Relicário
Ato I
A luz do sol atravessa o tecido áspero da barraca, aquecendo minha pele e forçando meus olhos a se entreabrirem. A claridade parece insistir, puxando-me lentamente do mundo dos sonhos para o peso do presente. Meu corpo está pesado, e o cansaço parece ter se instalado nos meus ossos. Respiro fundo, ainda deitada, tentando me livrar da sensação de torpor.
Uma sombra interrompe a entrada da barraca, projetando uma silhueta no tecido. A voz de Coimbra chama, grave, mas com a tranquilidade habitual. - Naomi, já está acordada?
Esfrego os olhos com as costas das mãos, tentando afastar o sono. Meu corpo protesta enquanto me sento, a coluna estalando com o movimento.
- Estou saindo - respondo com a voz rouca e baixa.
Ajoelho-me no chão estreito da barraca, esticando o braço para alcançar a pilha desorganizada de roupas no canto. Meus dedos encontram o tecido amassado de uma camisa e uma calça. Visto-me de maneira apressada, enfiando as pernas na calça com movimentos mecânicos enquanto o tecido áspero desliza contra a pele.
Ao sair, a luz intensa do sol me atinge, obrigando-me a semicerrar os olhos. O calor do dia é leve, quase agradável, mas o brilho incomoda meus sentidos ainda letárgicos. Ao me virar, encontro Coimbra parado a alguns passos de distância. Ele parece distraído, seus olhos castanhos vagando.
- O que foi? - pergunto, franzindo levemente o cenho. Há algo estranho em sua postura, como se estivesse perdido em pensamentos.
Ele balança a cabeça de leve, como se despertasse de um devaneio, e um pequeno sorriso surge em seus lábios. - Fiz uns espetinhos grelhados de carne. Vai querer?
Sua voz soa casual, mas o olhar que ele me lança ainda parece distante, quase hesitante. Assinto com a cabeça, um movimento curto e automático, mas antes de segui-lo, algo me incomoda. Uma ausência. Meu corpo instintivamente se inclina para o lado, como se buscando o equilíbrio que parece ter sido perdido.
- Esqueci algo na barraca. Espera - informo, minha voz firme, enquanto me viro abruptamente.
Empurro a aba da barraca com a mão, entrando no pequeno espaço. Meus olhos percorrem o interior, buscando minha arma ao lado da mochila jogada no canto. Meus dedos tocam o metal frio, mas, antes de puxá-la, algo chama minha atenção. Um brilho. Fraco, quase insignificante, vindo da calça que deixei amontoada no chão.
Curvo-me lentamente, os joelhos rangendo contra a lona, e estendo a mão, os dedos afastando o tecido com cuidado, até que um objeto escorrega do bolso e cai silenciosamente no chão. Por um instante, não reconheço o que é, mas quando o seguro entre os dedos, a memória me alcança.
É o colar que a criança carregava.
O pingente tem a forma de um círculo irregular, quase perfeito, mas não comum. As bordas onduladas e ligeiramente ásperas são feitas de prata oxidada, com pequenos detalhes de ouro rosé preenchendo pequenas fissuras, como se o colar se reconstruísse constantemente. No centro, um cristal flutua, transparente como água pura. Ele parece suspenso por fios invisíveis, e conforme o movimento dos meus dedos, gira suavemente, refratando a luz do Sol lá fora. É hipnotizante, como se cada faceta escondesse um segredo.
O cordão, feito de couro preto entrançado, é macio ao toque, mas forte. Entrelaçados com ele, pequenos fios dourados refletem a luz em um brilho discreto, quase como se quisessem passar despercebidos. Seguro o colar em silêncio, observando-o brilhar contra a penumbra da barraca.
E então, ele volta à minha mente. Tumaz, a criança de olhos grandes e cabelos escuros. A lembrança me golpeia, trazendo o cheiro de fumaça, os gritos distantes e o calor sufocante do vilarejo em chamas. Vejo suas mãos pequenas segurando a bebê contra o peito, os lábios tremendo.
Aperto o colar na palma da mão. - Nem me lembrava que isso ainda estava aqui - penso, observando a silhueta de Tumaz fugindo com a bebê e deixando o colar cair de sua mão sem perceber.
Não há como saber o que aconteceu com ele depois. Se ele encontrou segurança ou se... não quero pensar nisso. Mas este colar... Ele é tudo o que restou dele para mim. Uma lembrança do que perdi, do que não consegui proteger até o final.
Seguro o cordão com ambas as mãos, hesitando por um instante antes de levá-lo ao pescoço. Quando o coloco, o couro macio repousa sobre minha pele, o cristal balançando suavemente com o movimento.
Passo os dedos pelo pingente e o ergo à altura dos olhos, observando o cristal brilhar sob a luz fraca. Ele parece pulsar levemente uma parte de Tumaz que o carregou com tanto cuidado.
Respiro fundo, deslizo a arma para minha cintura e me levanto, ajustando o colar por baixo da camisa. O colar balança levemente enquanto saio da barraca.
- Não posso mudar o que aconteceu, mas talvez possa carregar a promessa que ele representa - reflito, abrindo a aba da barraca e acompanhando Coimbra.
Ato II
- Está aqui ainda - resmunga Pan, com a voz carregada de tédio, enquanto mastiga lentamente um pedaço do espetinho em suas mãos. A gordura escorre pelo canto da boca, mas ela não parece notar, ou se importa. Seus olhos estreitam-se em minha direção por um breve momento, como se o simples fato de eu ainda estar ali fosse motivo de incômodo.
Coimbra, sentando-se do outro lado da fogueira, lança-lhe um olhar afiado, mas sem hostilidade. É o tipo de olhar que carrega anos de convivência, um aviso silencioso que dispensa palavras.
- Onde mais ela estaria? - Ele questiona, sua voz calma, mas firme, enquanto gesticula com a cabeça para que eu me sente no banco improvisado ao lado da fogueira. Há algo no movimento dele que sugere controle, como se estivesse mantendo a ordem em um ambiente à beira de um desequilíbrio constante.
Pan termina de mastigar o pedaço de carne e engole, sua mandíbula movendo-se lenta e deliberadamente. O silêncio que se segue parece mais pesado por causa dela, como se estivesse deixando um ponto claro apenas com sua presença. Sem uma palavra, ela se levanta de repente e se vira para sair. Seus passos são firmes, mas silenciosos, e a luz da fogueira dança em sua silhueta enquanto ela desaparece na escuridão.
Penso em dizer algo, talvez uma tentativa de quebrar o desconforto que ela deixa em seu rastro, mas Coimbra levanta levemente a mão, um gesto sutil que diz mais do que palavras. Deixe-a ir.
Observo Pan desaparecer entre as sombras por um instante antes de romper o silêncio. - Ela não é muito de conversar - arrisco, minha voz carregada de curiosidade, mas também de cautela, como se testasse o terreno.
Coimbra solta uma risada baixa, mas não há calor nela. É um som seco, quase cínico, que parece vir mais de exasperação do que humor. - Pan? Conversar não está exatamente no repertório dela. - Ele inclina levemente a cabeça, um sorriso cansado surgindo no canto dos lábios. - Ela acha que palavras são tipo munição: usa só quando tem certeza que vai acertar.
Pondero por um momento, observando as brasas brilharem suavemente na fogueira. Minha mente tenta processar o que ele disse enquanto um pensamento me escapa quase involuntariamente. - Certo, mas isso a torna mais uma franco-atiradora ou alguém com preguiça de recarregar? - Minha voz sai séria, mas com um leve tom de provocação que surpreende até a mim mesma.
Espero a reação de Coimbra, mas ele apenas levanta a sobrancelha, como se considerasse minha pergunta mais a fundo do que o esperado. Por um breve momento, o canto de sua boca treme, sugerindo um sorriso contido que parece estar mais perto da admiração do que do divertimento. - Boa pergunta - ele responde finalmente, sua voz carregada de uma leveza que contrasta com a tensão do momento.
Com um gesto casual, Coimbra aponta para os espetinhos ao lado da fogueira. O calor das brasas faz a carne brilhar em um dourado tentador, enquanto o suco que pinga das pontas já formou crostas escuras na base improvisada. O aroma salgado preenche o ar, uma distração inesperada e quase surreal em meio à dureza do ambiente.
- Sirva-se - ele diz, mas há um tom quase imperceptível de comando em suas palavras.
Sentada ao lado dele, pego um espetinho, sentindo o calor da madeira contra a pele enquanto observo o brilho da gordura que escorre pela carne. Mesmo com o peso da conversa e da presença desconcertante de Pan, há algo estranhamente reconfortante em mastigar a carne tenra e saborosa, como se fosse uma pequena trégua do caos que nos cerca.
Enquanto mordo o primeiro pedaço, sinto o olhar de Coimbra sobre mim, como se avaliasse minha reação. Não digo nada, mas o sabor parece dissolver a tensão momentaneamente. Ele percebe, e embora não diga nada também, o pequeno sorriso que surge em seus lábios sugere que, pelo menos por agora, conseguimos encontrar um breve instante de normalidade.
- Ela é sempre assim? - pergunto, limpando os dedos com pedaço de folha e terminando o espetinho com uma última mordida. Minha voz carrega mais curiosidade do que ceticismo, e meus olhos voltam-se para Coimbra, esperando sua resposta.
Ele gira o espetinho nas brasas com movimentos lentos, e um sorriso cansado curva seus lábios. - Se você acha que isso é ruim, deveria tê-la visto aos sete anos.
- Sete anos? - Minha sobrancelha se arqueia automaticamente, e o pensamento me ocorre antes que eu possa controlá-lo. - Provavelmente filha de nativos mortos - suponho em silêncio, mas mantenho a expressão neutra.
Coimbra assente, desviando os olhos para a carne que começa a dourar ainda mais sob as chamas. Ele apanha um novo espetinho e o estende para mim. - Pan é uma boa menina, Naomi. Só tem... a casca mais dura do mundo.
Eu seguro o espetinho, mas hesito por um momento antes de responder, processando as palavras. - Boa menina? - Repito, incrédula, olhando para o homem à minha frente como se ele tivesse acabado de dizer algo completamente absurdo. - Aquela garota ali? Se eu tentasse dizer isso pra ela, acho que me jogaria no fogo.
Coimbra ri, um som baixo e genuíno que quebra parte da tensão. Ele apoia o espetinho no suporte improvisado, girando-o distraidamente. - Provavelmente. - Seu sorriso persiste por um instante, mas logo se suaviza em uma expressão contemplativa. - Mas, sério, ela tem um bom coração. Só não mostra muito.
Enquanto mastigo o espetinho, o sabor salgado e suculento da carne ocupa minha atenção por um momento, mas não o suficiente para silenciar minha curiosidade crescente. A textura macia parece deslocada no cenário rude, mas, de certa forma, é um raro consolo. Espero que Coimbra continue, sabendo que ele tem mais a dizer.
Ele respira fundo, mantendo os olhos fixos nas brasas. - Toucan e eu encontramos Pan quando ela era só uma criança. Devia ter uns cinco ou seis anos. Estava sozinha, perdida, na Ilha. - Sua voz se torna mais baixa, quase reflexiva, enquanto ele revisita o passado. - Parecia um ratinho, sabe? Suja, magrinha... assustada.
Engulo seco, a imagem de Pan como uma criança vulnerável trazendo à tona lembranças indesejadas. Tumaz e a bebê invadem minha mente, como um reflexo inevitável da história de Coimbra.
- E vocês decidiram cuidar dela? - pergunto, minha voz suavizando sem que eu percebesse, enquanto meu olhar busca o dele.
Coimbra dá de ombros, como se a decisão tivesse sido tão óbvia que não merecesse reflexão. - Não tínhamos muitas opções. Cuidar dela parecia... a coisa certa a fazer. - Ele sorri de canto, mas o peso de suas palavras logo apaga o sorriso. - Naquela época nós também éramos recém-chegados na Ilha.
A curiosidade me puxa para frente, meus cotovelos repousando sobre os joelhos enquanto o estudo. - E como foi cuidar dela?
Coimbra solta uma risada curta, carregada de uma nostalgia que parece tanto amarga quanto doce. - Uma bagunça. - Ele balança a cabeça devagar, como se ainda pudesse sentir o caos daqueles dias. - A Pan era muito desconfiada. A gente dava comida, ela fugia. Tentava ensinar algo, ela desobedecia.
- Vejo que não mudou nada então - comento.
Ele ergue os olhos para mim com breve risada, seus olhos castanhos encontrando os meus por um instante antes de desviar novamente para as chamas. - Cuidar da Pan... Não foi fácil - ele admite. - Toucan e eu, a gente nunca foi exatamente o tipo "pai substituto", sabe? Mas ela não nos deu escolha.
O brilho da fogueira dança em seus olhos, refletindo uma seriedade que ele não tenta esconder. - A Pan, quando chegou, não falava nada. Nada mesmo. Não era o silêncio comum de uma criança tímida. Era como se ela tivesse decidido que o mundo não merecia ouvir a voz dela. - Ele balança a cabeça devagar, seu olhar perdido nas chamas, enquanto uma melancolia evidente escurece sua expressão. - E quando ela falava... era raiva. Sempre raiva.
Minha curiosidade se aguça, e não consigo evitar a pergunta. - Que tipo de raiva?
Coimbra me encara, seus olhos revelando uma hesitação que ele não consegue esconder. Por um momento, penso que ele vai desviar da pergunta, mas então sua voz surge. - Ela era pequena, mas agia como se tivesse o peso de um adulto. Qualquer tentativa nossa de ensinar algo ou protegê-la era recebida como um ataque.
Ele pausa, esfregando os cabelos como se ainda sentisse o cansaço daqueles dias. - Lembro de uma vez em que tentamos ensinar como montar uma armadilha simples pra pegar comida... - Ele ri baixinho, mas o som é amargo, quase sufocado. - Ela destruiu a armadilha inteira antes mesmo de tentar aprender. Disse que "não precisava de ninguém".
- E não era só isso. Às vezes, ela fugia. Sumia por horas, até dias. Eu ficava louco, revirando a floresta atrás dela, e Toucan... bem, tentava me acalmar enquanto eu imaginava todos os cenários possíveis.
Minha voz sai cautelosa: - E ela sempre voltava?
Coimbra assente lentamente, seu olhar distante. - Sempre. Mas voltava machucada. - Ele faz uma pausa, e vejo sua mandíbula se apertar antes de continuar. - Teve uma vez... Acho que foi quando percebemos o quanto estávamos perdendo ela. Ela voltou depois de três dias. Toda arranhada, suja... mas segurando um pedaço de galho que ela afiou pra usar como arma. Os olhos dela estavam tão... vazios. - Ele olha para mim, e há algo cru em sua expressão. - Como se estivesse pronta pra matar quem tentasse chegar perto.
Minha garganta se aperta, mas não digo nada.
- Tentei falar com ela, acalmá-la, mas ela apontou o galho pra mim e gritou. Foi a primeira vez que ela gritou com a gente. Disse que não precisava de ninguém. Que a gente era igual a todo mundo que a abandonou.
Ele respira fundo, e os ombros dele caem levemente, como se a memória sugasse toda a energia que ele tem. - Toucan viu a reação dela e recuou, o que foi raro. Ele sempre foi direto, mas naquele momento... ele só abaixou as mãos e sentou. Não disse nada. E eu fiz o mesmo.
Minha voz é quase um sussurro, como se tivesse medo de quebrar o momento delicado. - E ela?
- Ficou parada por horas, com o galho apontado, até que o braço dela começou a tremer de cansaço. Toucan, em silêncio, jogou um pedaço de pão na direção dela. Foi só isso. - Ele ri, mas é um som triste. - E ela, faminta, abaixou o galho e pegou.
Coimbra olha para o céu, como se o momento ainda estivesse gravado em sua mente. - Depois disso, não forçamos mais nada. Decidimos esperar que ela viesse até nós, no tempo dela. E quando ela veio... foi como se uma barreira tivesse rachado, só um pouco. Mas foi o suficiente pra nos dar esperança.
Coimbra abaixa a cabeça, os dedos esfregando as têmporas como se tentasse aliviar o peso esmagador da memória. - Cuidar da Pan não foi sobre ensiná-la a sobreviver. Ela já sabia como fazer isso, de um jeito ou de outro. Foi sobre mostrar que havia algo pelo que sobreviver.
As palavras dele me atingem com força, como se arrastassem um manto de gravidade para a conversa. Eu me ajeito no banco improvisado, apoiando os cotovelos nos joelhos, sentindo o peso do que ele compartilha.
- Ela cresceu bastante, mas realmente nunca perdeu esse jeito... - Ele ri suavemente. - Sempre pronta pra brigar, mas... leal. Ela não confia fácil, mas quando confia, é pra sempre.
Por um momento, acho que ele vai parar por ali, mas então seus ombros caem levemente, como se finalmente tivesse decidido compartilhar algo mais profundo.
- Quando Toucan e eu encontramos Pan... a primeira coisa que pensamos foi: "Essa menina deve ter nascido aqui." - Ele ri baixinho, mas o som é seco, vazio, como uma piada ruim que ninguém deveria ter que ouvir. - Porque, convenhamos, quem em sã consciência enviaria uma criança de cinco anos para uma Ilha como essa?
Minha testa franze em incredulidade. - E ela não nasceu aqui? - pergunto, minha voz carregando a surpresa que sinto.
Coimbra balança a cabeça lentamente. - Não. Ela não nasceu aqui. A gente só descobriu isso depois que ela cresceu o suficiente pra contar a própria história.
A revelação me atinge como um soco no estômago, e minha mão se fecha em punho, um gesto involuntário de indignação. - Ela tinha só cinco anos. Quem faria isso com uma criança? - Minha voz sai mais alta do que pretendi, pois já sei a resposta.
Ele me olha, seus olhos castanhos carregando uma dor silenciosa, e sorri tristemente. - Quem? As mesmas pessoas que controlam tudo fora e dentro dessa Ilha.
Tento processar o que ele acabou de dizer, mas a indignação é mais forte que a lógica. - E ninguém tentou ajudá-la?
Coimbra dá de ombros, um gesto lento e pesado, como se a pergunta não tivesse uma resposta real. O silêncio que se segue é espesso, quase sufocante, preenchido apenas pelo som da madeira estalando no fogo.
Minha curiosidade vence minha hesitação, e, sem perceber, me inclino para frente. - Mas o que aconteceu? - pergunto, minha voz hesitante, quase temendo a resposta.
Coimbra segura um graveto ao lado, girando-o entre os dedos antes de espetá-lo na terra. Ele parece buscar as palavras certas, seu olhar perdido em algum ponto além das chamas. - Não dá pra resumir o que ela passou sem soar como um pesadelo de filme ruim. - Ele pausa, o graveto parando em sua mão, enquanto seus olhos fixam-se nos espetos sobre o fogo. - Ela era só uma criança... vivendo com uma mãe que não dava a mínima e um padrasto que era... - Sua mandíbula se aperta, e vejo os músculos de seu pescoço tensionarem. - Um monstro.
Eu sinto sua raiva, mas fico em silêncio, deixando-o continuar.
- A única pessoa que realmente se importava com ela era a irmã mais velha, Nila. - Coimbra faz uma pausa, a dor em seu tom quase palpável. - E foi Nila quem pagou o preço.
Minhas mãos se apertam involuntariamente nos joelhos. - O que aconteceu?
Coimbra segura o graveto com tanta força que ele se parte com um estalo seco. Ele parece não perceber, seu olhar fixo em algum ponto na terra. - O padrasto... um dia ele foi longe demais e bateu em Pan. Nila enfrentou ele para protegê-la. - Sua voz falha, e ele para por um momento, respirando fundo antes de continuar. - Mas ele a matou.
- E depois disso... - Coimbra balança a cabeça, olhando para baixo. - Pan foi acusada. A própria mãe disse que foi culpa dela.
- O quê? - Minha voz escapa antes que eu possa me controlar.
- É. A mãe. A única pessoa que deveria ter protegido Pan, culpou ela pela morte da única pessoa que realmente cuidava dela. - Ele ri, uma tentativa inútil de aliviar a dor. - Como se isso não fosse o suficiente, o padrasto matou sua mãe e baleou Pan, deixando ela pra morrer antes de se matar.
Tento encontrar palavras, mas não há nada que possa dizer que diminua o horror do que acabei de ouvir.
- Mas, por algum milagre, ela sobreviveu. - Ele solta o graveto partido. - Mas o que ela enfrentou depois... foi tão ruim quanto.- Mas o que ela enfrentou depois... foi tão ruim quanto.
Ele olha para mim, e seus olhos estão sombrios, carregados de uma tristeza que ele claramente sente por Pan. - Quando todos foram mortos, Pan ficou completamente sozinha. Era uma menina quebrada, sem ninguém, sem nada. E então, como se o destino não pudesse ser mais cruel, estranhos apareceram, não sei se dá SARIME ou LIAD. Gente do tipo que só vê números, não pessoas. Eles a capturaram e mandaram pra cá, como se ela fosse... descartável.
Ele faz uma pausa, engolindo em seco.
- Sabe o que é mais louco? - Ele ergue os olhos para me encarar, fixando-me com um olhar intenso. - Ela nunca chorou. Pelo menos não na nossa frente.
- Nunca? - Minha voz soa mais baixa do que o normal.
Coimbra balança a cabeça lentamente, como se estivesse reafirmando para si mesmo. - Não. Nunca. - Ele franze o cenho, os olhos voltando para o fogo. - Era como se ela já soubesse que, aqui, lágrimas não iam adiantar nada.
Meu olhar se perde momentaneamente, enquanto minha mente viaja, tentando imaginar Pan como aquela criança de cinco anos, sozinha em um lugar tão cruel. É uma imagem que minha mente se recusa a formar completamente.
- Tudo isso... ela passou por tudo isso e ainda assim conseguiu sobreviver? - As palavras escapam de meus lábios quase sem eu perceber, um murmúrio mais para mim mesma do que para ele.
Coimbra responde com um sorriso amargo, desgastado pelo tempo e pelas memórias. - Ela fez mais do que isso, Naomi. - Sua voz soa quase admirada, mas há um toque de tristeza que não passa despercebido. - Ela se tornou uma sobrevivente de verdade.
Inclino-me ligeiramente para frente, balançando a cabeça em um gesto lento, como se tentasse absorver tudo. As palavras de Coimbra pesam em minha mente, enquanto as peças do quebra-cabeça que é Pan começam a se encaixar. - Isso explica muita coisa sobre ela... - murmuro, minha voz carregada de uma compreensão recém-descoberta.
Coimbra ergue o olhar para mim, e desta vez há uma firmeza em sua expressão, uma convicção que não aceita contestação. - Explica, mas não justifica. - Suas palavras são diretas, quase duras, como se quisessem cravar uma lição. - Toucan e eu fizemos o melhor que pudemos, mas, no fundo, ela é quem decidiu que tipo de pessoa queria ser.
Minha voz vacila levemente enquanto faço a pergunta que me atormenta. - E vocês acham que ela está bem com isso? Com o que ela é?
Ele me encara por um longo momento antes de responder, e em seus olhos vejo algo que não sei se é certeza ou resignação. - Não sei, Naomi. Mas sei que, se ela não estiver, ninguém aqui vai conseguir ajudá-la.
Engulo em seco, desviando o olhar para as chamas que continuam a crepitar, como se fossem a única constante em um mundo tão caótico e imprevisível. Agora eu entendo por que Pan é tão difícil, tão dura. Ela é o resultado de um mundo que a quebrou repetidas vezes e nunca pediu desculpas; alguém que aprendeu, da pior forma possível, que confiar nos outros pode ser um risco maior do que qualquer perigo físico.
E, de algum jeito, Toucan e Coimbra encontraram uma maneira de romper essa barreira, mesmo que de forma imperfeita. Eles se tornaram um pedaço da fortaleza dela, mas não podem ser a chave para curá-la. Ela carrega o peso de sua própria história, e apenas ela pode decidir o que fazer com isso.
Eu respiro fundo, deixando o calor do fogo aquecer minhas mãos. Por mais que minha mente insista em tentar entender, sei que algumas coisas não são para serem consertadas. Algumas coisas... só podem ser carregadas.
Mesmo assim, aqui está ela. Aqui estamos todos. Fragmentos de histórias diferentes, unidos por algo maior que nossas cicatrizes. E por um momento, apenas um momento, encontro uma espécie de conforto nisso.
Ato III
O breve momento de silêncio é interrompido abruptamente pela voz grave de Toucan. - Coimbra - ele chama, a seriedade de sua voz fazendo Coimbra atender sem demora.
Coimbra ergue a cabeça, atento, e se levanta sem hesitar. Ele caminha em direção a Toucan, que está a alguns passos da fogueira, com a postura rígida e o olhar fixo demonstrando preocupação. Enquanto eles sussurram, percebo um leve franzir no rosto de Coimbra, que sugere que o assunto é sério. Mesmo sem conseguir ouvir, o peso da interação é evidente, e minha curiosidade cresce.
- O que será que estão falando? - penso, tentando captar algo enquanto noto o olhar discreto que os dois lançam na minha direção.
Eu mastigo o último pedaço do espetinho devagar, mantendo os olhos fixos neles. Sem tirar o olhar, coloco o graveto vazio sobre o tronco ao lado e me levanto, ajustando a postura para parecer indiferente. Mas minhas mãos se fecham em punho ao perceber que agora ambos me encaram diretamente, como se tivessem tomado alguma decisão.
- Vem aqui, Naomi - diz Toucan, sua voz baixa, mas carregada de uma firmeza que torna a frase mais uma ordem do que um convite.
Aperto os lábios, mas caminho até eles sem hesitar. Paro a poucos passos, cruzo os braços e espero que falem algo.
Coimbra toma a dianteira, sua voz saindo cautelosa. Ele coça a nuca, um gesto nervoso que já identifiquei nele antes. - Toucan está preocupado com os suprimentos. Estamos com pouca comida e água, e ele acha que precisamos repor antes que a situação fique crítica.
Ele para, como se considerasse suas próximas palavras. Antes que ele continue, ergo uma sobrancelha e dou um passo à frente, minha voz firme. - E vocês querem que eu vá atrás desses suprimentos?
Coimbra arregala os olhos, visivelmente surpreso com minha reação. Ele balança as mãos no ar, tentando desfazer o mal-entendido.
- Não! Não é isso - responde ele apressado. - Eu me ofereci para ir. Só precisamos que você...
Antes que ele possa dizer qualquer outra coisa, dou mais um passo à frente, minha determinação transparecendo na voz. - Eu vou com você.
A declaração parece pegá-lo de surpresa. Coimbra me encara por alguns segundos, como se esperasse que eu voltasse atrás. Seus lábios se movem, mas ele não consegue dizer nada. Toucan, no entanto, cruza os braços e dá um passo à frente. Sua postura imponente parece preencher o espaço entre nós.
- Não sei se é uma boa ideia, Naomi, - diz ele, sua voz ainda mais firme. - Precisamos de você aqui. Coimbra e eu conhecemos bem a Ilha.
Sustento o olhar de Toucan, erguendo o queixo levemente. Respiro fundo antes de responder, mantendo o tom confiante.
- E eu também. Passei semanas estudando a geografia da Ilha antes de ser enviada para cá. - Faço uma pausa, deixando minhas palavras ganharem peso. - Além disso, dois são melhores que um, principalmente se algo der errado.
Coimbra mantém os olhos fixos no chão, o peso de sua hesitação evidente na postura retraída. Sua voz sai baixa, quase como se lutasse contra a própria determinação.
- É perigoso, Naomi. - Ele balança a cabeça levemente, como se tentasse reforçar suas palavras para si mesmo. - Não é só sobre os suprimentos. Você é uma peça importante aqui. Não podemos arriscar perder você.
Endireito a coluna e inclino levemente a cabeça, o olhar fixo nele. Minha voz emerge calma, mas com a convicção de quem não aceita um não como resposta. - E é exatamente por isso que eu preciso ir com você. Porque eu não sou uma peça isolada, Coimbra. - Faço uma pausa para que minhas palavras ganhem peso. - Se vou fazer parte desse grupo, preciso ajudar igual. E, neste caso, o melhor é irmos em dois.
Toucan me estuda por um momento, seus olhos semicerrados enquanto avalia a seriedade em minha voz. Ele não diz nada, mas sua postura rígida e o leve movimento de cruzar os braços indica que ele ainda não está convencido.
Aproveito o momento para acrescentar, permitindo que minha voz ganhe um tom mais confiante: - E tem algo que vocês não sabem. - Minhas palavras chamam a atenção dos dois. Toucan inclina levemente a cabeça, curioso. - Perto da caverna onde Toucan me encontrou, há um centro de pesquisa abandonado da SARIME. Talvez não tenha comida ou água, mas é quase certo que encontraremos armas lá. Isso pode virar o jogo contra a SARIME.
Toucan respira fundo, os olhos alternando entre Coimbra e eu. Ele permanece em silêncio por mais alguns segundos; por fim, assente, relutante. - Muito bem. Mas sejam rápidos e cautelosos. Não podemos arriscar perder ninguém.
Coimbra me lança um sorriso leve, mas há um brilho de apreensão em seus olhos. - Então é isso. Vou preparar os equipamentos e saímos ao entardecer. - A determinação em sua voz parece mais sólida agora, como se a minha presença tivesse lhe dado confiança.
Observo enquanto ele se afasta, sua figura desaparecendo na direção da pequena área onde os mantimentos estão guardados. Quando volto minha atenção para Toucan, percebo que ele ainda está ali, seus olhos fixos em mim. Há algo em seu olhar que me faz hesitar por um momento, como se ele quisesse dizer mais do que está disposto.
- Cuide dele, Naomi, - diz ele, sua voz baixa e carregada de seriedade. - Ele é bom, mas às vezes... é descuidado.
Seguro o olhar dele com a mesma intensidade, deixando minha resposta sair com a força de uma promessa.
- Pode deixar. Vou garantir que ele volte inteiro.
Toucan assente lentamente, mas o peso em seus olhos não desaparece. É como se minha resposta não fosse suficiente para dissipar sua preocupação.
Sem dizer mais nada, viro-me e vou atrás de Coimbra para ajudá-lo com os preparativos.
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