Winker - Parte III
Ato V
A noite paira densa sobre o acampamento, o cheiro de terra molhada e madeira queimada misturando-se ao ar frio. O brilho tremulante da fogueira projeta sombras alongadas sobre as árvores e sobre os rostos atentos do grupo, refletindo nos olhos de Pan e Falcon como brasas acesas.
Enquanto Toucan e Coimbra permanecem mais afastados, discutindo algo entre si, eu guio Winker até o círculo formado ao redor do fogo. Meu corpo está tenso, a mente já antecipando o caos que essa mulher está prestes a causar. Porque se tem algo que eu aprendi nas últimas horas é que essa mulher não entra em lugar nenhum de cabeça baixa.
E eu acerto.
O sorriso de Winker se espalha por seu rosto antes mesmo que alguém tenha a chance de questioná-la. Há algo de desafiador na maneira como ela se porta, como se estivesse entrando em seu próprio domínio, e não na base de um grupo desconhecido.
- Prazer, pessoal. - Sua voz ressoa com um tom quase teatral, carregado de uma confiança que beira a provocação. Ela abre os braços como se estivesse se apresentando para uma plateia, os olhos vivos de exaustão e insolência.
- Só quero ver isso - penso, observando o olhar estreito de Pan mantendo a postura rígida, os braços cruzados sobre o peito em um gesto defensivo. O brilho severo em seu olhar é um contraste com a leve curiosidade de Falcon, que a observa como se analisasse um animal raro.
Winker, continua: - Não precisam ficar de pé. A não ser que queiram aplaudir, aí tudo bem.
O canto da minha boca se contrai com descrença. - Essa mulher realmente não tem limites - analiso.
Sem cerimônia, Winker se deixa cair no chão, apoiando um dos cotovelos na coxa dobrada e jogando o peso do corpo de um lado, relaxada como se estivesse ali há anos. Apesar das feridas e do desgaste visível, ela esconde a dor com maestria, mantendo o sorriso preguiçoso de quem está relaxada.
O olhar de Pan desliza lentamente por ela, como se estivesse procurando fissuras na fachada confiante. Seu rosto permanece impassível, mas a tensão na linha do maxilar e a forma como seus dedos pressionam contra os braços cruzados dizem outra coisa.
- E quem é você exatamente? - A voz dela é reta, sem hesitação.
- Até que elas se parecem - penso. Meus olhos viajando entre ambas, e pela primeira vez, noto semelhanças entre elas. O cabelo castanho, assim como os olhos cortantes. Parece que estou olhando para a mesma pessoa em um salto temporal.
Winker se inclina ligeiramente para frente e anuncia: - Winker. Sem sobrenome, sem passado, e com muito mais atitude do que o necessário. - Seu olhar fixo em Pan com a mesma intensidade, e isso intenso me preocupa. - Mas, ei, pelo menos sou útil. E quem é você, pirralha?
Os ombros de Pan enrijecem, e sua mandíbula se fecha como uma armadilha pronta para disparar. - Pan. - Sua voz sai firme, mas controlada. - E eu não sou pirralha.
Winker apenas arqueia uma sobrancelha, o sorriso se alargando em provocação pura.
- Claro, Pan. Pirralha com atitude. Gosto disso.
A fagulha está acesa. Pan não esconde o impulso de avançar, os punhos fechados ao lado do corpo, a respiração ficando um pouco mais curta.
Antes que algo aconteça, Falcon decide intervir. Seu tom é tranquilo, mas a firmeza subjacente mostra que ele não pretende deixar a situação escalar sem necessidade.
- Por que está aqui? - Ele pergunta, os olhos analisando cada detalhe da expressão de Winker. - Quer algo em troca por ter ajudado Naomi e Coimbra, ou quer se juntar a nós?
Winker finge considerar, inclinando a cabeça para o lado, o olhar meio perdido no fogo crepitante. Seus dedos sobem até a boca, e ela começa a roer distraidamente a unha. - Por que sempre alguém tem que querer algo em troca? - murmura, sem desviar os olhos da chama.
Pan solta uma risada curta, sem humor. - E você não quer? - pergunta.
Winker finalmente volta os olhos para ela, um brilho divertido os preenchendo. A forma como ela mastiga a unha antes de responder me diz que ela já tinha essa resposta pronta antes mesmo da pergunta. - Não .- Ela tira a unha da boca, cuspindo um pedacinho no chão como se não houvesse um debate em curso. - Mas, se vocês insistirem... - Ela faz uma pausa dramática, lançando um olhar preguiçoso ao redor. - Um lugar para descansar e comida são sempre bem-vindos.
Por um segundo, Falcon tenta manter a expressão séria, mas um sorriso escapa. Ele percebe o jogo de Winker. Ela não admite querer nada, mas sabe que precisa. Ela testa, provoca, mas no fundo já aceitou que está ali, pelo menos por agora.
Pan não relaxa. Seus olhos continuam cravados em Winker, avaliando, considerando.
E Winker apenas sorri.
No meio disso tudo, Toucan se aproxima, com Coimbra ao seu lado, a expressão de ambos carregada pelo peso de uma decisão tomada. - Tudo bem, Winker. Você pode ficar por enquanto. - Toucan declara, sua voz firme, sem brechas para contestação. - Mas não abaixaremos a guarda. Confiança aqui é conquistada.
Winker pisca preguiçosamente, cuspindo o pedaço de unha que roía. - Confiança? - Ela saboreia a palavra, como se fosse algo exótico, incompreensível. Seus olhos passeiam pelo grupo, parando em Falcon, que esboça um sorriso contido, depois em Pan, que mantém a expressão fechada, e por fim em Toucan, que não se abala diante de sua provocação. - Que coisa adorável.
Falcon solta um riso curto e discreto com o jeito de Winker, enquanto Toucan e Pan permanecem sério.
Olho de canto para Coimbra. Ele não diz nada, mas sei que está atento, assim como eu.
- Você tem sempre esse ar de superioridade? - Pan questiona.
Winker sorri, sabendo que a pergunta não carrega apenas curiosidade, mas uma provocação embutida.
Ela se levanta devagar, seu corpo ainda está coberto de hematomas e cicatrizes recentes, mas nada nela demonstra fraqueza. - Superioridade? Não. - Ela inclina a cabeça, os olhos carregados de um brilho indecifrável. - Confiança? Sim.
Ela avança um passo, prendendo os olhos nos de Pan, avaliando-a.
- E sabe o que é engraçado? - Seu tom é quase suave, como se refletisse sobre a própria fala, mas há um veneno sutil ali, disfarçado sob um verniz de brincadeira. - Você me lembra um filhote de lobo.
Pan endurece levemente a postura, seu corpo respondendo ao comentário antes mesmo que sua mente processe.
- Sempre tentando provar que pode morder.
O fogo estala ao lado, mas a única coisa que importa agora é a tensão entre as duas.
- Isso é bom. - Winker para diante de Pan, mais perto do que o necessário. Seu olhar brilha com provocação e análise.
E então, sua voz baixa ligeiramente, carregada de um aviso mascarado de conselho: - Mas morde na hora certa, pirralha.
A última palavra é um gatilho. Pan reage no mesmo instante.
- Eu já disse que não sou pirralha! - Seu tom sai afiado, carregado de impaciência. Seus punhos se fecham ao lado do corpo, os ombros tensionados, prontos para um confronto.
Winker apenas sorri mais. O brilho em seus olhos se intensifica, como se estivesse esperando exatamente essa resposta.
- Claro que não. - Sua voz desliza com ironia. - Só parece.
E então, com um dar de ombros casual, finaliza com um desdém afiado: - Mas não se preocupe, eu sobrevivo.
A atmosfera entre elas parece eletrizada. Pan mantém o olhar fixo, mas sua respiração acelera imperceptivelmente.
Antes que a situação se agrave, Toucan intervém, sua voz cortante como um bisturi.
- Pelo que Coimbra contou, você sabe muito bem sobre sobreviver sozinha. - Seu olhar se fixa nela, frio e analítico. - Por que não continuar assim?
A pergunta não parece um convite, mas um teste.
Winker se vira lentamente para ele. Seu sorriso persiste, mas há algo diferente em seus olhos, um resquício de seriedade, talvez até respeito.
- Boa pergunta, chefe. - Seu tom mantém o humor afiado, mas sua postura sugere que leva aquilo mais a sério do que aparenta.
Ela varre o grupo com os olhos, como quem examina um tabuleiro de xadrez.
- Acho que gosto de ver como grupos funcionam.
Ela gesticula vagamente, um toque teatral no movimento. - É fascinante, sabe? - Seu olhar oscila entre cada um de nós. - Drama, alianças, brigas... - Um sorriso brinca no canto de sua boca. - É como uma novela em tempo real.
Toucan não reage imediatamente. Ele a observa com uma expressão impassível, como se pesasse cada palavra dela, tentando decidir se aquilo é provocação ou verdade.
E então, ele a corta sem hesitação: - Isso aqui não é um espetáculo. - Sua voz é um golpe seco, sem espaço para interpretação. - É nossa vida.
Winker levanta as mãos em falsa rendição, - Claro, claro - diz, mas algo em sua postura muda. O sorriso dela não desaparece, mas não demonstra seu humor tradicional. Por um instante, parece menos zombeteiro.
Mas dessa vez, sua voz vem diferente. Sem sarcasmo, sem desafio, apenas uma verdade crua: - Mas isso não significa que não possamos nos divertir enquanto estamos vivos.
A frase fica no ar, como uma brasa incandescente no vento frio. Ninguém responde imediatamente.
E, pela primeira vez, Winker não preenche o silêncio com palavras vazias. Ela apenas espera.
Pan com os braços cruzados, queixo erguido em desafio, e os olhos fixos em Winker com uma frieza que não condiz com sua idade, provoca: - Você parece o tipo de pessoa que só se preocupa com si mesma. Estou errada?
O sorriso de Winker retorna, afiado como uma lâmina polida. Ela levanta o indicador lentamente, apontando para Pan, como se estivesse revelando algo óbvio. - Você é perspicaz. - Sua voz desliza como um veneno doce. - Errada? Não.
Ela faz uma pausa, saboreando a provocação antes de continuar: - Mas me diga, pirralha... - ela inclina a cabeça ligeiramente, estudando Pan como se fosse um quebra-cabeça incompleto. - Você acha que alguém nesse mundo sobrevive sem ser egoísta?
Pan abre a boca para responder, mas Winker já está um passo à frente. - Nem mesmo vocês, mocinhos da justiça. - O tom de sua voz é baixo, quase íntimo, mas carrega um peso perigoso. - Afinal, não foi graças a mim que Naomi e Coimbra voltaram para esse acampamentozinho?
Ela se aproxima um passo, lenta, controlada, o sorriso se expandindo de maneira calculada. Seus olhos se prendem aos de Pan, absorvendo cada mínima reação. - Certo, pirralha?
Meu corpo se move por instinto, e dou um passo discreto à frente, me aproximando de Winker. Suas ações são imprevisíveis, e isso me incomoda. À primeira vista, parece apenas zombaria, um jogo infantil para desestabilizar Pan. Mas algo na forma como ela a estuda, como se estivesse esperando algo específico, me coloca em alerta.
Eu deveria intervir. Deveria cortar isso agora, antes que vire algo maior. Mas não faço, porque, no fundo, quero ver até onde isso vai. Quero ver quem recua primeiro.
Os punhos de Pan se fecham lentamente, os músculos tensos como cordas prestes a se romper. Seus olhos brilham com um fogo inflamado pelo orgulho ferido.
Eu dou um passo ainda menor à frente, preparando-me para agir se for necessário.
Eu sei o que Pan quer. Ela quer mostrar que não é fraca. Que não é uma criança sendo provocada por um adulto. Mas Winker sabe disso também, e ela está testando Pan do mesmo jeito que testou a mim e Coimbra no rio. Ela quer ver até onde pode ir, mas Pan não recua, ela não viu do que Winker é capaz, e isso é perigoso.
Minha mente trabalha rápido, catalogando o ambiente, os olhares, os mínimos detalhes: Pan está à beira da explosão, e Winker está esperando por isso. Falcon observa, mas não vai intervir. Toucan avalia a cena com frieza, medindo a utilidade desse confronto. E Coimbra? Ele se aproxima de Pan, parecendo perceber o mesmo perigo que eu.
Pan finalmente estala: - Você... - resmunga, - é maluca.
Winker percebe a postura de Coinbra, e ela sorri. O jogo dela está funcionando.
Pan finalmente estala. - Você... - A voz dela sai baixo. - ...é maluca.
A risada de Winker é instantânea. - E você é muito boa em apontar o óbvio. - O sorriso dela se alarga, um brilho perverso cintilando nos olhos. - Podemos fazer uma boa dupla.
E então, como se perdesse o interesse, ela se vira de costas, sem pressa, como se nada tivesse acontecido. Ela estica os braços acima da cabeça, alongando-se sem pressa, ignorando completamente a carga elétrica no ar.
- Bom, foi um prazer conhecer vocês, sobreviventes profissionais - sua voz é levemente arrastada, despretensiosa. - Vou tentar não bagunçar muito o seu pequeno paraíso aqui. Mas aviso logo... sou péssima em seguir ordens. - E sai andando, sem olhar para trás.
- O que ela está fazendo? - A pergunta ressoa na minha mente.
- Onde ela está indo? - Falcon pergunta, seus olhos acompanhando Winker se afastar, com curiosidade genuína.
Meus olhos se estreitam ao vê-la se afastar, e então percebo, seus passos, embora confiantes, carregam um peso extra. Winker não está indo porque quer. Ela está indo porque está prestes a cair. Ela evitou prolongar a provocação, pois a luta, os ferimentos, a exaustão... estão empurrando a porta que Winker está segurando, porém ela já está no limite.
Coimbra percebe também, e se vira discretamente para mim, e eu sussurro, apenas para ele ouvir: - Acho que ela está se segurando para não desmaiar de dor. Melhor você ir atrás dela.
Coimbra assente, sem hesitação. Mas antes de sair, quebra o silêncio geral com uma desculpa óbvia: - Vou mostrar uma barraca vazia para Winker. - Ele dá um passo à frente, saindo em sua direção. - Ela deve estar muito cansada depois de ter nos ajudado com os saqueadores. - A justificativa paira no ar, aceita sem questionamentos.
O grupo se dispersa lentamente, com sua saída. No entanto, Pan fica parada, os olhos cravados na direção onde Winker sumiu, e eu vejo o que ninguém mais vê: Pan sorri.
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