Salve-me - Parte II
Ato II
A luz da lua mal consegue atravessar as copas densas das árvores ao longo do caminho. A trilha é envolta por um silêncio quase absoluto, quebrado apenas pelo som ocasional das folhas farfalhando sob meus pés. É a claridade da fogueira, mais à frente, que guia meus passos incertos, projetando um brilho vacilante na escuridão.
- Coimbra disse que estariam jantando - penso, enquanto observo a clareira se abrir à minha frente, um espaço pequeno envolto pela serenidade da noite. O ambiente está quieto demais, como se algo estivesse ausente.
Aproximo-me com cuidado, os olhos pousando no grande caldeirão colocado sobre o fogo. O calor das chamas ilumina seu conteúdo, onde a sopa ainda borbulha suavemente. O aroma rico e reconfortante de ervas e legumes preenche o ar, despertando minha fome e, ao mesmo tempo, trazendo uma sensação estranha de nostalgia.
Minha atenção se volta para a tigela deixada sobre um tronco caído, a borda de madeira marcada por anos de uso. Meus dedos deslizam ao redor dela antes de segurá-la com firmeza.
Com movimentos lentos e cuidadosos, mergulho a tigela no caldeirão, o líquido quente subindo até a borda. O vapor sobe em espirais suaves, acariciando meu rosto com um calor reconfortante que contrasta com o frio da noite. Dou uma primeira colherada, o caldo quente descendo pela garganta, espalhando uma sensação de calor que quase faz meu corpo relaxar.
- Será que já comeram e foram dormir? - pergunto-me, olhando ao redor da clareira em busca de sinais dos outros. As sombras das barracas são imóveis, e o fogo parece ser minha única companhia.
Pego outra colherada, mas dessa vez meus movimentos são mais lentos. Meus olhos percorrem o entorno da clareira, quase esperando que algo surja da escuridão.
- Será que eles são confiáveis? - A pergunta surge antes que eu possa conter, um pensamento incômodo que se infiltra como uma sombra em meio ao calor da fogueira. - Certamente só me trouxeram aqui porque precisam de mim.
Dou mais uma colherada, o caldo deslizando pela língua com um gosto que me lembra tempos mais simples, antes de tudo isso. Mas o sabor não apaga a dúvida. - E se Toucan me vê apenas como uma ferramenta? Algo que ele pode usar agora e descartar mais tarde, quando eu não for mais útil?
Eu tento afastar o pensamento, mas ele volta com mais perguntas. - Ele fala tão calmamente, como se nada fosse capaz de abalar sua confiança... será que isso é real? E aquele osso que se uniu ao seu corpo? Será que ele é mesmo humano?
A tigela em minhas mãos parece mais pesada de repente. Minhas mãos tremem levemente, mas eu as seguro firmes. Tento focar na sopa, na clareira, na calmaria ao meu redor. Mas é como se o silêncio apenas amplificasse minha própria voz interna.
- Ele não parece alguém que trai as pessoas - penso, mas a dúvida não me larga. - Ou talvez ele só seja bom em esconder o que realmente pensa.
Enfio a colher de volta na tigela, observando o caldo ondular levemente. - Ele disse que me viu salvar aquelas crianças. Será que isso é o suficiente para ter confiado em mim?
Respiro fundo, tentando encontrar algum consolo na brisa noturna que atravessa a clareira. O ar fresco ajuda, mas não muito.
A última colherada da sopa é amarga, não pelo gosto, mas pelo peso dos meus pensamentos. Toucan pode até confiar em mim, ou pelo menos fingir que sim, mas será que devo confio nele?
Seguro a tigela vazia por um momento, encarando-a como se fosse me dar uma resposta. O calor que antes parecia reconfortante agora é só calor. Nada mais. E a clareira, com sua paz superficial, parece mais vazia do que nunca.
De repente, som de galho se partindo ecoa da floresta, mas antes que eu possa me preocupar, Coimbra surge.
- Achei que não viria - ele comenta, com sorriso que carrega algo de melancólico, seus olhos brilhando levemente sob a luz da fogueira.
A tensão que se acumulara em meus ombros começa a se dissipar, e, disfarçando meu alívio, devolvo o sorriso. Seguro a tigela com mais firmeza e dou de ombros, tentando parecer descontraída.
- Ainda bem que vim. A sopa está muito boa - respondo, com leveza.
- Toucan é um ótimo cozinheiro - informa enquanto se aproxima e, sem dizer mais nada, pega outra tigela. Ele a enche com movimentos quase mecânicos, mas há algo em sua postura que o denuncia: talvez cansaço, ou uma preocupação que ele não deseja compartilhar.
Quando ele se senta ao meu lado, sinto o calor da fogueira aumentar, mas sua presença é algo mais frio, carregado de uma tensão que ainda não foi verbalizada.
Observando-o de relance, noto que seus olhos estão vagos, perdidos em pensamentos distantes, como se a clareira fosse apenas um cenário temporário para algo maior. Tento romper o silêncio, mas ele me acompanha, sua voz mais baixa do que o usual:
- Sabe... - falamos em uníssono, nossas vozes se encontrando por um breve instante.
Coimbra para no meio do gesto de levar a tigela à boca, inclinando a cabeça levemente em minha direção, mas sem me olhar diretamente. Seus olhos permanecem fixos no caldo. - Desculpa, fale primeiro - ele pede, um pequeno sorriso descontraído curvando os lábios, como se tentasse aliviar qualquer desconforto.
Ajeito-me no tronco onde estou sentada, cruzando os braços brevemente antes de deixá-los relaxar novamente sobre os joelhos. Respiro fundo, não apenas para me dar coragem, mas para ordenar a avalanche de pensamentos. - O que Toucan é?
Coimbra ergue a sobrancelha em confusão, interrompendo o movimento de levantar a colher da tigela. Ele pisca algumas vezes, como se estivesse tentando entender se ouviu corretamente. - O quê?
Percebendo o quão vaga minha pergunta soou, apresso-me a esclarecer. - Quero dizer... - faço um gesto incerto com as mãos, tentando encontrar as palavras certas. - Eu o vi enfiar uma lança... de osso... no próprio peito. E ele ficou bem. Como ele fez aquilo? Ele é... humano?
Minha voz sai hesitante no final, como se eu mesma questionasse o absurdo da situação. Mas minha curiosidade é genuína, quase desesperada, e isso deve transparecer no meu tom.
Coimbra me encara por um segundo, a surpresa dando lugar a algo que parece diversão. Ele solta uma risada curta e abafada, cobrindo parcialmente a boca com a mão como se estivesse tentando conter a reação. Quando se recompõe, seus olhos encontram os meus, um brilho irônico presente neles. - Sério que não sabe?
Eu estreito os olhos, sentindo-me ligeiramente confusa, mas antes que possa responder, ele continua. - Você não conhece as pílulas de poder?
Minha testa franze, e minha expressão deve deixar claro o quão confusa estou. - Pílulas de poder? - repito, inclinando-me ligeiramente para frente, como se isso pudesse de alguma forma ajudar a entender melhor o que ele está dizendo.
Coimbra deixa a tigela de lado, pousando-a com cuidado no tronco ao lado dele. Ele balança a cabeça levemente, como quem está prestes a explicar algo óbvio. - Ah! Quase me esqueci que você era da SARIME. - Ele gesticula vagamente com a mão, como se isso fosse uma justificativa para minha ignorância. - Acho que vocês conhecem por outro nome. É... Serithys? Zérum? Não... - Sua expressão se torna pensativa, e ele olha para o lado, como se tentando arrancar a palavra certa do ar.
Eu, já entendendo, interrompo seu devaneio. - Seridion?
Coimbra estala os dedos, apontando para mim com uma expressão de alívio e satisfação. - Isso! Seridion. Então você conhece!
Balanço a cabeça lentamente, minha confusão apenas aumentando. - Na verdade, não. - Minha voz sai mais baixa, quase um murmúrio. - Mas já ouvi essa palavra antes. - Minha mente vagueia por um momento, lembrando vagamente das discussões de Lívio durante os treinamentos, onde ele mencionava o nome em tom sério, mas nunca dava detalhes.
Coimbra me observa atentamente, como se esperasse que eu elaborasse mais, mas quando não o faço, ele solta um pequeno suspiro. - Então deixa eu adivinhar. - Ele cruza os braços, inclinando-se levemente para mim, o sorriso sarcástico voltando. - Eles mencionaram, mas nunca te disseram o que é, né?
Dou de ombros, olhando para baixo por um momento antes de responder. - Acho que eles achavam que eu não precisava saber.
Coimbra ri de novo, mas dessa vez há uma ponta de amargura em seu tom. Ele balança a cabeça, pegando novamente sua tigela e devolvendo seu conteúdo ao caldeirão. - Como eu posso explicar - ele murmura para si mesmo
- Pílulas de poder... Seridion, né? - Coimbra começa, sua voz carregada de uma falsa casualidade. Ele gesticula de forma exagerada, como se o próprio conceito fosse absurdo demais para ser levado a sério. - Essas coisinhas são o equivalente cósmico de meter gasolina de avião num fusca e esperar que ele vire um foguete.
Por reflexo, um riso curto escapa de mim
Coimbra ergue a mão, apontando para o céu, os olhos acompanhando o gesto com a intensidade de quem vai recitar um manifesto. - Você sabe o que acontece quando misturamos ciência, ganância e um toque de delírio megalomaníaco? - pergunta, sua voz ganhando um tom de teatralidade que parece ensaiado. Ele não espera por uma resposta, o que só aumenta minha curiosidade. - A humanidade acha que pode brincar de Deus. E quando percebe que pode... - Ele faz uma pausa proposital, o silêncio preenchido pelo estalar das chamas da fogueira. - Ela transforma Deus num produto de laboratório.
Reviro os olhos, cruzando os braços sobre os joelhos enquanto me inclino ligeiramente para frente. - Isso não explica nada. - Minha voz carrega uma impaciência deliberada, tentando provocar uma reação.
Ele não parece se abalar. Pelo contrário, responde com um sorriso sarcástico e um tom de falso desdém. - Eu tô chegando lá, paciência! - retruca, girando a mão no ar como um professor cansado de explicar conceitos básicos a um aluno impaciente. Ele se senta, inclinando-se para frente como se quisesse enfatizar sua próxima fala.
- As pílulas de poder são como um cheat code da vida, - continua, agora socando o ar levemente, como se estivesse simulando um golpe. - Imagina você jogando Street Fighter, sendo um lutador mediano, quando de repente o jogo te dá o poder do Akuma.
Ele para por um momento, girando o punho no ar antes de soltá-lo em um golpe fictício, a intensidade de seu movimento acompanhada por um sorriso de satisfação. - Só que, ao invés de magia demoníaca japonesa, é ciência safada das corporações que te transforma.
Dessa vez, não consigo evitar um sorriso, embora tente escondê-lo. - Certo, isso é... interessante, - admito, com a voz mais baixa, enquanto cruzo os braços novamente. Meu tom é meio cético, mas a metáfora absurda acaba me ganhando.
Ele me lança um olhar rápido, verificando se estou acompanhando. Seus olhos brilham com uma diversão que se sobressai ao olhar melancólico anterior, como se estivesse testando até onde pode ir com essa conversa. Meu sorriso vacila por um momento, mas não deixo que ele perceba. - Então, você está dizendo que essas pílulas transformam qualquer um em... sei lá, uma espécie de super-humano?
Coimbra solta um riso abafado, balançando a cabeça como se minha pergunta fosse óbvia demais. Ele relaxa os ombros, o sorriso ainda pendurado nos lábios. - Isso, exatamente. Um super-humano. Mas não se engane, Naomi. Super-heróis são coisa de filme. Aqui, ninguém veste capa. Aqui, o poder só te coloca no tabuleiro como mais uma peça na guerra.
As palavras dele me atingem de um jeito estranho. O tom descontraído de Coimbra é quase uma fachada, mas algo em seus olhos diz que ele entende o peso daquilo melhor do que está disposto a admitir. Respiro fundo, sem desviar o olhar da expressão dele. - Certo, mas... o que elas fazem exatamente? - pergunto, tentando puxar mais respostas.
- Fazem de tudo, Naomi! - Ele fala, com exagerada empolgação, que logo se acalma um pouco constrangido.
Coimbra se acerta no tronco, e volta a falar, desta vez mais calmamente: - Força, velocidade, regeneração, até umas paradas que não fazem sentido. Já ouvi falar de gente que consegue criar portais, outros que manipulam areia... Uma vez, vi um cara que voava. Literalmente. O desgraçado era um pássaro humano! - Ele sorrir ao ver que eu rio com sua explicação.
- E como é que funciona? Tipo, qual é o preço? - questiono, tentando manter a seriedade.
Ele levanta as sobrancelhas, fingindo surpresa. - O preço? Ah, claro! Sempre tem um preço, né? Afinal, nada nesse mundo é de graça, certo? - Ele apoia o cotovelo no joelho, inclinando-se ainda mais, agora olhando diretamente para mim. O brilho de sarcasmo em seus olhos se mistura a algo mais sombrio. - Quer força sobre-humana? Beleza. Mas seu corpo vai implodir em cinco anos, porque os ossos não foram feitos pra aguentar o peso do mundo. Quer velocidade? Show. Mas sua mente não vai acompanhar, e você vai acabar esquecendo quem você é.
Coimbra se inclina mais para perto, o brilho na fogueira destacando os contornos de seu rosto e a intensidade de seus olhos. Sua voz baixa um tom, tornando-se quase conspiratória, com um sorriso de quem está prestes a jogar uma verdade tão insana que seria digna de uma boa teoria conspiratória.
- Pelo menos era isso que eu imaginava, - ele diz, fazendo uma pausa dramática. Seus olhos encontram os meus, fixos, como se quisesse assegurar que eu estivesse absorvendo cada palavra. - Deixa eu corrigir isso antes que você comece a pensar que Toucan vai explodir ou virar um monstro qualquer dia desses. Esquece essa baboseira trágica de 'preço a pagar'. As pílulas... Elas são perfeitas.
A ênfase em "perfeitas" faz a palavra ecoar em minha mente. Ele se recosta ligeiramente, ainda me observando, enquanto o brilho da fogueira reflete em seus olhos como dois pequenos sóis. - Isso mesmo. Sem efeitos colaterais. Nada de 'deformidades' ou 'perda de memória'. Só... poder puro, direto no sistema.
Seguro a tigela com mais força do que deveria, os dedos pressionando a madeira lisa enquanto encaro o caldo à minha frente. Não estou realmente olhando para ele. Na verdade, estou absorvendo cada palavra que Coimbra diz, conectando-as aos fragmentos de informação que já tenho.- Se as pílulas realmente alteram o 'manual do corpo', como ele diz... então o poder que conferem não é apenas físico. É biológico, químico, talvez até genético.
Incapaz de conter a onda de pensamentos, finjo uma expressão de confusão e inclino a cabeça levemente para o lado. - Mas... como? - questiono, permitindo que a hesitação permeie minha voz.
Coimbra solta um suspiro exagerado, gesticulando amplamente como quem explica algo óbvio para uma criança curiosa. - A ciência, Naomi! Essa magia moderna que a gente ama odiar. - Ele sorri. - O que a SARIME e a LIAD chamam de Seridion, ou como a gente prefere, 'pílulas de poder', é basicamente a Mona Lisa das drogas biotecnológicas.
Ele faz uma pausa breve, apontando outra vez para o céu como se a explicação estivesse escrita entre as estrelas. - Elas reescrevem o manual do seu corpo, Naomi. Pegam o que você é e te transformam em algo... maior. Melhor. Não há 'malefício'. Não há 'preço oculto'. Só potencial ilimitado.
Seus olhos brilham com algo que oscila entre fascínio e uma pitada de temor. Ele acredita no que está dizendo, mas parece haver uma sombra de dúvida, um fragmento de ceticismo que ele tenta esconder atrás do tom confiante. Eu o encaro, mas não estou olhando realmente para ele. Minha mente fervilha enquanto formulo perguntas, testando a lógica do que Coimbra acaba de dizer.
- Como isso explica o que Toucan fez? - Minha voz sai firme, mas carregada de curiosidade genuína. - Eu vi ele enfiar uma lança no próprio peito... e nada aconteceu.
- Ah, meu irmão? - Ele deixa escapar uma risada curta e sarcástica, seus lábios se curvando em um sorriso torto. - Isso? Isso não é nada! Toucan tem o tipo de poder que faria o Wolverine morrer de inveja.
A luz da fogueira dança no rosto dele e vejo a admiração por Toucan em seus olhos enquanto continua, - Manipulação óssea. - Ele faz um gesto com as mãos, como se estivesse moldando algo invisível no ar. - Ele não só sobrevive a uma lança; ele faz a lança virar parte dele. Se ele quisesse, poderia criar uma armadura com as costelas ou, sei lá, lançar os próprios ossos como flechas.
Sinto um arrepio subir pela espinha, mas disfarço, levando uma colherada lenta da sopa à boca. O caldo quente escorre pela garganta, mas minha mente está inquieta, processando cada palavra dita. - Toucan não está apenas usando os ossos como armas... Ele os está criando. O corpo dele deve estar em constante mutação, reescrevendo-se para se adaptar a essas mudanças. - Ergo os olhos para ele, fingindo confusão, como se ainda estivesse lutando para compreender. - Mas... como ele controla isso?
Coimbra faz uma breve pausa, seus olhos perdidos por um instante, como se estivesse ponderando a pergunta. Finalmente, ele solta um suspiro e ergue o olhar novamente. - Eu não posso responder por ele. - Sua voz soa mais grave agora, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado. - Mas acho que ele tem um controle absoluto. As pílulas não transformaram Toucan em um monstro descontrolado, entende? Elas... - Ele pausa, buscando a expressão certa. - Elas apenas ampliaram o que ele já era. Toucan sempre foi prático, focado. Ele não perde tempo com dúvidas. E agora? - Coimbra abre um sorriso breve, mas sem humor. - Agora ele é um predador perfeito. Cada movimento calculado, cada ação eficiente. Ele é a definição de uma arma ambulante.
- Se é tudo tão perfeito, por que não vemos isso fora da Ilha? - minha pergunta sai antes que eu possa controlá-la, mas é direta e inevitável. Coimbra ergue os olhos para mim, e sorri novamente, como se esperasse exatamente isso.
- Ah, é claro. Esqueci de mencionar o detalhe mais... peculiar. - ele responde, sua voz ganhando um tom quase triunfante, como se tivesse guardado a melhor parte para o final. - Essas pílulas, essas belezuras perfeitas que transformam gente normal em deuses de bolso? Só funcionam aqui. Na Ilha.
Minha mente dispara, formulando diversas perguntas. Ele respondeu, mas não explicou nada. Tento manter minha voz neutra, controlando o impulso de pressioná-lo demais. - Como assim? Por que só aqui? O que há na Ilha?
Coimbra pega um galho no chão e começa a desenhar círculos na terra com movimentos lentos e deliberados.
- Eu também fiquei assim quando soube. - ele diz, com breve sorriso surgindo em seu rosto antes de desaparecer, substituído por uma expressão mais séria. - A verdade é que ninguém sabe ao certo. Nós não temos informações sobre o mundo exterior há anos. Mas até onde sabemos, provavelmente, a pessoa com poderes volta a ser um humano comum. Todo aquele poder, toda a glória... puff. Some. É como se a Ilha desligasse o interruptor assim que você põe um pé pra fora. - Ele me olha de relance, percebendo minha confusão e reformula sua resposta. - Lá fora, se você engole uma dessas pílulas... - Ele faz uma pausa dramática, girando o galho em sua mão. - Nada acontece. Nada além de talvez uma dor de estômago. Mas aqui na Ilha elas transformam você.
Minha expressão se mantém firme, mas por dentro, minha mente se agita com a estranheza da afirmação. - Isso parece ridículo, - declaro, minha voz saindo tão cética quanto o esperado. Mas estou jogando a isca, esperando que ele se aprofunde mais.
Coimbra sorri, mas é um sorriso sem humor. - Bem-vinda ao clube, Naomi. - Ele descarta o galho ao lado e cruza os braços, inclinando-se para frente. - A Ilha é um teatro de horrores, e as pílulas são só o truque de mágica mais recente. Toucan? Ele é incrível aqui, mas suponho que quando sairmos da Ilha, ele virará só mais um cara com um mau histórico de saúde óssea.
Eu o observo atentamente, mantendo minha expressão confusa, mas meu objetivo é claro: arrancar mais respostas. Ele percebe minha expectativa e suspira, como se estivesse cansado de tanta explicação, mas ainda assim continua. - Depois de quase uma década vivendo aqui, percebi que esta Ilha não segue as regras normais. - Ele faz um gesto amplo com a mão, apontando para a floresta que nos cerca, como se quisesse incluir tudo ao nosso redor. - Alguma coisa aqui, no solo, no ar, talvez até no próprio tempo, é diferente. As empresas chamam isso de "o Fenômeno".
Ele pausa, olhando para mim com olhos pensativos. - Sabe como eles explicam? - pergunta, esperando uma resposta que não darei. - Comparam isso com a matéria escura. Você sabe o que é isso?
Enquanto ele fala, meus dedos deslizam ao longo da borda da tigela, desenhando círculos repetitivos. Finjo distração, como se estivesse ponderando o que ele disse, mas na verdade já tenho minha própria teoria. - Matéria escura... - penso. - Uma comparação conveniente, mas superficial. A matéria escura é uma teoria para algo que não entendemos, mas sabemos que está lá. O Fenômeno, pelo que ele diz, parece tangível, algo que está presente de forma quase física, ainda que invisível. Não é apenas uma ideia; é uma força que molda tudo nesta Ilha, desde os poderes até a estrutura do tempo e espaço... mas o que ele realmente é? As corporações claramente estão explorando isso, mas se ninguém conseguiu entender até agora, é porque estão procurando as respostas erradas.
Pausando o raciocínio, penso: - Preciso de mais informações - balanço a cabeça devagar, negando a pergunta dele, querendo ouvir onde ele quer chegar.
Coimbra ri levemente, como se esperasse minha hesitação. Ele pega o galho novamente e desenha uma linha reta na terra. - É aquela coisa que os cientistas adoram falar, mas ninguém nunca viu ou tocou. - Ele gesticula para a linha, como se fosse um conceito tangível. - Dizem que a matéria escura mantém o universo inteiro unido, mas ninguém sabe o que diabos ela realmente é.
Ele pausa novamente, olhando para o horizonte antes de continuar. - O Fenômeno, ou a Ilha, é a mesma coisa. É o "invisível", mas fundamental. Alguma coisa aqui mantém tudo junto. Faz a gravidade parecer meio bêbada, o tempo parecer... elástico. E faz essas pílulas funcionarem. Mas ninguém sabe o que é. Só sabemos que está aqui, e as empresas querem colocar as mãos nisso.
Compreendo a explicação de Coimbra e, quase sem perceber, minha mente conecta os pontos ao fato de as pílulas de poder não apresentarem efeitos colaterais. - Se é verdade que não há efeitos colaterais aqui, isso só reforça a ideia de que o Fenômeno está mantendo tudo em equilíbrio. Mas o que acontece se esse equilíbrio for rompido? E se alguém conseguir levar esse poder para fora? Coimbra parece acreditar que é impossível, mas... será mesmo? - Tento disfarçar o fluxo incessante de perguntas que minha mente formula, mantendo um semblante de curiosidade casual.
Ele me encara pensativo, os olhos semicerrados. Por fim, solta um suspiro longo, abaixa a cabeça e apanha o galho que antes usava para desenhar. Seus movimentos são deliberados, quase metódicos, enquanto começa a riscar a terra novamente.
Desta vez, desenha um círculo simples. Seu traço é firme, e a ponta do galho arranha a terra seca, produzindo um som suave que parece amplificar o silêncio ao nosso redor. Ele não
- Olha só... - ele começa, mas não olha para mim enquanto fala, embora sua voz carregue uma convicção calculada. - Lá fora, no mundo normal, tudo segue regras. Gravidade, energia, química... aquelas coisas que chamamos de leis da física. - Ele risca uma linha reta no centro do círculo, dividindo-o em duas partes desiguais. - Aqui? - Ele faz uma pausa, pressionando o galho contra a terra antes de continuar. - As regras se distorcem. É como se a Ilha tivesse o próprio manual. Um onde o "normal" não tem lugar.
Fixo os olhos no desenho, tentando manter a expressão neutra, embora cada palavra dele apenas reforce as teorias que já formulei. Inclino a cabeça levemente, fingindo ponderar sobre sua explicação. - Então o Fenômeno seria... uma espécie de energia invisível? - sugiro casualmente, moldando minha voz para soar genuinamente curiosa, sem deixar transparecer que já cheguei a essa conclusão sozinha.
Coimbra para por um momento, levantando o olhar para me encarar com um sorriso quase divertido, como se tivesse pegado um deslize meu. Ele ergue um dedo, gesticulando levemente enquanto fala, como um professor que está prestes a corrigir um aluno.
- Algo assim. - Seu tom é de quem quer refinar uma ideia, mas sem desmontá-la completamente. Ele se inclina para frente, o galho girando entre seus dedos, e prossegue: - Mas não é só energia. É como se o Fenômeno fosse... o arquiteto da Ilha. - Ele desenha traços ondulados ao redor do círculo, como se estivesse tentando ilustrar a complexidade do conceito.
Ele me observa de soslaio, medindo minha reação, mas mantenho minha postura atenta e inquisitiva. Suas próximas palavras saem com um peso incomum, como se carregassem tanto frustração quanto admiração.
- Anos atrás, Toucan e eu ficamos abrigados em uma base abandonada da LIAD aqui na Ilha. - Sua voz abaixa, e seu semblante se fecha brevemente, como se estivesse revivendo algo que preferia esquecer. - E nela tinha documentos que mostravam que tanto a LIAD quanto a SARIME já gastaram bilhões tentando entender o Fenômeno.
Suas mãos param de desenhar, deixando o galho entre as coxas, e repousando seus dedos sobre os joelhos, apertados como se ele precisasse conter algo que ameaçava escapar.
- Eles cavaram buracos profundos, explodiram montanhas, mandaram pílulas de poder para ver como elas reagiam. - Ele gesticula vagamente com a mão, como se pudesse encapsular a extensão das tentativas em um único movimento. - Mas ninguém conseguiu desvendar.
Coloco a tigela vazia no chão ao meu lado, deixando meus dedos repousarem sobre a borda por um instante antes de cruzar os braços e esfregar o queixo com a ponta dos dedos. Minha expressão permanece atenta, mas neutra, uma máscara cuidadosamente esculpida para esconder o redemoinho de pensamentos. As palavras de Coimbra ecoam como uma batida distante enquanto reviso o que ele disse. - Explodiram montanhas, cavaram buracos, mandaram pílulas para ver como elas reagiam... - Repasso as informações mentalmente, cada frase confirmando um padrão óbvio. - Claro que fizeram isso. É exatamente o que as corporações fazem: tentar dominar o desconhecido à força, sem compreender a essência do que estão lidando.
Pauso meus pensamentos, refletindo sobre uma ideia mais inquietante. - Mas e se o Fenômeno não puder ser controlado porque não foi feito para ser controlado? O que os nativos devem pensar disso? - A dúvida martela com insistência, e, após um momento de hesitação, decido expressá-la em voz alta.
- O que os nativos dizem sobre tudo isso? - minha voz soa quase casual, mas carrega um tom de curiosidade.
Coimbra solta um riso seco, quase amargo, enquanto seus olhos vagam pela floresta, os traços de seu rosto adquirindo uma rigidez sombria. O riso dura apenas um instante, mas deixa no ar uma sensação de algo muito maior.
- Os nativos, pelo que ouvi, dizem que a Ilha é sagrada, que é viva. - Ele faz uma pausa, como se cético conto a esse pensamento. - Em Vinera, eles acreditavam que tudo aqui: as frutas, os poderes, até a própria vida deles, existe por causa da Ilha.
Observo seu perfil à luz trêmula da fogueira, enquanto absorvo sua explicação. A filosofia miticista dos nativos não me surpreende, mas mantenho minha reação cuidadosamente velada. - Se a Ilha for realmente um organismo vivo, como dizem os nativos, então ela está apenas reagindo à invasão. As pílulas, os experimentos, os conflitos... tudo isso pode ser a maneira dela de se defender. - O pensamento soa insuportavelmente simplista, quase ingênuo.
Meu silêncio parece chamar a atenção de Coimbra, que estreita os olhos levemente, como se tentasse decifrar algo em minha expressão. Percebendo sua observação, lanço uma pergunta para distraí-lo. - E você? No que acredita? - Minha voz soa mais grave do que eu pretendia, carregada por um peso que nem eu consigo identificar.
Ele parece surpreso por um instante, erguendo a sobrancelha antes de apontar para si mesmo com o polegar, um gesto despretensioso, quase cínico. - Eu? - Ele solta um riso curto, que não chega a iluminar seus olhos. - Eu acho que é só mais um mistério pra ferrar com a gente.
Permaneço em silêncio, deixando suas palavras ecoarem enquanto minha mente processa tudo o que foi dito. A clareira parece mais densa agora, o calor da fogueira quase sufocante em contraste com o peso da conversa. Por fim, lanço outra pergunta, minha curiosidade mais uma vez me empurrando para frente.
- E você? Já pensou em tomar uma? - As palavras saem mais diretas do que planejei, mas não me importo.
Coimbra ri novamente, mas desta vez há algo de melancólico em seu tom, uma sombra que perpassa seu rosto antes de ele responder.
- Já pensei, claro. Quem não pensaria? Elas são a chave pro próximo passo da evolução. - Ele faz uma pausa, sua expressão se tornando mais dura. - Mas essas pílulas são raras.
Balanço a cabeça lentamente, absorvendo a informação enquanto a amargura se infiltra em minha voz, quase sem que eu perceba. - Ou seja, é poder nas mãos de poucos.
Ele me encara, seus olhos refletindo como um espelho todas as verdades inconvenientes que esta Ilha esconde.
- Exato. - Sua resposta é simples, mas o peso dela é imenso, pendendo entre nós como algo que nenhum dos dois ousa desafiar.
- E você, usaria ela? - A voz de Coimbra quebra o silêncio com um tom curioso, mas sério o suficiente para deixar claro que ele espera uma resposta honesta.
Solto o ar devagar pelos lábios, simulando hesitação enquanto cruzo os braços sobre os joelhos. - Parece tentador... - admito, deixando as palavras pairarem no ar por um instante antes de completar. - Mas eu não arriscaria. Sempre tem um preço, mesmo que a gente não consiga ver. E por que eu faria isso comigo mesma? - Minha voz é propositalmente neutra, mas meus olhos permanecem fixos nele, atentos a qualquer discordância em sua expressão ou linguagem corporal.
Coimbra dá de ombros, um gesto despreocupado que contrasta com a intensidade de sua resposta. - Porque pode te ajudar com sua missão de voltar pra casa - ele afirma, a seriedade em sua voz destoando do tom leve de antes. Ele larga o galho com o qual desenhava no chão, deixando-o cair ao lado como se não tivesse mais utilidade. - É o sonho do ser humano, Naomi. Ser invencível.
Ele se inclina para trás, apoiando-se com uma mão no chão. - Mas entendo o receio. Essas coisas, no final, sempre têm um diabo na equação. - Sua afirmação é crua enquanto gesticula com a outra, como se tentasse pintar uma imagem no ar. - Quer pular da Terra direto pro Olimpo? Beleza. Mas ninguém te conta que o preço pra brincar de Zeus é que, um dia, você acaba como Ícaro, despencando de cara no chão.
As palavras ressoam em meu peito enquanto apoio os cotovelos nos joelhos novamente, encostando o queixo nas mãos. Meus dedos tamborilam levemente no rosto, um gesto distraído que esconde o foco absoluto com que observo Coimbra.
- Ele fala sobre as pílulas como se fossem o ápice da evolução... - Reflito, percebendo Coimbra retomar o galho e desenhar padrões aleatórios no chão outra vez, mas há algo quase automático em seus movimentos, como se ele estivesse mais imerso nas próprias palavras do que no que suas mãos fazem. - Há algo contraditório nisso. Se o poder das pílulas depende do Fenômeno, então não é real. É emprestado. Temporário. Não é algo que pertence ao usuário, mas à Ilha. - Meu olhar se fixa no círculo imperfeito que Coimbra traça na terra, uma metáfora involuntária para a fragilidade de sua explicação.
Ele para por um momento, percebendo meu silêncio, mas não diz nada, apenas continua a desenhar. Minhas palavras formam-se em pensamentos silenciosos, incisivos. - Isso explica por que as pílulas não funcionam fora daqui. Não é que elas sejam imperfeitas; é que são simbióticas. Elas precisam da Ilha para existir, assim como os humanos precisam do ar. Ele acha que isso é sobre poder absoluto, mas é o contrário. O verdadeiro poder pertence à Ilha, não a nós.
Coimbra, ainda sem perceber a profundidade de minhas reflexões, acha que está me dando respostas. Ele fala como alguém que acredita estar compartilhando um segredo fundamental. Mas para mim, cada palavra dele é apenas uma confirmação. Não de verdades absolutas, mas das perguntas certas.
Cruzo os braços, olhando para o céu por um instante antes de voltar minha atenção para ele. - E se o poder que você admira tanto for só um reflexo do que a Ilha é? - A pergunta não chega a sair dos meus lábios, mas fica ali, suspensa, enquanto ele continua a traçar suas linhas tortas no chão.
Coimbra, achando que está me guiando, na verdade está apenas reforçando a certeza de que a verdadeira resposta ainda está fora de alcance. E, ironicamente, isso só me faz querer buscá-la ainda mais.
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