Ignácia
"Esta obra reproduz alguns comportamentos e costumes da época em que foi retratada".
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A obsessão de Mariana pelos segredos da ilha Curva teve início quando ela ainda era uma garotinha. Não, sem motivo... Sua mãe costumava lhe contar histórias, por vezes, tão fantásticas que Mariana ouvia como se fossem os mais doces contos infantis. Era muito mais divertido saber das peripécias dos seus antepassados fugitivos da corte portuguesa, do que as desventuras da Cinderela, ou da Branca de Neve.
O grande vilão, naturalmente, tinha de ser Napoleão Bonaparte. Papel que, aliás, lhe serviu como uma luva. Mariana até nutria simpatia por ele... Afinal, entre outras coisas mais ou menos importantes na vida, Napoleão só queria conquistar o mundo. E como dizia o refrão da música preferida de Mariana: Todos querem governar o mundo¹.
Quem não quer?
Em toda a historieta que se preze, além do vilão, é preciso ter um ou mais trapalhões simpáticos... Não faria mal a presença de uma boa bruxa (não, necessariamente, de uma bruxa boa). Sem chegar ao extremo de contratar sete anões, ou a madrasta da Branca de Neve... Quem melhor para interpretar esses papéis do que Dom João VI e Dona Carlota Joaquina?
Para finalizar, a grande heroína só poderia ser Ignácia Junqueira de Aragão - a tatara tatara tatara avó de Mariana. Ignácia foi uma jovem dama intrépida. Fina flor da corte cuja existência estava cercada de mistérios fascinantes. Mistérios, estes, que influenciaram as escolhas de Mariana e que teriam feito os caçadores de tesouros perseguirem sua família como um enxame de abelhas, caso soubessem de sua existência.
Caso soubessem.
A menininha começou a descobrir os segredos de Ignácia por acaso, fuçando nas quinquilharias do sótão. Mariana abriu sem querer o dispositivo que liberava o fundo falso de um velho baú, o qual nem os pais sabiam da existência. Ela jamais contou sobre a sua descoberta. Os objetos escondidos no fundo do baú despertaram sua curiosidade e levaram-na a inquirir a mãe sobre a história familiar.
Seu interesse pela célebre antepassada, bem como o seu vínculo com a Ilha Curva, transformou-se na obsessão que acompanharia Mariana por toda a vida.
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-Mãe, conta de novo como foi que a pentavovó Ignácia veio parar no Brasil?
Davi bufou e depois, riu.
-Pentavovó... - debochou, imitando sua voz infantil. - Ela não era nossa avó. Muito menos penta. Diz-se Quinta avó - ele ergueu a cabeça, como que para enfatizar o auge de sua sabedoria juvenil. -Nossa avó de verdade chama-se Dinorá, e você sabe disso.
Mariana deu de ombros. A avó Dinorá fora, quando viva, uma mulher rude, rabugenta...Ou seja, intragável! Mariana preferia fantasiar que sua avó fora a exótica escritora e aventureira Ignácia Junqueira de Aragão.
Um trovão rebimbou lá fora. A mãe reconheceu que depois de tantos dias confinados em casa por causa das chuvas de março, seus filhos estavam entediados e necessitando de atenção. Com um suspiro, ela deixou de lado o cesto cheio de roupa e sentou ao lado deles.
-Não implique com sua irmãzinha, Davi - admoestou, num tom suave.
O rapazote de treze anos deu um sorrisinho.
-Tá, mamãe... E eu vou implicar com quem?
Balançando a cabeça, Heloísa inclinou-se para a filha caçula. A garotinha estava com apenas quatro anos, mas já era tão inteligente, tão vivaz, tão esperta, que sua mãe temia o momento em que deixaria a pré-escola para começar o ensino regular. Ela provavelmente seria o tipo de aluna que questionaria e desafiaria o saber dos professores; causaria inveja nos colegas...
-Vem cá, Mari! - Ela colocou a garotinha no colo. - Sua quinta avó Ignácia... - Ela sorriu quando a menina começou a se contorcer de cócegas. - ... era uma garota levada como você.
-Como eu?
-Sim... - A mãe inclinou a cabeça para olhar em seus olhos. - Curiosa, aventureira, e destemida.
-Quique é deste-destemi...
-Destemida - corrigiu a mãe, suavemente. - É uma pessoa que não tem medo.
-Mas eu tenho medo, mamãe. - A menina ficou triste porque não era destemida como a pentavovó. Heloísa quase riu do tamanho do beiço da filha.
-O bicho-papão não conta, filhinha. Todo mundo tem medo dele. Aposto que sua pentavovó também tinha.
Heloísa observou o sorriso voltar a iluminar o rosto da filha querida.
-Verdadi? - perguntou a menina.
-Verdade. Nos tempos de Ignácia, uma garota não podia ser assim, aventureira. Tinha de fazer tudo escondido. - Heloísa mudou de posição, acomodando o peso de Mari nos joelhos. - O que não chegou a ser um sacrifício. Ignácia adorava bisbilhotar. Ela vasculhava os segredos de todo mundo.
"E na corte havia muitos segredos, ah, se havia"...
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Ignácia conhecia todas as passagens secretas do Palácio de Mafra. Afinal, sua família servia à Coroa há muitas gerações. O visconde Alberto do Prado Junqueira, seu pai, era o camarista-mor do príncipe-regente; já a mãe, Teresa, atuava como uma das damas de companhia de Dona Carlota, no Palácio de Queluz.
Só Deus sabia o que a viscondessa passava com as intrigas das damas espanholas e portuguesas, algumas delas confidentes íntimas da princesa-regente. A megera de Queluz não confiava nos portugueses, em especial, nas portuguesas, por causa de Eugênia de Menezes². Ela preferia usá-los, a todos e todas, conforme o cenário político desenhado em seu tabuleiro de xadrez pessoal.
Os pais de Ignácia viviam pisando em ovos devido às intrigas entre o casal real. Teresa era pressionada por Carlota para que lhe contasse o que o visconde ouvia do rei; ao mesmo tempo em que Dom João estava sempre querendo saber de Alberto, o que Teresa ouvia junto à princesa. Para piorar, havia nobres sempre interessados naqueles que tinham acesso ao casal real. Qualquer lado que seus pais escolhessem poderia levá-los à morte.
Por isso, os dois colocaram em prática um plano bem elaborado. Criaram personas, ou alter egos, que projetavam a imagem de um casal subserviente, ignorante e inofensivo - ou seja, inútil como massa de manobra, do ponto de vista de qualquer conspirador. No caso de Teresa, em especial, era preferível ser considerada uma mulher tola e frívola a que Carlota deduzisse, erroneamente, que Teresa poderia se tornar uma ameaça aos seus planos. Na visão da mãe de Ignácia, quanto menos sua família se destacasse entre os nobres, melhor.
Ignácia não concordava com a postura dos pais. Ela os via na intimidade - tão ativos, intelectuais, e assertivos; e depois os via em público - tolos, passivos, incultos... Burros. E tudo para não fazerem "sombra" ao casal que governava a nação - não por mérito e competência, mas por direito de nascimento. A obsessão da mãe pela humildade intelectual estimulou a necessidade da filha em burlar a mentalidade da época. Além do mais, a condição de ser mulher numa sociedade patriarcal, acabou despertando em Ignácia um sentimento feroz de rebeldia contra os valores impostos ao gênero feminino.
A criança cordata, aos poucos, foi se transformando em adolescente endiabrada, explorando as passagens secretas de ambos os palácios; ouvindo tudo que achasse interessante/ excitante; fazendo atividades clandestinas... Ignácia vivia para a fantasia de experimentar grandes aventuras.
Escrever sobre elas foi apenas o primeiro passo.
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A mulher pertencia ao âmbito privado, o lar. O homem reinava absoluto na vida pública. A mulher não se tornava escritora naqueles tempos. Simplesmente, porque não tinha o direito de competir ou dividir o espaço público com os homens. A menos que utilizasse subterfúgios, tais como criar pseudônimos, nomear procuradores para representá-las, e até elaborar intrincadas personas (como os pais haviam feito para transitar sem atritos junto à realeza). Muitas escritoras fizeram isso para serem publicadas. Algumas conseguiram notoriedade, mas não sem percorrer o caminho obscuro e sofrido de jogarem o jogo dos homens, num mundo dominado por eles.
Desde cedo, Ignácia decidira usar o âmbito privado, destinado ao seu gênero para conquistar a excitante vida pública masculina. Em outras palavras, ela descobriu que era possível manipular o jogo jogado pelos homens, fazendo da invisibilidade destinada às mulheres um aspecto a seu favor. Para tanto, a contragosto, teve de criar um pseudônimo masculino.
No entanto, ela não queria escrever sobre as coisas que as mulheres disfarçadas costumavam escrever. Romances de cavalaria, góticos, romances épicos, ou contos proibidos... Queria promover a reflexão crítica das pessoas, considerando as coisas que ela vivenciava em meio à nobreza. Ela resolveu, então, escrever a respeito da corte e suas intrigas.
Quando o misterioso Senhor Xavier começou a publicar os primeiros textos, as reações foram diversas... Ele rapidamente tornou-se um autor popular e, na mesma medida, execrado. Dom João entendeu acertadamente que o autor dos polêmicos e bem sucedidos panfletos políticos, deveria ser algum nobre da corte (porque só assim teria tanto conhecimento sobre o que se passava lá dentro). Decididamente, os escritos do Senhor Xavier eram um ato manifesto de alta-traição. Crime de lesa majestade. O regente colocou sua cabeça a prêmio, bem como a do tipógrafo que prestava serviços de reprodução ao escritor subversivo.
Como obviamente autor e tipógrafo utilizavam nomes falsos, o príncipe convocou um grupo de nobres leais à Coroa - conselheiros de fato e de direito - para que conduzissem uma investigação completa. Tratava-se do primeiro caso em que um grupo assim era designado. Os condes não sabiam muito bem como proceder, de modo que o Conde dos Arcos precisou assumir a liderança da empreitada. Ele definiu estratégias radicais de combate ao escritor subversivo que vinha atacando a Coroa, e ao tipógrafo que imprimia os seus artigos.
Considerando-se a clandestinidade do ofício, seus "clientes" nunca localizavam o tipógrafo João de Algarve no mesmo lugar. Ele costumava gracejar junto aos que lhe perguntavam sobre isso, que exercia atividade itinerante. Como os artistas. Os mercadores. E ainda os boticários... Aonde houvesse doença literária, ele era a cura!
As máquinas que João utilizava para a impressão de livros e textos folhetins, eram modelos amalgamados, antigos, mas leves de serem transportados - adaptados pelo próprio João para fugas estratégicas. A maioria das peças eram contrabandeadas de seus conhecidos, na França.
A especialidade dele era a reprodução de livros proibidos, ou tão raros, que não chegavam às mãos da população em geral. Se havia mercado para ele, era porque a Coroa Portuguesa proibia a reprodução literária que não fosse condizente com os critérios estabelecidos pela rainha Maria, a Pia, e seus Censores. De lá para cá, a Coroa tem centralizado a produção textual na Imprensa Régia. Exercer a tipografia sem autorização da Coroa era um ato ilegal - crime de lesa Majestade.
Mas, João de Algarve era esperto o suficiente para não se fazer conhecer pelo nome verdadeiro, fosse por parte dos "clientes", fosse por parte dos "distribuidores". Os inspetores da Imprensa Régia nunca conseguiam localizar o seu paradeiro.
Ignácia era a única "cliente" que sabia a verdadeira identidade de João. Isso porque João estava apaixonado por ela desde que a viu pela primeira vez, numa das festas da Corte. Acabou permitindo que ela o conhecesse melhor, pois caso contrário, Ignácia teria se afastado dele. Ela tinha tendência a evitar os avanços de rapazes nobres, sentindo um desprezo instintivo por eles.
Mas João era diferente... O destino os reuniu por conta do interesse em comum em criticar a alienação cultural de seu povo, promovida pela monarquia. Eles passaram a trabalhar juntos. Para ambos, uma grande aventura.
Quanto mais o tempo passava, mais os panfletos impressos por João, de autoria de Ignácia (Senhor Xavier), angariavam simpatizantes em meio aos nobres, profissionais liberais, e até comerciantes. João sabia que, para o Conde dos Arcos, não era nada bom o sucesso que os panfletos políticos vinham obtendo.
Os conselheiros do rei contra-atacaram com extensivo patrulhamento nas áreas de distribuição. O tipógrafo mandou avisar o Senhor Xavier para que se mantivesse longe da escrita por algum tempo, pelo menos até que tivesse assentado novo "acampamento" para suas máquinas.
Ignácia apavorou-se com a notícia de que estavam sendo procurados. De tal forma que não quis nem sair de casa, crente que acabaria presa a qualquer momento. Ela ficou em seu quarto, acamada, por cinco dias (alegadamente sofrendo de diarreia severa).
O médico não encontrou nada de errado com a garota; entretanto, Maria, a Pia, mãe do príncipe regente, aventou a possibilidade de ter sido uma tentativa de envenenamento contra a sua pessoa real. Os supostos inimigos da rainha só podiam ser arautos do Marquês de Pombal. E ela acreditava "piamente" que os malvados estavam em toda parte, misturados aos cortesãos³. (Bem, a paranoia da rainha era bastante conhecida).
A alegada diarreia de Ignácia não a impediu de prosseguir com suas bisbilhotices. Em uma de suas andanças, ouvindo atrás das portas, descobriu a respeito da iminente ameaça francesa e dos preparativos do regente, que planejava evacuar a corte para refugiar-se na colônia sul-americana.
Os ingleses que a garota viu circulando pela cidade, teriam vindo para impedir que o regente se rendesse a Napoleão. Manobraram as circunstâncias de modo que, do ponto de vista de Dom João, só havia duas opções: partir para a colônia - abrindo os portos brasileiros aos interesses britânicos; ou (se ele se rendesse aos franceses) sofrer as consequências de uma invasão inglesa... O que significava que os britânicos lutariam contra os franceses, com o objetivo de tomar Lisboa. A Coroa Portuguesa estava encurralada entre as duas potências.
Claro que, empolgada, Ignácia correu de volta aos seus aposentos para escrever o próximo texto de denúncia do Senhor Xavier. Ao chegar de quietinha na ala dos fundos do Palácio de Mafra, Ignácia flagrou os pais em uma conversa suspeita.
-Não vou me submeter! É humilhante! Rufino pode ser dócil em atender tais ordens, mas eu não serei! Você tem ideia do que significa aliviar as necessidades de Dom João?
"Necessidades? Que necessidades poderiam ser estas"? - fica a matutar Ignácia.
-Alberto, não convém contrariar o príncipe-regente, muito menos Dona Carlota.
-Ah, aquela lá... É tudo culpa dela! - disse o pai, com evidente desgosto na voz. - Agora que Rufino caiu nas graças de Dom João, tornou-se até seu confidente... Quanto a mim, fui relegado a reles limpador de cloaca. Depois de tantos anos servindo a ele, e ao pai dele, isso é um absurdo!
Ignácia escutou a risada suave da mãe.
-Limpador de cloaca... Essa foi boa!
-E você ri! - ralha Alberto.
-Meu bem, se a realeza fosse grata, não seria realeza. Aliás, os reis só existem porque as pessoas não confiam uma nas outras.
O casal se cala, desfrutando de um breve momento filosófico.
-Ao menos, o rei vai precisar de nós para organizar os pertences que serão levados para o Brasil - argumenta o pai, já mais resignado.
-Precisarão de nós durante a viagem... - Acrescentou a mãe, pensativa. - Lá, no Queluz, começamos a empacotar todas as coisas das infantas. Carlota Joaquina já me avisou para que fiquemos preparados.
"Do que eles estavam falando, afinal"?
-Nunca imaginei, Teresa, que um dia nós teríamos que partir de Portugal para escapar dos franceses! Vamos viver na selva, ainda por cima!
-Se ficarmos, morreremos - contra-argumentou Teresa.
"O quê"?
Ignácia encostou-se à parede, tomada de súbita fraqueza. Tudo o que ela imaginou fazer com a informação anterior, perdeu o significado. Ela não podia mais denunciar os planos de Dom João, sob pena de prejudicar os próprios pais... E a si mesma.
-Na verdade, Teresa, querida, - continuou falando o pai - devo ser grato por Rufino ter sido escolhido para aguentar os apetites e o mau cheiro do rei. Antes ele do que eu. Prefiro continuar como limpador de cloaca.
As vozes de ambos foram diminuindo, até desaparecerem em outro cômodo. Ignácia respirou profundamente, buscando recuperar a serenidade. Ela bate a porta para que percebam sua presença.
-Mãe, pai. Cheguei!
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Ignácia não pôde conter a respiração agitada, enquanto percorria os corredores secretos do palácio.
Era madrugada. O sono não veio, e ela precisava urgentemente de alguma grande novidade para escrever o seu artigo habitual. Algo que não tivesse a ver com a fuga covarde de Dom João para a colônia, deixando a população portuguesa à mercê de Napoleão. Tinha que ser sobre algum outro escândalo. Mas qual? Sem conseguir dormir, ela pegou sua lamparina e foi espionar os aposentos do seu alvo, o rei.
Olhando pelo buraco de sempre, que atravessava a tela do quadro pendurado do outro lado, ela verificou que o quarto do regente estava vazio e a cama, feita. Intocada.
Ignácia estranhou e continuou andando. Subiu e desceu por escadinhas de madeira improvisadas, poeirentas, torcendo para não cruzar com nenhum outro enxerido, ou pior, um roedor bem nutrido... Afinal, aqueles corredores não eram desconhecidos da criadagem, da nobreza, das ratazanas, das aranhas, muito menos das baratas. No entanto, foram bloqueados e lacrados há mais de duas décadas.
Ela só parou diante da Sala de Diana(4), quando escutou vozes sussurrantes, algumas falando em inglês. Ela ficou na ponta dos pés e espiou pelos buracos da parede.
-Lorde Abott, Lorde Thompson... - soou a voz inconfundível de Dom João. - Entendo o seu receio, mas posso lhes garantir que nenhum dos nossos artefatos maçônicos, sob custódia da Ordem, cairá nas mãos dos franceses.
Um arrepio percorreu a espinha de Ignácia, diante do que poderia estar prestes a ser revelado. Ela se esticou um pouco mais, e prestou atenção.
-Naturalmente, Vossa Majestade - respondeu um homem com forte sotaque inglês. Ele estava de costas para ela, com o rosto fora de alcance. Frustrada por não poder identificar os interlocutores, Ignácia procurou captar o restante do comentário: - Temos total confiança de que o nosso segredo estará seguro. Estamos aqui apenas para auxiliá-lo e protegê-lo. Por isso, a esquadra inglesa irá acompanhar os navios portugueses até o Brazil.
O regente pareceu ofendido. Pelo menos, foi a impressão que Ignácia teve ao ouvir os sons inarticulados que saíram de seus lábios. "Mas porque toda aquela celeuma, se tudo o que o inglês oferecia era ajuda"?
Talvez Dom João não quisesse ajuda, ou sentisse que estava sendo manipulado.
-Não será necessário - ela ouviu uma voz familiar elevar-se sobre os grunhidos do rei. Logo identificou como sendo a voz do Conde dos Arcos.
-Claro que será, oh, Clemente! - o tal lorde inglês prontamente objetou, com cortesia e leveza. Lidar com as suscetibilidades da realeza exigia muita habilidade, uma vez que ele próprio seguia ordens.
-O rei Jorge foi enfático quanto a isso - acrescentou ele. - Parte deste tesouro é inglesa. Portanto, nosso rei tem grande interesse em acompanhar o seu plano.
"Plano? Que plano?"
De repente, o Conde de Linhares entrou no campo de visão de Ignácia.
-Estamos estudando um estratagema para transportar os referidos objetos em sigilo e mantê-los protegidos dos franceses. - Ele estendeu um mapa sobre a mesa colocada no canto extremo da parede. Ignácia esticou-se ao máximo, mas não conseguiu obter um bom ângulo. Frustrada, contentou-se em ouvir:
-Aqui está o complexo que planejamos instalar na ilha Curva.
-Ilha Curva? - indagou o outro lorde inglês, ecoando a pergunta de Ignácia. Devia ser Lorde Thompson, que interferia pela primeira vez.
-Sim - O primeiro-ministro português manteve o tom profissional. - Trata-se de uma pequena ilha, ainda desabitada, que fica na costa do Rio de Janeiro. Não recebeu denominação oficial, mas os locais a chamam de "Curva" por causa do formato. Pretendemos construir nela um palácio de veraneio real como pretexto para ocupar a ilha, sem alarde. Na verdade, construiremos uma casa-forte sob o palácio, por onde planejamos esconder o tesouro.
-Dentro da casa-forte? - Lorde Abott revelou-se cético.
-Não, milorde. - O primeiro-ministro levantou a cabeça, destilando todo o seu desprezo. - Abaixo da casa-forte.
-Então, seria mais correto chamá-la de "conjunto de armadilhas" ao invés de casa-forte - não demorou em devolver o lorde, num tom senhoril.
Ignácia escorregou, desequilibrando-se e se chocou contra a parede - o que acabou produzindo um baque surdo. A discussão cessou, dentro da sala.
-O que foi isso? - Indagou Dom João. - Vá ver, Rufino!
Ignácia não ousou respirar, enquanto eles revistavam todo o cômodo. Ela se abaixou, torcendo para que não percebessem que havia alguém no corredor secreto. Não se lembrava da última vez em que rezou com tanto fervor...
-Não foi nada, Majestade - disse Rufino. - Deve ter sido um pássaro no telhado.
-Mas soou tão perto de nós. - O príncipe ainda argumentou, pouco convencido.
-Acho melhor encerrarmos a entrevista. - Abott trocou um olhar cúmplice com Thompson. - Temos um ditado na Inglaterra, Majestade... - Ele começou a recolher os papéis sobre a mesa. - Dizemos que as paredes têm ouvidos!
Pondo a mão na boca, Ignácia se afastou. "Será que o inglês sabia que ela estava ali?" Ela ficou sem ação - se corria, ou se esperava até que fossem embora.
-Conde de Linhares - Lorde Thompson se dirigiu ao primeiro-ministro. - Nossos artefatos estão seguros?
-Sim, eles estão na...
-Não! Não precisa dizer onde estão. Creio que no presente momento, não seria conveniente.
O outro entendeu o recado velado.
-Estou indo para lá agora - avisou Linhares. - Gostaria de me acompanhar para inspecionar o baú, pessoalmente?
-Seria bom.
Eles saíram da Sala Diana e caminharam devagar pelo corredor. Algum poder misterioso - curiosidade, com certeza - levou Ignácia a ignorar o medo e a segui-los. Ela tirou os sapatos para que o som de seus passos não a denunciasse.
Os buracos estratégicos nas paredes iam lhe indicando a direção que eles tomavam. Ela os seguiu, achando tudo muito estranho. Decidiu descobrir que objetos misteriosos eram aqueles. Custasse o que custasse.
A comitiva alcançou uma sala bastante recuada, e depois uma antessala, as quais ela ainda não conhecia. Na porta, havia dois guardas. Os nobres entraram, enquanto Ignácia se contorcia em meio aos entulhos acumulados no vão entre as paredes - teriam sido deixados de propósito? - a fim de tentar encontrar o caminho que a levaria até onde eles estavam. Depois de muito se contorcer, ela conseguiu atravessar e encontrar novos buracos de observação.
De repente, localizou os homens. Estavam de costas, tapando-lhe a vista de algo para o qual ambos olhavam em silenciosa admiração.
Abott cofiou o bigode.
-Realmente, senhor conde. Está tudo em ordem.
Ignácia identificou o som de uma tampa sendo baixada.
Um pouco mais atrás dele, o Conde de Linhares quase revirou os olhos. Ainda bem que não o fez, porque o lorde inglês virou-se para ele tão rápido que pareceu querer surpreendê-lo nesse tipo de atitude. Sentindo um frio no estômago, o conde manteve a expressão impassível.
-Como deveria ser, milorde. - Resolveu responder, já que aparentemente o outro esperava um comentário seu.
-Vamos deixar um guarda nosso junto aos seus, para, digamos, engrossar as fileiras - manifestou-se Thompson.
O primeiro-ministro português apenas fez um som que podia ser qualquer coisa - desde escárnio até concordância. Apenas ele sabia que foi de genuíno deboche.
-Como quiser, milorde - a voz do conde foi se distanciando, a medida em que os dois se afastavam do local. Ignácia deduziu que Dom João e o Conde dos Arcos não estavam entre eles.
-Repito, não há com que se preocupar. - Ainda foi possível distinguir a voz do conde. - Ninguém sabe o que escondemos nesta sala.
Ignácia esperou as vozes desaparecerem por completo, até se atrever a xeretar. Ergueu a lamparina e iluminou o ambiente ao redor. Qual não foi a sua surpresa ao se deparar com um buraco muito maior que os outros para ser considerado apenas de observação? Tratava-se de um retângulo. Esticou o corpo e levantou a tapeçaria pendurada do outro lado da parede para poder ver o que tinha lá.
A antessala estava mergulhada na penumbra. Ao centro, jazia um grande baú fechado.
Ela olhou para baixo, em busca de algum ponto de apoio. Considerando o tamanho do "recorte" da parede, concluiu que tinha sorte de ser uma garota magra.
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Rodapés:
1 - Everybody wants to rule the world (1985) - Performance de Tears for Fears.
2 - 2ª marquesa de Penalva e, supostamente, amante de Dom João VI.
3 - O implacável Pombal perseguiu os jesuítas, no passado, e Maria, sendo uma religiosa devota, ficara impressionada com a impiedade do primeiro-ministro.
4 - O nome da sala deve-se à representação de Diana, a deusa caçadora do panteão romano, rodeada por ninfas e sátiros. O autor da pintura foi Cirilo Volkmar Machado, e a obra foi encomendada pelo príncipe regente. Fonte: website do Palácio Nacional de Mafra (acesso em novembro de 2016).
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