Naomi
— Mate ele agora! VAI! — As ordens se repetem em minha mente como um tambor incessante, pulsando junto ao ritmo frenético do meu coração.
A chuva despenca fortemente, cada gota martelando minha pele, enquanto meus pés pesados afundam na terra molhada. O trovão ruge acima, engolindo o som de meus passos desajeitados entre raízes e folhas escorregadias.
— Ali! — a voz do soldado ecoa à distância, antes de um disparo romper o ar.
Sinto o zumbido da bala cortar o vento perto demais, obrigando-me a saltar para a direita, instintivamente. Meu corpo se lança no vazio, a gravidade puxando-me ladeira abaixo. Rolando sem controle, pedras e galhos rasgam minha pele, deixando cortes ardentes na face e na barriga. O gosto do sangue mesclando com o sabor da terra quando finalmente paro, ofegante, no sopé da ladeira.
A dor lateja por todo o meu corpo, mas não há tempo para lamentar. Arrastando-me para os arbustos próximos, encolho-me entre as folhas úmidas, tentando silenciar minha respiração ofegante. Meus músculos tremem de exaustão e adrenalina, enquanto os passos dos soldados esmagam a lama acima de mim.
— Ela foi por aqui! — a voz soa próxima, grave e cheia de autoridade.
Meu coração ameaça parar. Seguro minha respiração, sentindo o ar preso no peito como uma faca. Por um momento, apenas o som da chuva preenche o vazio, mas logo percebo uma sombra movendo-se no declive.
Minhas mãos tremem ao pressionar os ferimentos na barriga, tentando conter o sangue que se mistura à lama.
— Droga! Continuem procurando! — ordena o soldado, a frustração evidente em sua voz.
O alívio é breve, esmagado pelo som de outro disparo ao longe. Fecho os olhos por um instante, sentindo o frio da chuva escorrer pelo meu rosto, tentando me convencer de que, de alguma forma, conseguirei sair dessa.
— Tem certeza de que é isso que você quer, minha filha? — A voz da minha mãe soa como um lamento, enquanto suas mãos frias repousam sobre as minhas, tremendo levemente. Seus olhos, fundos e cansados, fixam-se nos meus, implorando por algo que não posso oferecer.
Engulo em seco, sentindo o peso daquela pergunta me esmagar. Meus dedos apertam os dela com força, buscando coragem. — Eu não tenho escolha, mãe. Se eu não for... — minha voz falha por um instante, mas me forço a continuar. — Não tenho como bancar as despesas do hospital. A cirurgia, os remédios...
Ela suspira profundamente, um som que parece arrancar o pouco de energia que ainda resta em seu corpo frágil. — Não se preocupe comigo, minha filha... — diz com sorriso triste, como se tentasse me tranquilizar. — Eu já vivi o suficiente. Estou velha demais. Minha hora já...
— Para de falar isso! — interrompo, a raiva e o desespero transbordando ao segurar sua mão com mais força, quase com dor. Meus olhos queimam, mas me recuso a chorar.
Ela me olha, surpresa pelo meu tom, mas sua expressão logo suaviza, mergulhando em uma tristeza resignada.
— Minha filha... — ela murmura, com a voz embargada. — Eu sou apenas uma velha nesse leito. Não quero que você se sacrifique por mim. SARIME, LIAD... essas empresas são perversas, minha filha. Elas destroem vidas. Não se mate para me salvar. — Sua voz é um sussurro agora, e posso ver mais nitidamente a fraqueza em seu rosto pálido.
Solto sua mão lentamente, como se fio invisível estivesse sendo rompido. — Não se preocupe comigo, mãe. Assim que eu retornar... — minha voz vacila, mas eu respiro fundo. — Voltarei com dinheiro o suficiente para cortar todos os laços com a SARIME. Prometo!
Ela tenta segurar minha mão novamente, mas eu me afasto, evitando olhar para trás. Meu coração parece se partir em mil pedaços ao atravessar a porta.
De costas para ela, cada passo que dou parece me afastar não apenas do quarto, mas de toda a segurança que um dia conheci. Ouço seus soluços abafados se mesclarem com o som distante da chuva e, em segundos, transformam-se em passos pesados esmagando a lama próxima ao declive.
— Assim que eu retornar... — repito para mim mesma como um mantra, tentando acreditar que haverá um retorno.
Minha respiração se torna irregular enquanto rastejo pela grama encharcada, cada movimento lento e calculado para evitar ser detectada. Os arbustos oferecem um disfarce precário, mas não o suficiente. Antes que possa reagir, mãos fortes me arrancam grosseiramente do esconderijo.
Meus gritos são sufocados pelo som da chuva e do vento. Sou erguida com facilidade humilhante, minhas pernas balançando no ar por um instante antes de ser jogada contra o chão lamacento. O impacto rouba o fôlego dos meus pulmões.
Som seco ressoa, seguido por dor lancinante quando o metal frio da coronhada encontra meu rosto. O impacto me joga de lado, minha visão turva enquanto o gosto de sangue invade minha boca.
— Desgraçada! — insulta o soldado, sua voz carregada de ódio enquanto ele pisa com força no meu antebraço com o peso de seu coturno.
Tento puxar o braço de volta, mas seu peso é esmagador. Minha outra mão tateia desesperadamente a lama, buscando algo, qualquer coisa, enquanto meu cérebro grita para fugir. Então, minha mão encontra uma pedra na lama. Não é grande, mas é pesada o suficiente. Com o pouco de força que tenho, giro meu braço livre e tento acertá-lo. Não no rosto, mas na mão que segura a arma.
O golpe é desajeitado, fraco, mas inesperado o suficiente para fazê-lo recuar ligeiramente, xingando. Aproveito o momento para rastejar alguns centímetros para longe dele, mas meu corpo parece de chumbo.
Parada por chute cruel na barriga de outro soldado, seguido de pisada em minha panturrilha. O segundo soldado surge, mais alto, com o rifle apontado diretamente para mim. Ele me encara com desdém. — Fique parada! — Ele ordena.
A dor irradia pela minha perna, e mal consigo movê-la sem sentir uma pontada lancinante. Tento me levantar, mas antes que consiga, ele pressiona seu pé contra minha cabeça, forçando minha cabeça para baixo.
O primeiro soldado avança de novo, agarrando meu ombro com tanta força que sinto como se fosse deslocado. Minha tentativa de resistir é patética, pernas chutando o ar, braços tentando agarrar o dele, mas sou facilmente dominada.
— Fique quieta! — ele exclama, e antes que eu possa resistir, o impacto da coronha de sua arma contra meu rosto me joga ao chão. Minha visão turva, e o gosto de sangue se intensifica.
Ele se inclina, aproximando seu rosto do meu, sua expressão distorcida pela raiva. — Por que matou a cabo Laura?! — A pergunta é cuspida como veneno, mas eu mal consigo formar palavras. Empurrando-me de volta ao chão e levantando.
Meus olhos percorrem o rosto dele, tentando captar algum traço de humanidade, mas tudo o que vejo é um desejo ardente por vingança.
Ainda que inútil, viro-me outra vez e rastejo para longe.
— Acaba logo com ela! — ordena uma terceira voz, distante e impaciente. — Temos que ajudar o capitão, ele foi sozinho atrás dos fugitivos.
Meu olhar se move na direção do terceiro soldado, e seu rosto familiar me transporta, por um instante fugaz, de volta à nossa conversa dias antes da missão.
— Você é uma prodígio! Não é qualquer um que consegue se tornar soldado da SARIME com apenas 18 anos de idade — diz Tom, inclinando-se para frente na cadeira com sorriso de admiração, enquanto me observa atentamente na sala de recreação.
Seu tom é despreocupado, mas há algo na maneira como ele fala que soa genuíno. Tento não demonstrar, mas sinto um leve calor no rosto.
— Não seja exagerado, Tom. Muitos soldados aqui têm 18 anos — retruco, mantendo minha voz firme enquanto finjo estar concentrada no tablet em minhas mãos.
Ele ri baixo, balançando a cabeça como se eu estivesse negando algo óbvio. — Mas só você foi convocada para a missão.
A afirmação fica no ar, e, embora Naomi tentasse aparentar indiferença, era evidente que Tom estava certo. Ela era diferente. Apesar de sua limitada experiência em combate corpo a corpo, suas habilidades intelectuais e sua capacidade de tomar decisões rápidas sempre a destacaram. Durante o curso de formação, Naomi terminou entre os três melhores, demonstrando um talento natural para a liderança. No entanto, esse reconhecimento não veio sem custo; noites em claro e a constante pressão para não falhar marcaram seu percurso.
— O que faremos nessa missão? — Pergunto, quebrando o silêncio e levantando os olhos do tablet.
Tento adotar um tom casual, mas a verdade é que estou ansiosa. Não há muitas informações nos documentos que recebi, apenas detalhes vagos e sem importância.
Tom se recosta na cadeira, cruzando os braços atrás da cabeça, assumindo uma postura relaxada que contrasta completamente com a seriedade da conversa.
— Capitão Quebec ainda vai nos reunir para fazer o briefing da missão — responde, lançando olhar despreocupado para o teto.
— E não saberemos de nada, até lá? — insisto, minha frustração transparecendo enquanto passo os dedos pela tela do tablet, procurando alguma pista que possa ter deixado escapar.
Ele solta um suspiro teatral, como se a minha curiosidade fosse algo previsível.
— Olha, ouvi rumores... — começa, inclinando-se novamente na minha direção, sua voz agora em um tom conspiratório. — Será uma missão de limpeza na Ilha. Dizem que vamos capturar um certo criminoso que está causando problemas para a SARIME por lá. Mas, claro, você não ouviu isso de mim.
Levanto uma sobrancelha, tentando decifrar se ele está brincando ou não. — Ouvi o quê? — respondo com sarcasmo, cruzando os braços enquanto o encaro.
Ele ri, satisfeito com a minha resposta, mas buzina de um carro soa lá fora, chamando sua atenção.
— Você realmente entende rápido — diz, levantando-se com expressão divertida. Ele pega sua jaqueta pendurada na cadeira ao lado e a joga despreocupadamente sobre o ombro. — Tenho que ir, minha carona chegou. — Ele olha para mim com um meio sorriso, como se houvesse algo mais que quisesse dizer, mas desiste. — Te vejo por aí, Naomi.
Ele faz um aceno casual com a mão antes de atravessar o portão de vidro. Seus passos são confiantes, mas há algo na forma como seus ombros caem, como se carregasse um fardo que não estava disposto a compartilhar.
A lembrança se dissolve como fumaça, arrancada pela dureza do presente. Tom está de volta à minha frente, seus olhos presos a mim com algo que parece pena, mas também culpa.
— Tom... Me ajuda — suplico, minha voz rouca e fraca, mas ele responde apenas desviando o olhar.
— Mãe... me desculpa... — choramingo, a voz embargada pelo choro, enquanto meu rosto se mistura ao chão lamacento. O gosto de terra e sangue preenche minha boca. O frio cano da arma pressionado contra minha nuca me paralisa, um aviso cruel do que está por vir.
Fecho os olhos devagar, enquanto a chuva mascara as lágrimas que escorrem pelo meu rosto. Minha mente, numa última tentativa de consolo, me leva de volta ao rosto de minha mãe, marcado pelo sofrimento. Suas mãos frias tentando me deter, sua voz implorando para que eu não partisse.
— É assim que acaba? — A pergunta ecoa em minha mente, cheia de amargura e arrependimento. Tudo parece congelar: a chuva, a dor, o tempo.
De repente, o som de um estalo rompe o silêncio aterrorizante. Não é o disparo que eu esperava. É algo mais... grotesco. Um som inconfundível de ossos se partindo, enquanto o frio do cano desaparece de minha nuca, e o peso de quem estava atrás de mim parece se dissolver.
Tom grita, sua voz tremendo de terror: — ATIREM NELE!
Os tiros rompem o ar, silenciando-se consoante os sons de corpos caindo pesadamente na grama molhada.
Abro os olhos lentamente, o coração disparado, enquanto a chuva continua a martelar o chão.
Levanto a cabeça com dificuldade, meu corpo ainda tremendo de medo, e o que vejo faz meu estômago revirar. Corpos espalhados pelo chão, grotescamente contorcidos, com os ossos expostos de forma inumana. A chuva lava o sangue, criando rios carmesins que se misturam à lama, mas não consegue esconder a brutalidade da cena.
Não há tempo para pensar ou tentar descobrir quem, ou o que, fez isso. Minha mente grita uma única coisa: — Corra!
Com o coração acelerado e a adrenalina me impulsionando, levanto-me de forma instável e corro. Cada passo é um desafio enquanto a lama agarra minhas botas, mas a necessidade de sobreviver é maior.
Arranco as insígnias da SARIME do meu uniforme com dedos trêmulos, jogando-as no chão encharcado sem olhar para trás. Cada símbolo que me liga àquela empresa maldita é descartado, mas meu colete e as mangas permanecem, oferecendo um mínimo de proteção contra o gelo que penetra até os ossos.
— Não posso deixar que descubram que sou da SARIME — reflito.
Minha respiração sai em soluços curtos enquanto continuo correndo, o rosto manchado de lama e sangue. A floresta se torna meu único refúgio, mas a sensação de que algo, ou alguém, está me observando não desaparece.
Encontrando abrigo debaixo de pequena toca formada por raízes e folhas, aqueço-me em baixo de folhagem improvisada.
— Perdão, mãe... — sussurro, antes de finalmente ser vencida pelo cansaço e pela dor.
Naomi
Cabo Laura
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