Silver: 002
— Então, é aqui que você está vivendo, guria? Esta é sua nova casa?
— Sim. O que você achou, seu pamonha? É um bom lugar, não?
Bem, a localidade era meio escondida, o que é bom quando se tem tantos inimigos como a Assassina de Youkais. Por outro lado, imagino que seria bastante complicado para que os clientes chegassem até ali. Pelo o que a guria me contou durante o caminho até sua humilde residência, ela havia aberto uma agência de assassinato sobrenatural, algo parecido com o que aquele guri, Daigo, e seu falecido mestre tinham no passado. Mas, diferente da ACAP, Yuna não trabalhava somente contra shinigamis. A guria abrangia um número bem extenso de criaturas, sendo sobrenaturais ou não. Latindo de melhor maneira, ela lidava com muito mais coisa do que seu título dizia, praticamente agindo como uma faz-tudo no campo do assassinato.
Simplificando, ela se tornou uma assassina de aluguel, tentando o máximo possível para ficar dentro da lei.
Antes de abrir a ACSI, Agência de Combate Sobrenatural e Inteligência, a guria me contou que trabalhou como ronin por alguns meses após sair da AAA, e depois foi convidada a trabalhar para a Mythpool, sob o codinome de agente 4k, onde ficou por três meses. Somente após sair da polícia mitológica, com uma quantia considerável de dinheiro guardado, mas ainda tendo de voltar para sua vida de ronin para complementar seu projeto de fortuna, que Yuna conseguiu comprar essa casa onde reside e trabalha agora.
Ela também me contou sobre Ieda, a guria-aranha.
É, acho que é assim que irei chamá-la.
Yuna disse que a conheceu há um ano, no Museu Internacional de Mangá, ali mesmo, em Quioto. Ao que parece, a guria-aranha já era fã da Assassina de Youkais por ter batido de frente com o NIP no passado. Pelo o que foi revelado por Tetsu a ela, a misteriosa organização, ou seja lá o que for, quando sequestrou o Assassino Intocável e o usou controlando sua mente, estava atrás justamente de Ieda. Ironicamente, fomos a guria e eu quem a salvou de ser caçada por Tetsu Tetsuya.
— É, o lugar é legal, guria. Só acho que está muito ao norte de Quioto.
— Bem, eu queria um lugar mais calmo, algo diferente de Saitama ou Osaka. E também, o preço dos terrenos por aqui é menor.
Montada em cima de minhas costas para viajarmos de Aokigahara até Quioto no menor tempo possível, a guria se viu obrigada a descer de cima de mim para abrir a porta de sua agência.
Fazia bastante tempo que ela não me usava como montaria, o que fez a viagem ser um tanto nostálgica. E mesmo com seus dotes físicos, Yuna sempre foi magra e baixa, o que a fazia consideravelmente leve para mim, e isso me permitia correr com maior liberdade.
— Creio que o menor preço dos terrenos foi o maior atrativo por esta localização.
— Hmph, você me conhece tão bem, Ulim. Se continuar nesse caminho, vou acabar me apaixonando por você, sabia?
— Nesse caso, gostaria de retirar o que disse. Aliás, eu sou um lobo, líder alcateia. Somos incompatíveis.
— Por quê? Não seria legal ter uma namorada como eu?
— Nenhum pouco.
— Eu penso o contrário, seu pamonha. Acho que você seria um ótimo namorado. Você me leva nas costas para os lugares.
— Tsc, que divertido. Vamos, abra logo essa porta, guria. Os vizinhos estão começando a me observar demais.
— Está bem, está bem, seu pamonha.
Colocando a digital de seu polegar na maçaneta, a moderna fechadura eletrônica reconheceu sua moradora e se destrancou.
Finalmente, eu adentraria o novo recanto da samurai.
Mas, vamos voltar algumas horas antes, quando Yuna e eu fomos libertos das raízes que nos prendiam em Aokigahara. Quando Yuna estava enfincando suas unhas nas palmas de suas mãos em um processo para conter toda sua ira crescente.
— Guria...?
— ......
Com minhas patas caninas, eu cautelosamente me aproximei de Yuna, e aos poucos fui sentindo a temperatura baixar a cada passo que chegava mais perto.
A situação era delicada ali. Se a guria perdesse totalmente o controle mental, eu poderia ser vítima de um desastre congelante de proporções épicas. Naquele momento, a floresta Aokigahara, conhecida como a floresta do suicídio, estava correndo perigo de se transformar em um jardim da era glacial.
— Ei, guria...
— Se afaste!
Ela clamou, apontando seus olhos azul-escuros para mim e movendo seu braço esquerdo na horizontal à frente de seu peito, estendendo-o na direção das árvores do mesmo lado.
À sua resposta, eu hesitei. Meus instintos não me permitiram prosseguir com facilidade. E, com aquele movimento de braço, aparentemente sem ter consciência, a Assassina de Youkais transformou em gelo tudo a alguns metros cúbicos à sua esquerda. Ela praticamente criou uma escultura de gelo que se fundiu a tudo por ali.
A guria é uma híbrida de youkai e humano. Uma hanyou. Filha de Yuki-onna, a Mulher da Neve, considerada a segunda youkai mais poderosa dos tempos modernos, perdendo somente para Tamamo no Mae, a Kitsune.
Se Yuna perdesse o controle de suas emoções, deixando seu lado youkai se sobrepor ao seu lado humano, a guria se tornaria uma criatura de criogenia em massa.
Pelo menos, é o que meu mestre diz.
E falando nele...
— Hmm...
A escultura gélida que Yuna acabara de criar com um simples gesto de seu braço, repentinamente, foi tomada por chamas avermelhadas, como em uma combustão instantânea.
A luminosidade carmesim do mais feroz dos elementos, junto do vapor que tomou conta daquele ponto em Aokigahara, foram o suficiente para fazer Yuna desviar seu olhar de mim e se voltar para onde se encontrava seu derretido monumento de gelo.
As árvores por ali, agora estavam queimadas. O solo úmido como se tivesse acabado de receber chuva. E o vapor se dissipando, como quando alguém abre a porta de uma sauna.
Dificilmente a guria não saberia quem havia chegado ali.
Talvez, justamente por saber quem era, que sua expressão suavizou, junto de seus punhos cerrados e da brusca queda de temperatura ao seu redor.
Surgindo de todo aquele vapor, estava meu mestre, Mena Kitsune, o Assassino de Dragões.
Atual líder da Associação de Assassinos Anônimos, a AAA.
No passado, tutor de Yuna Nate e o mesmo quem a encontrou em Hokkaido há quase dez anos.
— Há quanto tempo, não é, Yuna? Parece que você cresceu, hein. Uns dois centímetros, mas cresceu.
— M-Mena...?
Ao contrário de Yuna que sempre vestia roupas curtas ou poucas peças, já que era naturalmente imune as baixas temperaturas, meu mestre usava sempre roupas longas e grossas, já que era naturalmente imune as altas temperaturas.
Em outras palavras, a guria e meu mestre não só eram opostos um do outro como eram inimigos naturais. Contudo, embora o relacionamento dos dois fosse de um padrasto exigente e uma afilhada rebelde, eles até que se davam muito bem, no final das constas.
Meu mestre trajava um conjunto de moletom cinza, cujo detalhe peculiar eram as mangas de sua blusa que eram bem maiores do que seus braços, os ocultando de vista. Seus uniformes eram produzidos com a mesma lã mitológica que o Kyoto 23 de Yuna, o que os tornava à prova de fogo. Dado os poderes de meu mestre, roupas resistentes as chamas eram mais do que necessárias. Diferente da guria que pode controlar o que é congelado ou não, meu mestre só pode gerar e manipular o fogo, mas não pode controlar o que será queimado ou não.
O mais feroz dos elementos não pode ser totalmente domado.
Mas, por esse mesmo motivo, que o Assassino de Dragões é o mais poderoso dos assassinos sobrenaturais.
— Você estava um pouco mais feroz segundos atrás, Yuna. O que houve? O choque em me ver a deixou mais calma, foi?
— ...Hmph. Eu não estava tão brava, seu pamonha. Só estava sendo um pouco dramática.
— Parece que ainda continua boa em esconder seus sentimentos. Isso deve ser considerado um dom, não acha?
— Tsc. E você, o que veio fazer aqui? Não confia mais no Império das Pulgas, é? Geralmente, até onde eu me lembro, a maior parte de seu trabalho era ficar no seu escritório enquanto o Ulim fazia todo o trabalho sujo. Você só saía uma vez a cada noventa dias para capturar algum dragão e entre outras frescuras.
— Parece que seus modos também continuam os mesmos, Yuna. Você deveria me tratar com o devido respeito.
— "Devido respeito" meu ovo, seu pamonha. Por que eu deveria respeitar a pessoa que me expulsou de casa, hein? Meu respeito por você acabou ali.
— Você sabe muito bem o porquê de ter sido expulsa. E pela marca em sua panturrilha, vejo que ainda não parou.
Ao que meu mestre se referia era uma tatuagem de um kanji na panturrilha direita da guria. Eu já havia notado antes, e já estava desconfiando pelo odor, mas decidi não questionar nada que pudesse ser invasivo demais.
— Hmph. Inacreditável, seu pamonha. Você conseguiu ser chato o suficiente para me fazer esquecer que minha kouhai foi sequestrada.
— ......
— Bem, se não tem mais nada para dizer, me dê licença. Preciso descobrir o que há dentro dessa cabana e depois salvar Ieda daquele mágico de festa infantil. Mas devo lhe agradecer, Mena, sua chatice aguda colocou minha mente no lugar.
Ao lançar essas palavras contra meu mestre, Yuna se afastou de nós com passos firmes, se movendo em direção ao casebre.
— Eu não iria com tanta sede ao pote, Yuna.
— Phew... — a guria parou, e olhou meu mestre por cima do ombro. — O que foi, agora? Por acaso você sabe o que tem ali dentro?
— Não, não sei.
— Então, o que foi?
— Só estou dizendo para ser cuidadosa.
— Sinto lhe informar, seu pamonha, mas eu não trabalho mais para você.
Voltando a se concentrar no casebre adiante, a guria deu seus passos finais até a porta da residência decadente. Ela abriu a porta com um puxão, arrancando-a da parede e jogando-a para o lado. O interior do local era bastante escuro, mas Yuna não hesitou em adentrar aquele invólucro de sombras.
— Mestre, há quanto tempo chegou aqui?
— Eu não vi o que aconteceu, se é o que quer saber, Ulim. Eu só pude chegar até aqui porque senti a diferença de temperatura que emanava deste local. Você estava demorando mais do que o normal, era de se esperar que eu aparecesse.
— Hmm, claro.
Eu me sentei no gramado ao lado de meu mestre e bocejei caninamente, enquanto aguardava a guria sair daquele lugar.
E a espera não foi longa.
Yuna ressurgiu para nós pelo mesmo lugar que entrou.
E, pendurado em uma de suas mãos, um bizarro boneco de ventríloquo apontava os olhos sem brilho para meu mestre e eu.
Não só assustador em sua aparência, ao que o boneco foi retirado do casebre, o pico de magia em Aokigahara se dissipou. Toda aquela onda de energia mística estava concentrada no pequenino de madeira branca.
— Tirando umas outras coisas velhas inúteis, parece que encontramos o culpado deste caso.
A guria sincronizou a boca do boneco com sua voz naquela fala.
Ela não fazia ideia do tanto de mana que havia no boneco?
Não. Ela provavelmente sabia, e sabia muito bem. Ela só não se importava com o perigo, mesmo que na palma de sua mão.
— Ele é um tsukumogami, Yuna.
— Hmm?
— Isso o que ouviu, um tsukumogami.
Meu mestre estendeu sua mão coberta pela longa manga de seu moletom na direção da guria. No primeiro instante, ela pareceu confusa, mas logo notou o que estava bastante claro.
— Por que você quer o boneco, seu pamonha? Ele não está à venda.
— Não é o momento para piadas. Me dê o boneco. Ele é um tsukumogami poderoso demais. É preciso que ele seja estudado. Não consegue sentir a quantidade de magia nele?
— É claro que consigo. Eu sei exatamente com o que estou lidando, está bem? O único problema aqui, Mena, é que me deram um adiantamento bem gordo para "investigar" essa cabana e seu pico de energia mística. Se é que entende a sutileza.
Com isso, com sua mão que estava dentro do boneco, a Assassina de Youkais fez criar-se estalagmites de gelo que desfizeram o pequenino de madeira em pedaços.
No entanto...
Era só uma ilusão.
Os pedaços do boneco, ao caírem no chão, evaporaram em fumaça escarlate.
E quem realizou essa manipulação visual, foi ninguém menos do que meu mestre, Mena Kitsune. Por ser filho de uma Kitsune, as habilidades sobrenaturais de meu mestre iam além da criação e manipulação do mais feroz dos elementos. Aquele que era conhecido como o mais poderoso dos assassinos sobrenaturais, também podia manipular a realidade da forma que desejasse.
Isso significa que, desde que Yuna saiu do casebre com o boneco, tanto o que eu vi, quanto o que a guria viu, não passava de uma imagem secundária projetada em nossas mentes para ocultar o que realmente estava acontecendo.
Quando o boneco se desfez em fumaça no chão, a realidade voltou a ser o que era para nós, e pude ver meu mestre, que parecia estar ao meu lado, vindo de Yuna até mim, com o boneco de ventríloquo agora em sua posse, como se ele simplesmente tivesse caminhado até a guria e o retirado de sua mão de maneira gentil.
— Ei, Mena, não é justo...!
— Eu deixarei Ulim com você, Yuna.
— ...Oe?
— Eu ficarei um tempo longe, alguns meses talvez, e deixarei Ulim com você até que eu retorne. Afinal, você precisa salvar a sua kouhai, não precisa? Não há ninguém melhor do que o Ulim para lhe acompanhar em qualquer missão, não concorda?
— ......
E assim.
Voltamos para o ponto onde nos encontrávamos.
Horas depois de uma viagem pela Terra do Sol Nascente.
De volta à ASCI.
Para ser honesto, a agência da guria não era da forma que eu esperava. Na época em que vivíamos juntos na AAA, seu quarto não era um desastre total, mas também não era nenhum exemplo de organização. Já aquela agência era muito bem organizada para Yuna Nate. A sala de estar, que era também seu escritório, tinha uma mesa ao centro, alinhada com a porta de entrada. Mais ao lado, debaixo da escada que levava aos dois quartos disponíveis, um sofá de couro preto. Uma porta na parede atrás da mesa de Yuna levava à cozinha, ao chuveiro e ao toalete. Na mesma parede dessa porta, no alto, estava emoldurado seu antigo uniforme místico, o 23° Tóquio, com o qual derrotou sua mãe, Yuki-onna, a Mulher da Neve.
O lugar era agradável, afinal de contas.
Eu poderia passar alguns meses ali com tranquilidade.
Até porque, eu não tinha escolha.
Meu mestre havia decretado.
— Está deixando a nostalgia te levar, seu pamonha? Fazia tempo que não o via, não é?
Meus olhos caninos, que estavam voltados ao uniforme emoldurado na parede, enquanto eu estava deitado com minha cabeça sobre minhas patas dianteiras, fugiram dali para observar a guria, que acabava de sair do banho.
E ela estava completamente nua.
— Claro... sem nenhuma peça de roupa.
— É bom ir se acostumando, Império das Pulgas. A partir de hoje você está morando em uma casa de mulheres. Nosso lema é: pudor é ter pudor.
— Hmph, parece mais o slogan de alguma casa de swing.
— Ué, você também já foi ao Honey Bee?
— Não destrua o lugar do Final Fantasy VII dessa maneira! E se não for pedir muito, coloque alguma roupa, guria. Logo seus vizinhos virão assistir pela janela.
— Não, não, hoje não é sexta-feira.
— Tsc.
Yuna jogou a toalha molhada no sofá e apanhou seu gorro cinza sobre sua mesa, colocando-o para cobrir as orelhas de lobo que se projetavam como chifres em sua cabeça. Na poltrona atrás da mesa, ela apanhou um conjunto de lingerie esportiva vermelha e branca, vestindo primeiro a parte de baixo, e depois a de cima.
Após apertar seus seios sob o sutiã, Yuna se acomodou em sua poltrona, recostando no estofado macio para relaxar.
Ou, pelo menos pensei que fosse.
Mesmo que jogada em sua poltrona, a Assassina de Youkais olhava para o teto perdida em devaneios.
Ela estava preocupada.
Preocupada com sua kouhai, Ieda.
Observando-a daquele jeito, eu decidi não deixar o diálogo esfriar.
— Então, guria, você sempre fica exibindo seu corpo e fazendo piadas com isso?
— É um dos atributos da autoestima, seu pamonha. Deveria estudar sobre.
— Autoestima, é? Esse é o nome que dão para nudez gratuita e indiferença em 2020?
— Hmm... Nudez Gratuita e Indiferença, está decidido. Será o título da minha biografia.
— Tsc, francamente.
Eu estava tentando impedi-la de pensar sobre seus problemas por um tempo, mas esse tipo de solidariedade espontânea é algo cansativo demais para se ter com Yuna Nate.
Latido isso, achei melhor entrar no jogo dela e falar sobre o que ela estava pensando.
— Certo.
— "Certo" o quê?
— Como vamos encontrar a guria-aranha?
— Nós não iremos. Ela irá aparecer para nós. E daí, iremos até ela.
— ...Do que você está falando exatamente?
— Não está claro, seu pamonha. Se o mágico de circo oxigenado usou aquela bengala para controlar a mente de minha querida kouhai, significa que ele quer usá-la para conseguir algo que ele mesmo não pode pegar, assim como foi com Tetsu daquela vez. A questão aqui, meu caro Ulim, é saber o que o da bengala quer.
— Hmph, exatamente o que não temos ideia de como descobrir.
— Ei, eu já disse que não precisamos descobrir nada, por ora. E também, pouco me importa o que ele quer. Contanto que não interfira na minha vida, não arrastarei a cara dele no asfalto. Se ele for do NIP, desde que soube da existência dessa organização, eu nunca agi por conta própria contra ela, portanto, não há porque agir agora. Eu só quero resgatar Ieda, e nada além disso.
— Ótimo, parece que ainda mantem seu egoísmo atualizado, guria. Mas, se me permite, como vamos saber onde Ieda aparecerá?
— Ah, verdade... que cabeça a minha.
Yuna ajeitou sua postura em sua poltrona, e abriu um notebook em sua mesa. Ela o posicionou para ficar alinhado a seu peito e começou a digitar com velocidade.
— O que está fazendo, guria?
— Neste momento? Estou respondendo a um e-mail de um cupom de desconto em um aplicativo de entrega de comida. Do jeito que está indo essa pandemia, se houver um lockdown aqui em Quioto, não irei sair da cidade para comprar comida. Se bem que, você está comigo agora.
— Sendo assim, é melhor conseguir esses cupons. Eu não serei rebaixado a carona para reabastecer suprimentos, se é o que está pensando.
Aquele tipo de comentário de Yuna era o que mais me preocupava sobre ficar com ela por alguns meses. Como já mencionei, eu gosto da guria, mas conviver com ela por muito tempo, sem descanso, é algo que pode se tornar uma verdadeira tortura, dependendo do que se passar na cabecinha dela.
Eu nem ao menos poderia mordê-la de forma que criasse um respeito maior por mim. Isso iria diretamente contra a ordem imposta por meu mestre sobre protegê-la. Com uma lei dessa gravada em meus circuitos mágicos, ser sequestrado por Yuna me causaria de imediato uma Síndrome de Estocolmo.
— Está bem. Agora, para o que interessa.
Abrindo um software no canto de seu desktop, Yuna voltou a digitar rapidamente em seu notebook. A imagem no monitor LED era de uma imagem de satélite do Japão, e de repente, um gigantesco zoom.
— Está vendo, seu pamonha, estou rastreando Ieda. Eu coloquei rastreadores em nossas calcinhas para o caso de situações como essa acontecerem. Confesso que, desde a crise espiritual ano passado, passei a tomar mais cuidado do que o normal em algumas coisas.
— "Mais cuidado" uma ova. Você já usou um desses para me perseguir uma vez, não se lembra?
— Hã? Realmente, não estou lembrada.
— ...
Bem, não valia a pena gerar uma discussão naquele momento.
Eu só ignorei.
— Pelo o que parece, esse é o esconderijo deles. O programa diz que ela está nessa região por algum tempo.
— Então, vamos lá, guria. Resgatamos ela e depois damos um jeito em sua lavagem cerebral.
— Seu pamonha, você não escutou nada do que disse? Eu não quero criar uma cena, está bem? Se esse for o esconderijo deles, vou esperar Ieda se apresentar em uma área urbana e aí nós "vamos lá", entendeu?
— Hmph, entendi. Mas, e sobre a lavagem cerebral? Já tem algo em mente?
— Já tenho a solução. Ou melhor, Ieda tem. Ela criou diversos tipos de antídotos com seu vasto conhecimento alquímico. Há desde curas para envenenamento até curas para lavagem cerebral. Aliás, a ideia dos rastreadores não foi minha, e sim, dela. Ieda tem muito mais preparo do que eu, Império das Pulgas. Mas, acredito que com isso você irá se acostumar mais rapidamente.
— ......
Com o que eu não iria me acostumar tão rápido era com aquele apelido idiota.
Seriam longos meses para um lobo, líder de alcateia, vivendo ao lado da Assassina de Youkais e sua jovem aprendiz aracnídea.
Aliás...
— Falando nela, guria, em Aokigahara, Ieda libertou aquelas patas de aranha de seu cóccix. Ela é uma hanyou também, não? Qual é a ascendência dela?
— E de quem mais seria, seu pamonha? A mãe dela é ninguém menos do que a própria Jorogumo.
— Hmm, como imaginei.
Jorogumo é uma youkai aranha um pouco mais reservada à sociedade moderna, como também era Yuki-onna, a mãe de Yuna. A youkai sempre se manteve em área rurais, usando sua aparência feminina para atrair e devorar suas presas. Se me lembro bem, de suas costas, também brotavam longas patas de aranha como a da guria de cabelo cor-de-rosa.
— E... guria...
— O que é?
— Você... já chegou a contar para sua kouhai o que aconteceu com sua mãe? Ela sabe a verdade?
— Ela não precisa saber. Ieda foi abandonada, cresceu sozinha e viveu sozinha até me encontrar. O pequeno passado com sua mãe não importa. Ela não precisa saber quem matou Jorogumo. Até porque, se ela pensasse em pedir satisfação... algo como vingança...
— ......
— Enfim. Esta conversa me lembrou que preciso de um cochilo, Ulim.
— O quê? Não vai monitorar a posição de Ieda?
— Não se preocupe. Não pretendo agir enquanto a lua está no céu contra Ieda. Com a mente controlada, é provável que terei de detê-la à força. Portanto, tenho maior vantagem sob a luz solar e em um local aberto. Sabe como aranhas são traiçoeiras. E eu já perdi para ela uma vez, não quero que isso se repita.
— Hmm, entendo. Sem oportunidades para erros.
— Exato, seu pamonha. Sugiro que também descanse. Irá precisar de energia.
Assim, a guria voltou a recostar-se em sua poltrona, colocando seus pés sobre sua mesa, e fechando seu par de safiras, em um humilde convite para o deus do sono.
Eu decidi seguir seu conselho e fazer o mesmo.
Meus olhos caninos se fecharam tranquilamente, no momento seguinte.
Era confuso.
Por que meu mestre me mandou ficar com Yuna nessa altura do campeonato? Ela já me parecia bastante independente. Casa própria, agência particular, e até mesmo uma discípula. Me mandar morar com ela por alguns meses só conseguia soar esquisito, mesmo que vindo de meu mestre.
Talvez, meu mestre estivesse desconfiando de que fosse morrer?
Nesse caso, eu não poderia perder meu tempo ao lado da guria...
Mas, mesmo se fosse o caso, suas ordens foram bem claras. Eu não poderia simplesmente ignorá-las.
Se meu mestre morresse, todas os decretos que ele gravou em meus circuitos mágicos com relação a ele mesmo seriam apagados. Um dos únicos que restaria seria o de proteger Yuna Nate, o que me deixaria, de certa forma, vinculado à guria até sua morte. E, como meu corpo tem o próprio fluxo de mana, isso me tornaria um inugami, e consequentemente um shikigami, autossustentável e autossuficiente.
Seria esse o plano de meu mestre desde o início? Me deixar de herança para a Assassina de Youkais?
Por acaso ele não deu ouvidos a nenhuma de minhas reclamações a cada missão que eu voltava com ela na época da AAA?
Hmph, francamente.
Onde está a sociedade protetora dos animais em momentos como esse?
— Ei... ei...
— Hunf...
— Ei... seu pamonha, acorde.
Droga. O que é isso? Estaria meu subconsciente projetando a voz da guria em minha cabeça para tentar gerar algum tipo de pesadelo?
Não.
Era real demais.
A guria realmente estava tentando me acordar.
— Vamos logo, Império das Pulgas. Ela está se movendo, está se movendo!
Meus olhos caninos se abriram. Minha visão turva clareou. E o sol já havia nascido na Terra do Sol Nascente.
Eu bocejei, caninamente, e ergui meu corpo, esticando minhas patas traseiras e pescoço, como se quisesse decolar na velocidade da luz. Eu passei minha língua por meus lábios e mastiguei o gosto de minha própria saliva. Por fim, antes de voltar minha atenção para Yuna, minha cauda se levantou balançando como uma bandeira, para depois baixar sutilmente.
— O que está se movendo, guria?
— "O que está se movendo?", é? Um Windows Vista inicia mais rápido do que você, seu pamonha.
Diferente de como dormiu, Yuna estava devidamente trajada. Tênis brancos de basquete com detalhes laranjas, seguidos por suas pernas nuas acima. Cobrindo seu torso, algo que não a via trajando há algum tempo, um uniforme de basquete também branco, com o numeral 23 em laranja, assim como seu nome sobre o número, e que ia de seus ombros até a metade de suas coxas fortes. Nas mãos, um par de luvas que terminavam antes dos pulsos. E na cabeça, como de praxe, seu famigerado gorro cinza.
— Ieda é quem está se movendo, Ulim. Não temos tempo para papo, ela está distante daqui de Quioto.
A guria mexeu na palma de sua mão esquerda, especificamente na luva em sua mão, e um holograma de uma seringa apareceu pairando sobre ela. Segundos depois, Yuna o fez sumir.
— Certo, está aqui. Vamos, seu pamonha. Sem mais perguntas.
— Ei, eu ainda preciso saber, guria, para onde exatamente nós estamos indo?
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