentinas vezes até começar a cansar. No entanto, não paro.
Não sei dizer há quanto tempo estou assim, nem o que Lilith está fazendo, pois estou cem por cento focada na minha ação. Se quero viver, preciso arrancar essa corrente agora.
Sinto meus braços e costas queimando pelo esforço inacreditável, e quase penso em desistir. Mas então, de maneira quase inacreditável, a corrente se desprende da madeira e eu caio para trás. Bato o cóccix no chão e sinto uma dor insuportável, mas que não é absolutamente nada comparada ao sentimento de liberdade. Sinto lágrimas surgirem em meu olhos, as lágrimas mais felizes de toda a minha existência.
— Consegui! Deu certo! — digo com a voz embargada para Lilith, que apenas sorri sem dizer nada. Ela está sentada, ainda presa à corrente pelos pés. — Vamos! Precisamos sair daqui.
— Não, Sarah, eu não vou.
— Por que não? Isso é ridícula, você está sendo uma burra, sabia?
— Sarah, eu não tenho absolutamente nada lá fora. Sei que é difícil pra você me deixar pra trás, mas é o que você precisa fazer. Vai. Sobe e vai embora. Comece uma nova vida, tá bom?
Vejo lágrimas em seus olhos, mas não de alegria como as minhas.
— Não. Não, por favor, não. Você precisa vir comigo.
— Sarah, fuja antes que ela volte. Por favor. Você não pode ficar aqui por mais nem um segundo sequer.
Ela segura as minhas mãos para me confortar. Começo a chorar, mas agora em outro sentido.
— Eu adoraria ter conhecido você em outra situação — diz, com a voz embargada. — Você é incrível. Por favor, fuja agora.
Ela tira seu sobretudo e me entrega para vestir lá fora. Ele está com algumas manchas de sangue já secas, mas não me importo e o visto mesmo assim.
Solto suas mãos e limpo as lágrimas. Olho na direção do buraco na terra acima de nós, no canto do porão, que já havia percebido no meu primeiro dia aqui. Vou pulando até ele, pois meus pés ainda estão presos um ao outro pela algema, e começo a escalar. É difícil, mas logo consigo me agarrar no chão de terra e sair. Antes disso, olho para Lilith uma última vez para me despedir.
Está de noite e não enxergo muito bem, mas logo me levanto para pensar no que fazer. Antes de qualquer coisa, procuro uma pedra grande e afiada e golpeio a correntinha da algema até separá-la. Agora consigo andar e correr normalmente.
Mal posso acreditar. Depois de tantos dias, finalmente aconteceu.
Eu estou livre.
Nota do autor: sugiro que leia o prólogo novamente antes de prosseguir ao próximo capítulo, para um melhor entendimento da história.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro