Thunder: 002
— Não é possível, droga. Por que justo ela é quem está aqui? Tsc, quais as chances?
— Qual é o problema, guria? Quem é essa de quem está falando?
Minhas patas caninas me fizeram alcançar Yuna sem o mínimo de esforço antes que ela chegasse na metade do trajeto. Agora, caminhando ao lado dela, escutei seus resmungos sobre aquela pessoa vasculhando uma van em uma usina de vento na madrugada. E claro, pela forma como a Assassina de Youkais estava agindo, eu não pude conter minha curiosidade.
— Se meus olhos não estão me enganando, seu pamonha, e dificilmente me enganam, aquela pessoa é uma pedra no sapato que não vejo há algum tempo. É alguém que nos oferece perigo e deve ser erradicada a qualquer custo.
— Perigo? Ela não me parece perigosa...
— Mas ela é, Ulim. Poucas pessoas são mais perigosas do que ela no Japão, ou talvez em todo oriente. Se ela está aqui... se ela for parte do NIP... eu fiz muito bem de ter vindo preparada para o pior. No passado, eu não era párea para ela. Mas hoje, depois de tudo o que passei nesses últimos dois anos, creio que esteja à frente de uma oportunidade rara.
— Guria...
Seus olhos azul-escuros brilhavam com uma fortíssima determinação, e eu sabia que até mesmo cogitar interrompê-la seria uma forma gourmet de suicídio.
Seus passos finalmente cessaram, já a colocando sobre a área cimentada onde aquela pessoa se encontrava.
O ruído gerado por nossa chegada chamou a atenção da garota vasculhando a van. E ela, que estava inclinada para dentro do automóvel como se procurasse por algo, ajeitou sua pose lentamente, enquanto suas mãos assumiram o trabalho de fechar as portas traseiras da carruagem.
Ela se revelou por completo para nós, se virando como se já soubesse exatamente quem estava ali.
— Ora, ora, se não é a ovelha negra, Slim Shady. Você era a última pessoa que esperava encontrar por aqui.
— Digo o mesmo para você, Abelha Trovejante.
A garota à nossa frente, cujo a guria chamou de Abelha Trovejante, tinha o estilo peculiar como o de nossa querida Assassina de Youkais. Sua aparência era bem diferente do que se espera encontrar em uma região do interior, mas não tão excêntrica se compararmos com o que observávamos em Kabukicho por exemplo. Seus traços eram mais puxados para o chinês, mesmo que fosse possível perceber pequenos detalhes de aspecto japonês em seu rosto. Seus olhos eram escuros, assim como uma parte de seu cabelo, já que a outra parte, presa em um rabo de cavalo ao lado esquerdo de sua cabeça, era tingida por um amarelo marcante, com três listras pretas ao longo daquela mecha. Na face, piercings. Um em seu lábio inferior, dois abaixo do olho esquerdo. E na orelha direita, um brinco alargador.
Em seus pés, assim como Yuna, um par de tênis de basquete brancos. Seguindo para cima, suas pernas estavam despidas, e em sua panturrilha direita havia uma tatuagem de uma máscara de Tengu. No torso, indo dos ombros até a metade de suas coxas, uma camiseta de football americano grená, com o número 91 estampado à sua frente sob o nome Pequim, ambos em amarelo.
Seu cheiro era novo para mim. Uma grande mistura de odores que poderia me desnortear se eu me concentrasse em analisar à fundo.
— Tenho que ser honesta, ovelha negra, seu rosto fica bem mais bonito sem aquela máscara que usava. Até parece que foi feita em um computador, mas ao mesmo tempo, é algo tão natural. Como foi sua vida na escola sendo observada sempre de baixo? Deve ter feito bem para o ego.
— A escola não foi tão simples para mim quanto imagina, chiquitita. Aliás, vamos direto ao ponto, está bem? O que você faz aqui nesta usina de vento?
— Estou cuidando de alguns assuntos pessoais, só isso. Não é nada com o que precise se preocupar. Oh, fiquei sabendo que deixou o Mandarim...
— Não tente mudar de assunto. O que tem na van?
— Ora, ovelha negra, você é sempre um poço de curiosidade, não? Mas, acho que o que tem ou deixa de ter na minha van só diz respeito a mim. Deveria arranjar algo para fazer em vez de ficar vasculhando as coisas dos outros. A propósito, esse lobo ao seu lado é adestrado?
— Não se dirija a ele assim, chiquitita. E não se esquive de minhas questões dessa forma dissimulada. Se não me disser o que há dentro dessa van, ou o que está fazendo aqui, teremos de terminar o que começamos há quase dois anos. E desta vez, até a morte.
— Hmph, e não era essa sua intenção desde que começou a caminhar em minha direção, Slim? Por acaso se esqueceu do que sou, é? Não pode disfarçar sua intenção assassina para a filha de um deus.
Filha de um deus?
Em outras palavras, essa guria-abelha é uma... semideusa?
Com o que exatamente estávamos lidando por ali? A essência daquela guria era esquisita, de fato, mas não era como a de outros semideuses que já me deparei em algumas empreitadas com meu mestre.
Afinal, de quem aquela guria era filha?
— Bem, se já entendeu, chiquitita, não vai se importar se eu invadir seu espaço pessoal, não é? Quero muito saber o que você está escondendo nessa van.
Como se nada pudesse impedi-la de prosseguir, Yuna deu início a uma sequência de passos na direção da Abelha Trovejante e de seu automóvel branco. No entanto, aquilo que aparentava ser uma aproximação amigável, foi respondida de forma totalmente intimidadora e violenta. Ao que a guria chegou ao lado da guria-abelha, a um passo de ultrapassa-la e chegar às portas fechadas da van, uma luminosidade azulada pegou meus olhos caninos de surpresa. No instante seguinte, o corpo da Assassina de Youkais já havia sido lançado em pleno ar, indo parar na metade do percurso que caminhamos até aquela área cimentada.
Foi somente impressão minha, ou o que acertou a guria foi uma espécie de relâmpago?
O movimento foi mais rápido do que minha visão conseguia acompanhar, e por ter sido pego de surpresa, tornou bastante difícil distinguir do que se tratava.
Aquela chamada de Abelha Trovejante por Yuna se mantinha fixa no ponto onde estava, mas agora com o braço esquerdo estendido para frente e com seus dedos juntos apontando para o céu, como se tivesse empurrado a uma porta dramaticamente.
Faíscas elétricas piscaram à frente de seus olhos negros, e as peças começaram a se juntar em minha mente canina.
Seria ela...
— Raijin. Você é filha do deus do trovão, não é, guria?
— Hmm? É... sou sim, lobo locutor.
Phew.
Em que diabos eu acabei me metendo?
Eu já presenciei, como bem sabem, ou não, Yuna enfrentar diversos tipos de criaturas desde que comecei a fazer missões com ela na época da AAA. Porém, eu não era capaz de deduzir o desempenho da guria contra a prole de uma divindade como Raijin. Era até mesmo complicado lançar um palpite sobre o nível de poder daquela guria-abelha só com as informações que tinha e com aquela curtíssima demonstração de força.
— O que você é da ovelha negra, lobo?
A semideusa questionou a mim, enquanto seu braço estendido baixava tranquilamente. Como se a guria ao longe, cujo corpo estava estatelado no chão, não representasse a mínima ameaça para ela, seu olhar desviou de sua adversária e se focou completamente em mim.
— Eu sou um companheiro... sou o shikigami dela.
— Shikigami, é? Entendi. Significa que você também é um daqueles que atacaram a mim e ao meu colega dias atrás. Agora já entendi o porquê de estarem por aqui.
Ao finalizar sua sentença, os olhos negros daquela guria foram tomados por uma luminosidade branca e pequenos raios azulado começaram a saltar de sua pele para o solo. Logo em seguida, juntando suas pernas, a semideusa começou a flutuar, como se aqueles relâmpagos em miniatura a suspendessem como braços.
Subitamente, quase como se quisesse imitar a Abelha Trovejante, traços de eletricidade começaram a rasgar o céu límpido de primavera.
Aquilo estava me cheirando mal.
— Saia daí, Ulim!
— Hã?
Não houve tempo para uma reação da minha parte. Eu deveria ter entendido que todo aquele show de luzes não era para agradar a um líder de alcateia como eu. Com um simples gesto de seu braço, a guria-abelha, ou melhor, a guria-elétrica, fez surgir um relâmpago de sua mão para minha direção. O raio de energia azulada me alvejou com tudo na região de minhas costelas, e o choque, literalmente, produziu um clarão que fez arder meus olhos, antes de me lançar longe para trás, praticamente como realizou com Yuna.
Por algum motivo, o relâmpago não feriu minha carne ou pele, e a força de sua colisão não me jogou para tão distante como fez com a guria. Mas o motivo não me foi surpreendente. Sobre meu tronco, uma fina camada de gelo místico se formou escondida em minha pelagem, absorvendo parte do impacto do relâmpago e me protegendo dos efeitos daquele raio de energia.
Não era a primeira vez em que a guria criava aquele tipo de armadura para me defender, mas, das vezes anteriores, me recordo de ter sentido o gelo se formar sobre minha pele canina. Agora, posso estar tirando conclusões precipitadas, mas creio que Yuna tenha formado essa sobrepeliz no estado sólido da água na fração de tempo entre ela me dizer para fugir e o ataque da semideusa.
Isso era muito mais rápido do que das vezes no passado.
Dentro de um piscar de olhos, ela conseguiu me proteger de um relâmpago a queima roupa com seus poderes de gelo.
De qualquer forma, meu corpo canino capotou no solo e parou estendido de lado no gramado seco.
— Oh, você continua dura de matar, ovelha negra. E também vejo que ficou mais forte. Deve ter treinado bastante.
— Hmph, treino? Só andei estudando umas coisinhas, chiquitita, e nada além disso.
Com os passos farfalhando sobre a grama, Yuna já havia se levantado e se colocou um pouco à frente de meu corpo caído. Pelo caminhar seguro e pela forma que estava se portando diante daquela situação, parecia que não tinha acabado de ser jogada para longe por um mero empurrão no peito.
Quanta autoestima, não?
A isso, achei que deveria seguir o exemplo. Então funguei, e minhas quatro patas fizeram seu trabalho sujo de me levantar da grama.
— Agradeço, guria.
— Muito de nada, seu pamonha. É claro que eu não deixaria que essa chiquitita acabasse com meu cachorro favorito.
— "Favorito"? E você tem algum outro cachorro... digo, eu sou um lobo, líder de alcateia.
— Não ter um outro cachorro não me impede de criar uma lista de favoritos da espécie, não concorda?
— Mas eu sou um lobo, líder de...
— Está bem, está bem, já sei. Acho que não é o melhor momento para termos esta conversa, Ulim. Preciso dar um jeito naquela dali. É algo pessoal entre mim e ela, entende?
— Claro. Pelo o que consegui compreender, ela lhe conhece da época em que agia como ronin, estou certo? Ela te chama pelo seu codinome Slim Shady.
— Sim. Perspicaz como sempre, Ulim. Ela era uma das Vespas Mandarianas, a filha do deus do trovão, Nuwa Lei Feng.
— Ei, ei, o que está cochichando aí, ovelha negra? Eu tenho contas a pagar com você e com esse seu shikigami idiota. Seus companheiros me irritaram demais ao estragar minhas roupas favoritas!
Novamente, um único gesto de braço disparou um novo relâmpago em nossa direção. Mais precisamente, na direção da guria. Veio veloz, em uma fração de segundo, como um relâmpago deve ser. No entanto, esse novo raio de energia foi refutado. Ou melhor dizendo, foi simplesmente desviado.
Desviado por um tapa da Assassina de Youkais.
A guria meramente estapeou, com as costas de sua mão, o relâmpago que rasgou o espaço com sua luminosidade em nossa direção.
Mais à nossa esquerda, o raio colidiu com o solo, erguendo terra como a explosão de uma granada.
Como diabos Yuna fez isso?
Rebater um relâmpago, por mais que em miniatura, como se fosse uma bola de pingue-pongue, não era algo que pensei que a guria fosse capaz. Pelo menos, não com aquela facilidade.
Contudo, quando observei sua mão esquerda, entendi o que estava acontecendo.
A luva que ela vestia naquela mão revelou o segredo por trás de sua incrível façanha. Como se tingida completamente por sombras, seu acessório de uniforme mudou sua cor de branco para preto. O odor foi perceptível para mim, um pouco depois. O cheiro da magia negra começou a exalar do braço esquerdo da Assassina de Youkais.
Em sua panturrilha, a tatuagem de um enigmático kanji se fez notável antes de sua tinta ser absorvida pela pele de Yuna. Logo após, o odor da mana negativa tomou conta de todo corpo da guria, criando um perímetro circular à sua volta e se apresentando na forma de vapor negro ao seu redor. Esse mesmo vapor obscuro começou a transbordar da pele alva da guria, tingindo seu uniforme, seus tênis, e até seu famigerado gorro cinza, com a cor da mais sincera escuridão. Ao mesmo tempo, quase como se fosse um ato de rebeldia, seu longo cabelo negro, semelhante a uma cortina de sombras, tornou-se branco, branquíssimo, como uma catarata da mais pura neve.
Enfim, o vapor se dissipou, e o cheiro da energia corrompida diminuiu.
O ritual de sua forma escura estava completo.
O poderoso Modo Morgana.
— Oh... — Devagar, os pés da semideusa se reaproximaram do chão, a pousando suavemente no solo, enquanto o show de luzes à sua volta cessava junto de seus olhos luminosos. — Olhe o que temos aqui, ovelha negra. Parece que você realmente quer brincar de deus e o diabo, não é? Você me surpreendeu com essa. Uma hanyou usando das artes das trevas para se tornar mais forte. Como você é ambiciosa, hein. Sabia que não me decepcionaria, Slim Shady.
— Hmph... eu não utilizo mais esse codinome, Nuwa. Se vamos resolver nossas diferenças de fato, quero que saiba o real nome de quem a levará desta para uma melhor.
— Hmm, e qual seria seu nome de verdade?
— Nate. Yuna Nate. A Assassina de Youkais.
— Yuna, é? Entendi. Então, quer dizer que a lenda urbana de internet é real. A garota de gorro cinza e com poderes de gelo. Não posso dizer que nunca suspeitei, mas as descrições são bastante vagas sobre você. Sua alcunha é bastante respeitada no mundo do assassinato sobrenatural. Meus parabéns.
— Eu não sou chegada a levar elogios para o coração, chiquitita, mas fico feliz que agora entende com quem está lidando. Sem mais máscaras entre nós.
— Você era a única que usava uma máscara, ovelha negra. Eu nunca precisei mentir sobre quem sou. Fico pensando o que levou a tão temida Assassina de Youkais a se esconder atrás de um codinome como Slim Shady. Estava com medo que parte de seus inimigos soubesse que estava dividindo o mesmo hotel do que eles, é? Deve ter passado muitas noites em claro.
— Tsc...
— Mas tudo bem, Yuna. Águas passadas não movem moinhos, não é? Pelo o que vejo, você dará o seu melhor para terminar o que começou há quase dois anos. E eu vou lhe dar o fim que deveria ter lhe dado. Pois venha, Assassina de Youkais. Faça o seu pior.
— Está bem. Aí vou eu.
Subitamente, apenas deixando um humilde rastro de vapor negro onde no décimo de segundo anterior se encontrava seu par de tênis de basquete, a guria se deslocou mais rápida do que as leis de causa e efeito. E antes mesmo de meu cérebro canino aceitar que ela havia desaparecido da minha frente, Yuna surgiu como se em um passe de mágica às costas da Abelha Trovejante.
Por sobre o ombro da guria-elétrica, foi possível notar o brilho homicida nos olhos agora cor-de-rosa da Assassina de Youkais.
— Hã?
A semideusa notou a tempo de saber o que lhe acertaria, mas não a tempo para se defender. Pelo menos, não de forma física. Nuwa olhou por cima do ombro, começando a se virar para a guria em modo de ataque, cujo punho já havia sido disparado, com a firmeza de uma rocha, contra sua adversária.
Por ser capaz de colocar minha existência um pouco acima da velocidade do som, posso dizer com propriedade que Yuna estava, se não três, duas vezes mais ágil do que a velocidade necessária para se quebrar a barreira do som. Latido isso, daquela distância e com o fator do elemento surpresa, mesmo a filha do deus do trovão teria dificuldade em escapar daquele soco.
No entanto, a semideusa deu um jeito de se livrar do violento golpe.
Afinal, o que superaria não só a velocidade do som, como a velocidade de Yuna, era a velocidade da luz, ou algo próximo a isso.
Saltando de seu antebraço já voltado para a guria, relâmpagos formaram um escudo de energia azulada para defender Nuwa Lei Feng.
O punho da guria colidiu perseverante contra aquele losango de energia elétrica e raios se dispersaram para todos os lados a partir do ponto de impacto.
Por tocar uma fonte de alta voltagem com o punho cerrado e usando uma luva baseada em tecnologia, mesmo a Assassina de Youkais seria eletrocutada por completo, provavelmente sendo lançada para trás. Contudo, a energia negativa que a envolvia em sua forma escura protegia não só as suas roupas, por estar impregnada nelas, como também a cada célula de seu corpo de meio-youkai.
Se aquela semideusa tivesse todos seus ataques baseados em eletricidade, Yuna já havia conseguido alguma vantagem contra ela.
No momento seguinte ao choque entre soco e escudo, a guria realizou um salto repentino, como se a defesa de energia gerada por sua adversária já tivesse sido prevista. Ela passou por cima do escudo e por sobre a guria-elétrica, cruzando seus olhos cor-de-rosa com os da semideusa enquanto ela estava de cabeça para baixo em pleno ar. A guria pousou no lado oposto ao que se encontrava anteriormente, agora se colocando praticamente à frente da filha do deus do trovão. E mal colocou seus pés no chão, Yuna se viu obrigada a dar um ligeiro passo para o lado, a fim de se safar de um pequeno relâmpago disparado pelos dedos de Nuwa.
Aproveitando o passo que acabara de dar, a Assassina de Youkais o acorrentou a um segundo passo, mas esse, em vez de para defendê-la de algo, foi para que pudesse desferir seu novo golpe. Esticando seu braço direito, a guria atacou com a palma de sua mão o tórax da semideusa em um movimento articulado e preciso. Porém, sua palma não chegou a tocar a região que almejava, já que a distância não era suficiente. E essa não era de fato a intensão de Yuna Nate. Assim que seu braço terminou seu movimento, um poderoso disparo de ar explodiu diante da Abelha Trovejante, lançando-a para trás com toda sua pressão concentrada.
O corpo de Nuwa bateu com as costas na van que ela vasculhava minutos antes, amaçando sua lateral, e a impedindo que continuasse a ser levada pela ventania. A semideusa ainda conseguiu cair de pé no solo, flexionando os joelhos, ao invés de se estatelar de cara no chão.
— Hmph, que excitante, ovelha negra.
Não havia sarcasmo em suas palavras, a filha do deus do trovão realmente se mostrava excitada com aquele combate.
No instante seguinte ao que disse aquilo, a guria-elétrica avançou contra Yuna, só que em uma velocidade acima da que a guria alcançava. A Abelha Trovejante surgiu em um relampejo dentro da guarda da Assassina de Youkais, afastando seu braço estendido com uma mão e aproximando a sua mão livre do abdômen da guria.
A grande explosão de luz veio logo após, e um pouco depois, o som de trovão ecoou por toda aquela usina de vento.
O corpo de Yuna emergiu de toda aquela luz sendo jogado para trás. Mas, conseguindo tocar a sola de seus tênis no chão, a guria deslizou sobre a terra até que freasse de uma vez.
— Você está bem, guria?
— É, estou sim, seu pamonha. Só que agora, acredito que a "fera" tenha despertado de fato. Será mais complicado do que imaginei, e manter esta forma por muito tempo pode ser perigoso. O melhor a se fazer aqui é usar todo meu poder e acabar com isso o mais rápido possível.
— E você acha que pode derrotá-la tão facilmente, guria? Ela é uma semideusa, afinal. Todo seu poder é natural e provavelmente ilimitado. O melhor não seria fugirmos daqui?
— Hmm... Ulim, não é hora para se pensar racionalmente, está bem?
— É justamente esta hora de pensar racionalmente!
O clarão concentrado de onde a guria foi lançada começou a diminuir, como se fosse absorvido por aquilo que o originou. Não demorou muito para que a silhueta de Nuwa Lei Feng se mostrasse para nós. O ruído eletrizante como os de um curto-circuito ou como os de uma arma de choque teve início lentamente, conforme a luminosidade baixava e os traços da semideusa se tornavam mais nítidos.
Ao que o clarão se desfez por completo e a imagem de Nuwa se revelou da maneira mais límpida para nossos olhos, era possível enxergar os relâmpagos em miniatura que riscavam o ar ao seu redor, surgindo e sumindo como luzes de uma árvore de Natal.
— De onde você tirou esse poder, ovelha negra? A quantidade de mana corrompida em seu corpo é imensa. Essa forma... não é uma simples magia. Eu sinto que a tempestade que se aproxima vem de dentro de você.
— Não me venha com esses provérbios chineses, chiquitita. Eu só tive um café da manhã um pouco mais reforçado, só isso. Nem estou me sentindo cheia.
— Guria, acredito que não seja do seu desjejum que ela está falando.
Posso não ser o maior conhecedor em magia negra, mas sei dos malefícios que a mana negativa pode trazer até mesmo para uma hanyou como Yuna. Como ela mesma me contou recentemente, quando a questionei sobre a lendária lança Gungnir, com o passar do tempo em que foi se aprimorando no campo das artes das trevas, chegou um momento em que seu espirito se contaminou o suficiente para que Gungnir não reconhecesse mais Yuna como digna, deixando de responder a qualquer um de seus chamados.
Para o melhor entendimento do que acontece ao usufruir em excesso de mana negativa, primeiro é necessário que saibam como a mana funciona em um todo. A magia comum ou magia pura, a famosa mana que estamos habituados, é uma energia que provem do espirito, diferente do chi que provem da matéria. Já a magia negra, ou mana negativa, não é nada mais do que a magia pura aquecida ao máximo. Em uma analogia simples, a magia pura é como a água, e a magia negra é o vapor. Essa comparação é válida já que a mana corre pelo fluxo de magia, ou circuitos mágicos, como um líquido, enquanto a mana negativa contamina o fluxo como um denso vapor. A questão é que, a magia negra está em uma temperatura tão mais elevada que, ao invadir os circuitos mágicos onde se encontra a magia pura, ela faz a mana evaporar e se unir a ela. Por esse motivo é que dizemos que magia negra é uma forma de anti-magia. Como visto no confronto entre a guria e a bengala shikigami, ao que Yuna a golpeou com sua mana negativa concentrada, o familiar se desintegrou aos poucos. Isso é porque aquele shikigami era um familiar sem os próprios circuitos mágicos, o que o tornava uma invocação puramente baseada em mana, e que ao ter contato com a magia negra, foi contaminado e se tornou vapor. Voltando para a ideia de minha analogia anterior, era como se o shikigami fosse um boneco de neve que foi colocado dentro de uma fornalha.
Há duas maneiras de se conseguir magia negra: aquecendo magia pura até que ela se transforme, ou, maculando um espirito virgem. A primeira forma é mais utilizada para se realizar feitiços simples e rápidos, de doses pequenas. Já a segunda forma pode ser considerada um suicídio, mas se concluída com êxito, lhe dará total controle sobre a mana negativa, permitindo que os limites impostos pela magia pura sejam ultrapassados, que por si só já é capaz de manipular a realidade. Significa que, ao corromper seu próprio espirito, toda mana vinculada a ele se tornará magia negra e não será mais necessário aquecer a magia pura para realizar um feitiço, por exemplo; tudo pode ser realizado com um simples gesto.
Além disso, há os benefícios físicos. Como a magia negra é como um vapor, a limitação dos circuitos mágicos não existe, permitindo que a energia mágica preencha o corpo por completo e trabalhe simultaneamente e a todo momento para melhorar os atributos da matéria.
No caso da guria, seu Modo Morgana utiliza de uma fonte de magia negra externa (magia pura aquecida) que provavelmente está alocada na tatuagem de kanji misterioso em sua panturrilha. Quando ela quer, essa mana negativa na fonte é injetada em seus circuitos mágicos gerando o efeito que expliquei anteriormente. Contudo, como a fonte de magia negra é externa, ela é vinculada ao quanto o corpo do usuário consegue suportar a energia corrompida, já que, embora utilizando magia negra em seu fluxo de mana, seu espirito ainda é puro e continua liberando magia pura para os circuitos, que estão contaminados.
E é aí que mora o perigo.
Toda vez que se utiliza magia negra, um pouco da mana negativa contamina o espirito, e com a constante utilização... o espirito é totalmente maculado.
Como aconteceu com Morgana, que de fada se transformou em bruxa, eu não sei dizer ao certo o que a Assassina de Youkais, sendo uma hanyou, se tornaria.
Mas, considerando sua natureza sobrenatural...
— Eu vou levar este duelo para um novo nível, Ulim.
— Hmm? O que quer dizer com isso?
— Que quando eu terminar com essa abelha irritante, é bem provável que eu entre em colapso. Preciso contar com você para me levar de volta para casa, está bem?
A guria me olhou por sobre o ombro rapidamente e sorriu como se estivesse querendo me convencer de que sua frase foi uma espécie de piada.
— Ei, guria, não sei se essa ideia...
— Fica frio aí, seu pamonha. Eu não vou morrer. Só faz bastante tempo que uso cem por cento de meu poder nesta forma. Isso irá exigir demais de mim.
— Ora, vejo que as coisas ficarão mais interessantes, Assassina de Youkais. Estou realmente excitada com tudo isso. Encontrá-la aqui só pode ter sido um presente do destino.
— Hmph, pois é. Compartilho do mesmo pensamento, Nuwa.
E Yuna avança novamente contra a Abelha Trovejante.
Mais uma vez, desaparecendo aos meus olhos caninos assim que decidiu se mover, a guria encurralou a semideusa descrevendo um círculo constante ao seu redor. Instantes depois, a poeira que era erguida em sentido horário começou a ser substituída por um vapor obscuro. Era a mana negativa transbordando do corpo de Yuna. Aos poucos, ela estava liberando seu poder máximo. Algo que era não só notável pela magia em vazamento como pela temperatura ambiente que caiu drasticamente.
Era como se em uma vontade divina, nossa querida Assassina de Youkais alterasse a estação da primavera para a estação do inverno.
— O que há com você, ovelha negra? Vai ficar só correndo em...
Em uma ação inesperada, o cercado circular de vapor negro se fechou de uma vez contra Nuwa, a envolvendo em uma redoma giratória de magia das trevas. Gerando um forte sopro de ar com sua rotação em alta velocidade, flocos de neve negra começaram a serem levados pelo vento, saindo de dentro daquela sombria redoma.
Poucos segundos foram necessários aguardar para que a guria saltasse de dentro do invólucro que ela criou para trás, tomando uma certa distância em um único pulo.
E mais alguns instantes após isso, o som retumbante de trovões ecoou do céu, anunciando que uma dança de relâmpagos se iniciou entre as nuvens. Três raios azulados se encontraram lá no alto e, ao se colidirem, desceram contra a redoma de vapor obscuro a adentrando sem gentileza. E mesmo com sua intensa luminosidade, dentro daquele invólucro de sombras, parecia que nem a luz era capaz de escapar.
Todavia, logo meu pensamento foi completamente refutado.
No momento seguinte em que o cintilante raio de energia elétrica invadiu meteórico a redoma escura, fendas de luz azulada foram se formando em alguns pontos de toda aquela magia negra em rotação. E, em um piscar de olhos, a redoma foi, sem muitas complicações, desfeita.
— Esses truques de mágica baratos não irão funcionar.
Reaparecendo para nós sem nenhum arranhão em seu corpo, a semideusa colocou em prática o seu contra-ataque letal. Se formando dos relâmpagos que saltavam de sua pele, um longo dragão chinês de energia elétrica se criou à sua volta, movendo-se em espiral em média-altura e avançando como uma serpente, com um rugido trovejante na direção da Assassina de Youkais.
— Guria!
— Tsc.
A poucos metros de seu alvo, ao que a cabeça reptiliana moldada por raios abriu sua boca para engolir Yuna em uma jaula de bilhões de volts, uma parede de gelo cresceu entre o dragão e a Assassina. Mas, não era esse muro no estado sólido da água, um muro qualquer. A parede gélida criada por um simples olhar da guria, era algo totalmente novo para mim. Pois, o gelo que dava forma a sua proteção, era absolutamente negro. Tão escuro que a luminosidade do dragão elétrico era absorvida por ele.
O ataque em forma de criatura de Nuwa se chocou diretamente com o muro obscuro. Mas, diferente do que aconteceria, a eletricidade não foi conduzida por todo gelo. Ela foi repelida, se dispersando em vários raios de energia para todos os lados, conforme o corpo do dragão se desfazia.
E, ao impacto causado pela criatura de alta voltagem, o gelo negro sobreviveu sem nenhum arranhão.
Não fosse a friagem emanada por aquilo, era até difícil de acreditar que aquele muro de defesa era composto pelo estado sólido da água.
Um momento depois, a guria fez seu muro se romper em vapor.
— Não acredito que me subestimou, seu pamonha. Eu ainda nem cheguei ao meu limite.
Erguendo o braço para o lado, e jogando uma de suas mechas de cabelo no processo, Yuna Nate estalou os dedos dramaticamente, para colocar em prática sua nova ofensiva contra Nuwa Lei Feng.
— Inverno Negro.
Junto ao som causado pelo estalo de dedos da Assassina de Youkais, como se acompanhasse sua propagação pelo ar, a realidade à nossa volta foi modificada drasticamente. Como se uma outra dimensão nos engolisse de uma vez, a imagem da usina de vento onde nos encontrávamos foi alterada para uma gélida planície inundada por neve... por neve negra.
O céu era nublado e cinzento, como um céu de terríveis nevascas costuma ser. Ao longe, montanhas cinzentas e ofuscadas por uma discreta neblina é o que se podia enxergar.
Como inugami, e consequentemente um shikigami, de um híbrido de humano e Kitsune, eu estava habituado com alterações na realidade e posso dizer com propriedade que aquele local coberto por neve não era real. Por outro lado, mesmo com minhas experiências e conhecimento, estando dentro daquela margem na realidade, era difícil simplesmente afirmar de maneira tão consolidada. As sensações naquele lugar eram bastante reais para se aceitar que era falso. O frio em minhas quatro patas cobertas pelo mar de flocos escuros chegava até a me incomodar de tão verídico.
— Urgh... maldita.
Mais adiante na planície nevada, a semideusa desmoronou sem força, levando a mão à sua barriga, mais precisamente à sua boca do estomago. Ficando sobre um joelho e rangendo os dentes com o que parecia ser um desconforto agoniante, a Abelha Trovejante não conseguiu conter por muito mais tempo o que estava querendo sair de seu corpo.
— Urgh!
Inclinando sua cabeça para frente, Nuwa abriu sua boca de uma vez e libertou uma catarata de sangue contra a neve que, antes mesmo de chegar ao solo, foi convertida em gelo carmesim e absorvida pelos flocos negros como se tivesse caído em areia movediça.
— G-Guria, o que está fazendo com ela?
— Dentro do Inverno Negro, meus poderes de gelo são absolutos. Enquanto Nuwa estiver nesta realidade, todo oxigênio que ela inspirar se transformará em gelo dentro dela. Mesmo usando sua eletricidade para manter seu corpo aquecido, de nada irá adiantar. A menos que ela deixe de respirar, o gelo se formando em seu corpo continuará sem fim. Claro que, se ela fizer isso, seu cérebro acabará morrendo. E até os semideuses são dependentes de seus cérebros.
De todos os modos que a Assassina de Youkais já erradicou suas vítimas, aquela era, de todas, a forma mais cruel e desumana que eu já havia presenciado.
Eu gostaria de dizer que desconhecia aquela hanyou ao meu lado, mas, era parte de sua natureza ser tão fria quanto o gelo que produzia. E, se aquela realidade invernal fazia parte de seu poder total, eu já poderia ousar em dizer que Yuna estava em pé de igualdade com meu mestre, Mena Kitsune.
— Hmm, sei o que está pensando, Ulim, e não quero que grave esta ideia de mim em sua cabeça. Vou acabar com o sofrimento dela e decidir o combate agora mesmo.
E como se essas palavras da guria fizessem parte de uma conjuração mágica, uma série de lanças de gelo negro se fizeram ao seu redor, apontadas diretamente para a semideusa agonizando de joelhos.
Sem nem ao menos dar o direito para a guria-elétrica dizer suas últimas palavras, Yuna disparou suas lanças simultaneamente, que voaram como mísseis teleguiados na direção da Abelha Trovejante.
Zunindo como o voo de um grupo de flechas, as lanças escuras chegaram ao seu alvo que não estava em condições de erguer qualquer defesa, atravessando seu tronco, braços e coxa.
— ......
Com minha apurada audição canina, pude verificar, apesar da distância, os batimentos de Nuwa Lei Feng diminuindo rapidamente. Até o ruído singelo de sua respiração, que já estava fraca, cessou-se por completo.
Entretanto...
— Estamos terminados, seu pamonha. Temos um peixe bem grande para entregar à Mythpool e espero que eles nos deem uma boa recompensa.
— Não, guria.
— Hmm?
— Ela está viva. A guria-abelha está viva!
Nenhuma advertência seria possível ser lançada para o que se sucedeu.
Diversos relâmpagos azulados começaram a saltar do corpo de Nuwa para todos os lados imagináveis, preenchendo aquela realidade criada cada vez mais com energia elétrica absurda. Um raio chegou a me alvejar, me lançando para longe na neve negra, mas não me deixando tão atordoado quanto eu deveria ter ficado. Como imaginei, o motivo era o mesmo de antes, uma proteção de gelo revestia minha pele para me defender dos relâmpagos violentos.
Aquela quantidade abundante de raios começou a rasgar o Inverno Negro de Yuna como bisturis dissecando a barriga de uma rã. E com um poderoso clarão, seguido de uma trovoada retumbante, aquela dimensão virtual foi desfeita tão veloz quanto da forma que foi feita; dentro de um estalar de dedos.
Eu me ergui cambaleante e firmei minhas patas caninas no gramado da usina de vento, enquanto observava a guria protegendo seus olhos da luminosidade que já estava diminuindo de seu ponto de origem. Mas, antes que a luz de fato se desfizesse, do clarão foram arremessadas de qualquer jeito as lanças de gelo negro que perfuraram em misericórdia a Abelha Trovejante.
Ao ver aquelas lanças sendo jogadas contra si, a guria meramente desejou que elas deixassem de existir, e assim foi feito, com todas elas se esfarelando em neve.
E enfim, a luminosidade cessou.
Nuwa Lei Feng, a filha do deus do trovão, estava de pé no mesmo lugar como se nada tivesse acontecido.
Agora, seu olhar para nossa querida Assassina de Youkais transmitia uma grandiosa fúria.
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