Capítulo 01
Alguns anos depois.
Havia sido um dia de frio intenso, pensou Bibiana quando sentiu o calor a abraçar assim que pisou em casa. O cheiro das especiarias que Matilde usava nos doces que estava preparando aguçou seus sentidos e a fez se sentir em casa, mesmo que às vezes ela pudesse se sentir uma estranha no próprio ninho.
Santa Rita sempre foi seu lar, havia nascido em um dos quartos da casa grande em uma manhã de verão, correra entre os pastos e aprendera a cavalgar na companhia dos filhos dos peões, e essas eram razões suficientes para que se sentisse parte do lugar. Mas não acontecia exatamente dessa maneira quando lembrava que fora ali que sua mãe vivera aprisionada em um casamento sem amor. E agora, bem agora, existia amor de sobra dentro de casa. Juan e Matilde eram felizes e Santa Rita merecia ser mais deles do que dela. Eles se esforçavam para que ela se sentisse parte do mundo deles. E quando não eram eles, eram suas outras irmãs que a chamavam para dividir suas vidas, como se a felicidade pudesse ser compartilhada de igual maneira para todos.
E assim os dias se perdiam nas noites para que uma estação se seguisse a outra.
No inverno, quando a geada cobria de branco os campos, e o vento assobiava forte, a nostalgia de um futuro que não vivera a assombrava para lembrá-la que o mundo era maior do que a Estância Santa Rita. E que por mais feliz que sentisse ao lado das irmãs, ela ainda não conseguira descobrir o que realmente a fazia feliz. Aquela ânsia de desbravar o mundo, de interpretá-lo por sua conta e risco ainda era o motivo que a mantinha acordada nas madrugadas.
— Finalmente chegou! – Matilde a encontrou no vestíbulo pendurando seu poncho no cabide. A esposa do irmão era uma alma cuja alegria era contagiante e era ela quem evitara que o lugar tivesse se transformado num túmulo depois da morte do coronel. — Estávamos preocupadas com você, Bibiana. Passou o dia no campo. Espero que tenha comido a marmita que lhe enviei.
— Como seu eu não pudesse cuidar de mim mesma e não conhecesse muito bem a região. – Bibiana revirou os olhos ao notar que a cunhada e Dolores se preocupavam à toa. — Sem Juan, a lida aumentou – explicou. — Obrigada pelo almoço delicioso que enviou.
— É corajosa, nós sabemos – retrucou Matilde. — Também sabemos que cavalga como ninguém e sabe usar uma espingarda muito bem, mas não é invencível, devo lembrá-la caso tenha esquecido.
Bibiana sorriu e se aproximou para beijar a cunhada no rosto.
— Como estão as crianças? – perguntou sobre os sobrinhos, um casal de gêmeos que costumava ser a alegria da casa, a esperança que Santa Rita esperava para prosperar.
— Estão lá em cima brincando. Não sei mais o que inventar para amenizar a falta que o pai lhes faz – comentou Matilde. — Juan os acostumou muito mal e agora que está longe tem feito muita falta às crianças.
E Bibiana precisava concordar que Juan estragava as crianças enchendo-os de mimos, mas era impossível julgá-lo quando se esforçava para dar aos filhos o que não teve em sua infância: um pai amoroso e presente.
— Só às crianças? – perguntou, os lábios se arqueando em um sorriso de quem sabia os segredos mais íntimos do casal.
— Não só as crianças, eu estou enlouquecendo de saudade – confessou a alemã. — Não deveria rir do meu desespero – reclamou.
Bibiana se sentiu culpada pelo comentário que não conseguiu evitar, não teve a intenção de ser impertinente, mas acabou causando dor à mulher que enchia a vida do irmão de amor e esperança. Por isso se aproximou dela a pegou pelas mãos.
— Não me interprete mal, Matilde. Eu apenas quis dizer que você é quem está sentindo mais a ausência do meu irmão. E então são três que se reúnem para sentir saudade, você e as crianças.
— Seu irmão é o homem que eu amo, Bibi, além de ser os pais dos meus filhos. Acho justo que eu sinta saudade.
— Não posso discordar. – Bibiana decidiu não contrariar uma mulher apaixonada que estava sentindo saudade. Mas lá no fundo de sua alma, a intrigava os motivos para que uma mulher devotasse tanto por um homem. A liberdade que tinha de ir e vir e decidir sua vida não permitia que ela pudesse considerar a ideia de um homem dizendo a ela o que deveria fazer e quando deveria fazer.
— Eu sei o que está pensando. – Matilde a estudou com o canto dos olhos enquanto se afastava para encontrar um lugar para se sentar perto da lareira.
— Não estou pensando nada demais – reclamou Bibiana.
— Você nos julga tolas por amar – protestou Matilde.
— Não as julgo não! Só tenho um posicionamento diferente acerca do casamento – rebateu a acusação. — Bem sabe que se cada um dos meus pretendentes não tivesse alimentado a presunção de me transformar em uma dama recatada, talvez eu teria considerado a ideia de me casar.
— Por isso decidiu ser solteira. E os filhos, Bibi? – Matilde se esforçava para entender a complexa mente da cunhada.
— Tenho meus sobrinhos e isso me basta. – Ela sorriu e gesticulou para contar o número de sobrinhos que já tinha. — Ser a melhor tia do mundo me deixa feliz.
— E o que me diz sobre a paixão? Jamais se renderá ao prazer de pertencer aos braços de um homem. – Matilde se sentou na cadeira em que costumava embalar os filhos e encarou a cunhada com seus imensos olhos azuis. Bibiana desconfiava que foram os belíssimos olhos dela que encantaram o irmão.
— E quem disse que não provei da paixão? – devolveu a pergunta.
Matilde foi pega de surpresa com a revelação e levou a mão na boca para conter o espanto.
— Quer dizer que você... – ela não sabia como se referir ao que estava suspeitando. — Que você se entregou a um homem.
— Sim! E detestei. – Bibiana foi prática para evitar mais falatório; além disso sabia que Matilde não a delataria para Juan. Seu segredo estava a salvo.
— Ah não! – Matilde a segurou pelo braço quando percebeu que a cunhada fugiria da conversa. — Não pense que solta o que soltou e acha que pode me deixar sem os detalhes. Sempre foi como uma irmã para mim e mereço saber.
— Não há nada demais para contar. – Bibiana revirou os olhos ao lembrar que as pessoas valorizavam em demasia o ato carnal. — Eu não vi nada demais. Para ser sincera, eu detestei a experiência. – Matilde abria e fechava a boca com os olhos esbugalhados diante da surpresa de descobrir que a cunhada não era mais virgem. — Foi com um tropeiro... Ele era bonito e se interessou por mim. Então, pensei que poderia descobrir o que acontecia realmente entre um homem e uma mulher e matei a curiosidade.
— Estou vendo que sim! – Foi a vez de Matilde ser sarcástica. — Mas decidiu fazer isso com o homem errado. Não me parece que tenha aproveitado o encontro da maneira correta, mesmo que a ponto de afirmar com tanta convicção que não quer repetir porque detestou. De minha parte, eu não tenho do que reclamar.
— Pois eu sei que não! – Bibiana precisava admitir que a cunhada e o irmão costumavam ser muito barulhentos nas madrugadas, quando acreditavam que a casa dormia e que ninguém poderia ouvi-los. Mas ela sofria de insônia mais vezes do que gostaria e isso a fazia ter um vislumbre do que um casamento por amor poderia significar entre quatro paredes. Não apenas por Matilde e Juan, mas também por Lucila e Peter, e Aurora e Matteo, ela sabia que o amor poderia acontecer e não o negava. Por outro lado, o amor nunca lhe demonstrou ser uma possibilidade segura; exigências e renúncias poderiam acabar com o pouco que restara de sua alma.
— Pois deve dar uma segunda chance, Bibi. O homem que escolheu não foi o certo e isso lhe conduziu a uma péssima experiência – argumentou Matilde, convicta de que a cunhada havia escolhido o homem errado para se entregar.
— Ah – Bibiana gesticulou no ar —, fala a mais experiente das mulheres. Até onde sabemos meu irmão foi seu único homem.
— Não pretendo ter outros, porque tive a sorte de escolher o certo de primeira.
— Uma mulher direita não deve ter mais que um homem, eu sei. – Não conseguiu evitar de ser ácida.
— Não foi isso que falei, Bibi. Mas sempre costuma atacar as pessoas para se defender. – Matilde não era o tipo de mulher cujos brios a impediam de dizer verdades para quem precisasse. E era isso que Bibiana mais admirava na alemã, sua tenacidade em perseguir o justo quando os discursos tentavam encobrir as evidências para confundi-la. — Não deu certo a primeira vez, mas pode dar na segunda – prosseguiu. — Toda mulher merece sentir prazer nos braços de um homem. A intimidade entre um homem e uma mulher não é apenas sobre amor, minha querida. É sobre prazer, para isso acontecer precisa existir cumplicidade e confiança. E nada como confiar no amor de nossas vidas.
— E voltamos ao amor – concluiu Bibiana. Tudo sempre giraria em torno do amor e o amor seria a justificativa perfeita para praticamente todas as felicidades e infelicidades do mundo. O problema do ser humano era dar muito valor a um sentimento que nem sempre era sinônimo de felicidade. E até que lhe provassem o contrário, ela iria sim fugir do amor. Aliás, ela sequer havia sido tocada pelo cupido para ter que se dedicar a uma fuga. Estava muito bem desse jeito.
— Porque o amor move as pessoas para que encontrem sua melhor versão – emendou Matilde.
— Veja bem, Matilde. – Ela levantou o dedo em riste. — Não nego que as pessoas possam se amar. Você e minhas irmãs amam os maridos e são felizes porque eles as amam de volta. A questão é que não nasceu um homem para mim. Os homens se assustam comigo quando descobrem que atiro melhor do que bordo e que detesto cozinhar. E então quando se interessam, insinuam que devo mudar e isso eu não quero. Meu pai foi o último homem que deixei que me controlasse.
— Não seja modesta, pois sabemos que você borda melhor que eu. – Matilde curvou o corpo e pegou o atiçador de ferro para mexer nas brasas da lareira.
— A questão é que não gosto de bordar, embora eu possa bordar muito bem. – Bibiana explicou seu ponto de vista.
— A verdadeira questão, se me permite, é que ainda não chegou o homem valente que vai fazer par com a irmã-onça. – Matilde sorriu e piscou. — Mas ele ainda pode chegar. – Ela se levantou ao ouvir batidas na porta e começou a caminhar para atender. — Eu ainda acredito que esse homem vai chegar.
— Espero que não seja para me domar – Bibiana comentou baixinho, pois a chamavam de irmã-onça e não negava que era dona de uma personalidade nada dócil, mas a irritava quando a apresentavam para cavalheiros com espírito de domador, como se ela fosse um animal exótico comprado para ser exibido em um circo.
— É um dos filhos do capataz. – Matilde espichou a cabeça para poder falar com Bibiana. — Ele diz que as mulheres viram gente estranha lá pelas bandas das macieiras.
— Ah não acredito! – Bibiana apareceu de repente atrás de Matilde, pegou seu poncho e o jogou nos ombros.
— Não pensa em ir sozinha – Matilde a repreendeu quando percebeu que a cunhada estava se preparando para sair de novo de casa.
— Ficar aqui de braços cruzados é que não vou – ela respondeu, séria, enquanto tirava a espingarda debaixo de uma tábua solta do assoalho. Matilde a acompanhava com os olhos. — Guardar armas dentro de casa é muito importante quando estamos sozinhas, não acha? – justificou-se ao perceber que a cunhada não gostou de descobrir que ela guardava armas dentro de casa.
Matilde não respondeu, apenas a abraçou quando se levantou do chão.
— Cuide-se, por favor! Se algo de ruim acontecer a você, Juan não vai me perdoar. Logo vai escurecer – a lembrou.
— Devo dizer o mesmo para você, Matilde. Se algo de ruim acontecer à mulher que meu irmão ama, ele jamais me perdoará. Suba para ficar com as crianças. Fique calma que não pretendo ir sozinha – prometeu e se despediu.
***
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