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A Ver Navios...

Assista ao vídeo antes, se puder...

https://youtu.be/ZYc_5Avj2Vs

As ruas estavam um lamaçal só, devido à enxurrada da véspera. Baús se perderam pelo caminho, ou foram abandonados na confusão que sucedeu à ordem real... Atônitos, os nobres agraciados com a duvidosa honra de embarcarem na esquadra, seguiam penosamente pelas ruas lamacentas as quais conduziam ao atracadouro. O "cortejo" foi assistido pela não menos atônita população de Lisboa.

Nos postes públicos, ainda tremulavam ao vento as cópias do decreto real, castigadas pelas chuvas constantes. Uma patética tentativa do rei em explicar seus motivos para abandonar a sede do império à própria sorte. Sua última recomendação ao povo foi de que não oferecesse resistência aos franceses.

Enquanto era empurrada de um lado a outro, Ignácia abraçou Rochelle - sua filhote de cachorro buldogue francês. Ficou com medo de cair, antes de firmar o passo sobre a rampa de embarque da nau Afonso de Albuquerque, que levaria Carlota Joaquina, as princesas reais, e toda sua comitiva pessoal.

O pai a protegeu com o corpo e a encaminhou o melhor que pôde, antes de retornar à nau Príncipe Real, onde se instalou por ordem de Dom João. Esta nau recebera a bordo com notável antecedência: o regente, seus herdeiros diretos, a rainha-mãe, e seus nobres servidores.

A Príncipe Real era a mais poderosa embarcação de guerra portuguesa - nau capitânia da esquadra. Estava mais do que preparada para navegar à frente das outras naus atracadas, que só agora tiveram autorização para embarcar o restante da corte.

Estimava-se que, juntas, as naus tinham capacidade para levar de cinco e dez mil nobres.

Quando Ignácia finalmente conseguiu subir a rampa, Alberto ordenou-lhe:

-Espere no convés e fique longe da amurada. – Ele temia que a filha fosse jogada ao rio, durante o tumulto. Com aquelas saias, afundaria como uma pedra. - Vou buscar sua mãe e as criadas.

A garota assentiu, colando as costas junto à parede da cabine. Diante dela, o empurra-empurra e a gritaria se intensificaram... Custou a perceber a presença de um rapaz parado ao seu lado, entretido na leitura de um panfleto. O que lhe chamou a atenção foi o fato de que ele estava completamente alheio à desordem. De repente, o rapaz soltou uma gargalhada espalhafatosa e continuou a leitura.

Ignácia estreitou os olhos para o papel que, reconheceu, tratava-se do mais recente artigo publicado por ela sob o pseudônimo de Senhor Xavier. Constrangida, envaidecida, e curiosa a um só tempo, criou coragem para indagar:

-Caro senhor, desculpe interrompê-lo. – Esperou que ele voltasse sua atenção para ela. – O que há de tão divertido nesse papel?

Meio espantado pelo fato de a jovem dama lhe dirigir diretamente a palavra, o rapaz respondeu:

-Trata-se de um manifesto político – gesticulou vagamente, acrescentando a seguir: - Assunto de homens... Não deve preocupar sua linda cabecinha com tais coisas.

-Ah, sim, evidentemente. – Ignácia disfarçou a raiva por meio de um doce sorriso. Contando mentalmente até dez, insistiu: - Algo o fez se interessar pelo texto, suponho. Poderia me dizer o quê?

O rapaz gesticulou outra vez, sem responder diretamente.

-Nada de excepcional, mas... - sorriu, procurando pelas palavras adequadas. - Posso lhe garantir que seja lá quem for o autor desses ousados artigos, é um jornalista muito talentoso. Brilhante, na verdade. Com licença... - pediu e se afastou.

Ignácia ficou parada no lugar, acariciando a cabecinha da pequena buldogue francês.

-Rochelle, – olhou nos olhos da cachorra - acabei de ganhar o meu dia!

"Talentosa e brilhante! Foi o que ele disse... É isso que sou"!

A cachorrinha lambeu o queixo da dona para chamar a sua atenção.

-Seus fraternos e iluminados conterrâneos estão chegando, Rochelle... - comentou Ignácia, rindo. - Quanta turbulência já provocam, antes mesmo de marcharem sobre o Paço...

Ainda sorria quando avistou o pai ajudando a mãe a subir a rampa. Criou coragem, afastou-se da parede e estendeu a mão livre para segurar a pesada trouxa que Teresa e sua antiga criada carregavam a quatro mãos.

-Vou descer para pegar o resto de nossas coisas! - avisou Alberto.

-Rápido, antes que desapareçam do atracadouro! - disse a mãe, apavorada diante da possibilidade de ser roubada.

A balbúrdia ao redor deles só fez aumentar. As mulheres acabaram sendo empurradas grosseiramente por marujos desnorteados. O instinto de proteção levou-as a se juntarem, coladas à parede da cabine. Elas não podiam se mexer, mas, pelo menos, corriam menos risco de serem atiradas ao rio.

Subitamente, a balbúrdia diminuiu. O motivo: Dona Carlota decidira fazer uma aparição especial à porta da cabine. Ela olhou ao redor com visível desprezo. De repente, a princesa as localizou petrificadas ao lado da porta.

-Finalmente chegaram! – disse, em seu tom estridente. - Não fiquem paradas aí! Venham me ajudar a acomodar as Infantas!

Elas entraram na cabine, sem hesitar.

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Aquele final de novembro tinha sido bem confuso para a maioria das pessoas, entre nobres e tripulantes que tiveram de encerrar seus assuntos, na Matriz, às pressas.

A mãe dissera à Ignácia que, antes de o marido juntar-se à comitiva de Dom João, na nau capitânia, ele lhe confidenciou sobre um acordo secreto assinado com os britânicos. O que significava que a mudança da corte para o Brasil não era obra de improviso, ou só fruto do desespero; o projeto vinha sendo acalentado muito antes de as tropas de Napoleão alcançarem o território português. Apesar de todos os transtornos de última hora, aquela absolutamente não fora uma decisão precipitada. A Coroa estivera apenas adiando o inevitável.

Claro que havia outros aspectos implicados na intervenção dos ingleses nos assuntos portugueses. Aspectos que a mãe desconhecia, mas não a filha. O transporte do tesouro secreto da Ordem de Cristo, por exemplo, era algo que a perturbara tanto que não sabia se deveria, ou poderia algum dia escrever sobre ele. Caso fosse revelado, certamente mudaria a concepção que se tinha de Deus e de Humanidade.

Desde aquela fatídica madrugada, Ignácia deixou de ser a garota inconsequente de antes, para se tornar uma jovem mulher sobrecarregada por um conhecimento além de suas forças e acima de sua capacidade. Conhecimento que ela ainda estava tentando digerir, desde que abriu aquele baú secreto na sala Diana.

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Quando Dom João foi informado da chegada das tropas francesas lideradas pelo General Junot, a ordem de partida da frota foi finalmente expedida.

O problema era o mau tempo. Ignácia observou da amurada da Alfonso Albuquerque, enquanto as demais naus continuavam sendo "preenchidas" com pessoas, víveres, e suprimentos.

Muita coisa perdeu-se na barra do Tejo. Sem lençóis suficientes para todos, nem roupas de troca, os nobres que não conseguiram redes para dormir foram se acomodando de qualquer jeito pelos conveses dos navios.

Por sorte, a chuva havia parado, mas a direção do vento não permitiu a partida imediata da esquadra portuguesa e de sua escolta inglesa. O receio instaurou-se entre as tripulações. Alguns nobres já ameaçavam descer dos navios. Outros questionavam o que estava acontecendo. Os comandantes das embarcações respondiam apenas que a culpa era do vento. Ou a falta dele.

O medo se intensificou quando boatos se espalharam pelos deques de que o General Junot tinha ultrapassado Abrantes, e já estava marchando sobre Lisboa.

Ignácia e sua mãe se postaram no convés, ao lado de Carlota Joaquina. As três mulheres olhavam ansiosas para a linha do horizonte, além da cidade. O som de trompetes e gritos perfeitamente audíveis, de onde estavam.

Carlota bateu o pé.

-Ou vamos, ou não vamos! O que João está esperando? – Ela se virou para o primeiro homem que viu, no convés, e ordenou: - Chame o comandante. Quero saber o que está nos atrasando.

Logo o comandante, obsequioso, apareceu diante da consorte-regente para explicar que o vice-almirante Manuel da Cunha Souto Maior não podia dar ordem de partida com o vento em oposição.

Carlota lançou um último olhar à cidade e, sem mais uma única palavra, retornou à cabine. Teresa e as demais damas de companhia a seguiram, em silêncio.

Ignácia abraçou a pequena buldogue.

-Será que eles terão piedade de nós, minha querida? – indagou. A cachorrinha fez um som inarticulado e olhou preocupada na direção da cidade. Àquela altura, os franceses estavam ocupando tudo. E a poucos quilômetros de sua posição.

De repente, Ignácia ouviu alguém gritar o seu nome.

-Ignácia, aqui! No outro navio! – Era a voz de João de Algarve. Ignácia se animou e correu para o lado oposto do tombadilho, desviando-se dos homens e mulheres sentados sobre o piso recém lavado.

Esticou-se toda para ver as naus atracadas ao longo do cais do porto. Os gritos vinham do tombadilho da nau Medusa, a terceira embarcação a sua frente.

Ignácia fez uma careta; que nome para se dar a uma nave tão simpática. Colocando a mão sobre os olhos, ela o avistou no tombadilho. João a olhava de volta com o auxílio de um monóculo. Ao lado dele, estava um senhor idoso, que provavelmente devia ser Dom Jayme, seu pai. Ela se alegrou pelo fato de João ter conseguido alcançar a frota a tempo. Quando ela enviou o mensageiro, não sabia ao certo se este conseguiria localizá-lo.

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João teria ficado espantado com a fuga de Dom João, se já não conhecesse a corte portuguesa (e como esta agia em nome dos seus interesses). O povo que ficasse à deriva. Isso era o que mais o revoltava e, em parte, motivara-o a fazer o trabalho que fazia.

João de Algarve, o tipógrafo clandestino que ajudava o Senhor Xavier, pertencia à casa de Aragão. Portanto, era nobre de nascimento, com dupla ascendência que remonta tanto à corte portuguesa quanto à espanhola... Porém, a nobreza terminava aí - no título.

Em termos financeiros, a família de um açougueiro estaria em melhores condições do que os Aragão. Tudo porque o pai (intelectual crítico do absolutismo vigente, com conexões dentro da Loja Maçônica da Escócia) - caiu em desgraça pelo lado dos portugueses; assim como pelo lado dos espanhóis. Senão bastasse isso, o que se podia esperar das constantes intrigas entre os dois impérios? Não estaria Carlota Joaquina sempre tentando derrubar o próprio marido? O rei da Espanha não teria se aliado aos inimigos da Inglaterra, com vistas a atingir Portugal? A França não teria se voltado contra Portugal, com vistas a atingir a Inglaterra? O que dizer das invasões territoriais ocorridas durante a Guerra das Laranjas...?

Nesse contexto, os Aragão viviam na berlinda. E quase na penúria. Tornaram-se páreas – rejeitados por ambos os lados, pelos mesmos motivos. Ora tachados de espiões num império, ora noutro, conforme a conveniência do momento. Favores eram negados. Empréstimos eram negados. Vagas para ocupações nobres eram negadas.

Ah, a política...

Antonio de Aragão – aka João de Algarve - cresceu aprendendo a odiar o absolutismo e a política de maneira geral. Na verdade, por tanto odiar, ele se esforçou em compreender seus mecanismos de poder e influência na sociedade portuguesa.

Quando as portas da corte se fecharam para sua família, ele tinha acabado de concluir com louvor os estudos, no Colégio de Padres.

Aragão aprendera a antiga arte da escrita tipográfica com os monges copistas enquanto estivera no colégio. Seu pai sequer imaginava seu interesse por esse tipo de arte gráfica - inútil a sua condição social e aos interesses familiares. Mas o fato era que Antonio se interessava por todas as formas de arte.

Com o passar do tempo, aprendeu a manusear o maquinário, a recriá-lo, especializou-se na matéria; desde a composição (de texto, de títulos, e de páginas), até a encadernação.

Vendo a situação familiar se complicando, o rapaz começou a oferecer serviços de escrita e tradução para advogados de famílias conhecidas, entre fidalgos e comerciantes. Redigia contratos, traduzia acordos, e até prestava serviços literários de correção a outros nobres que sonhavam em se tornar escritores renomados.

Para alguém esperto como Antonio, não foi difícil sustentar a família, que consistia no pai viúvo; sua antiga ama; e o jardineiro idoso. Ah, sem contar os pombos de estimação do pai, é claro.

A ideia de criar a oficina tipográfica clandestina surgiu meio que por acaso... Os Aragão estavam falidos e malquistos. Antonio entendeu que não tinha mais nenhum laço de lealdade que o refreasse. Nada a perder. Exceto a cabeça, como o pai costumava lembrá-lo.

Dom Jayme assistiu naufragar o sonho de ver seu brilhante filho ocupando uma colocação digna de seu intelecto. Queria que ele trilhasse um caminho de sucessos. Agora, lá estavam os dois fugitivos, prestes a navegarem para uma terra distante e selvagem. E tudo porque o rapaz estava enrabichado por aquela garota, a filha do camareiro- mor.

Dom Jayme avaliou-a rapidamente, em pé, no tombadilho do Alfonso de Albuquerque. Imediatamente, constatou: "aquela garota é encrenca". Mas o amor costumava ser cego. Ele, melhor do que ninguém, sabia disso. Não pretendia se meter nos interesses do filho, mas haveria de protegê-lo. Era seu dever de pai. Nem que tivesse que abrir mão do orgulho e despachá-lo para a Escócia, onde ficaria sob os cuidados dos amigos maçons.

O equilíbrio entre resguardar sem interferir era delicado, ele bem o sabia. Mas, tinha de tentar.

-Pronto para a nossa grande aventura náutica, pai? – brincou Antonio, olhando para ele de relance.

Dom Jayme deu de ombros. Entre os franceses e os índios, ele preferia ficar com os índios.

Ignácia acenou para eles. Antonio retribuiu, com energia redobrada. Franzindo o cenho, ela se deu conta do risco que os Aragão estavam correndo a bordo da esquadra real. Se os conselheiros do regente soubessem, ou se lembrassem deles...

Era perigoso demais estarem tão próximos à Coroa.

O que Ignácia não sabia era que Antonio não a teria deixado partir para uma terra selvagem do outro lado do mundo. Sendo assim, criou uma identidade falsa e se fez passar por um funcionário da Imprensa Régia. O que lhe garantiu a passagem.

Dom Jayme, por sorte, era tão aventureiro quanto o filho, embora não soubesse da missa, a metade. Reproduzir livros raros era uma coisa, discursar contra as políticas do rei, era outra muito diferente. Se soubesse o que o Senhor Xavier e João de Algarve vinham aprontando, provavelmente teria um infarto.

Um dia desses, Antonio teria que contar ao velho tudo que esteve fazendo. Mas, não agora. Talvez, quando chegassem ao Brasil...

Antonio colocou as mãos em concha ao redor da boca, e gritou para a Alfonso de Albuquerque:

-Ignácia, escute com atenção! Se os navios se separarem, eu mandarei Adelaide até você.

A garota sabia que Adelaide era um dos pombos-correios treinados por Dom Jayme – seu excêntrico e mais querido passatempo. Ele jamais deixaria as "filhas" para trás. Aliás, foi um dos motivos pelos quais Antonio conseguiu convencer o pai a ingressar no navio. (Ele lhe disse que os franceses adoravam degustar carne de pombo e iriam cozinhar os seus!)

Ignácia colocou as mãos em concha e gritou de volta:

-Mas, por que os navios iriam se separar?

Ele não precisou ter o trabalho de responder. Ao lado dela, um marujo escutou a pergunta e se meteu no meio da conversa: - Ah, jovem dama... Uma tempestade pode muito bem dispersar a esquadra.

Ignácia olhou para ele sem graça, mas agradeceu a resposta.

-De nada, dona. – O rapaz afastou-se, faceiro. Ela voltou sua atenção para o outro navio.

Antonio levantou as duas gaiolas com os pássaros, e sorriu.

Rochelle rosnou para as aves.

-Ui! Que vista boa você tem, hein, garota? – disse Ignácia. Em resposta, a buldogue lambeu o seu rosto. Rindo, a garota acrescentou: – Mas só quando lhe convém.

Enquanto Ignácia balançava a patinha gorducha de Rochelle, como dizendo tchau para Antonio, do outro lado da Medusa teve início um burburinho que levou o rapaz a desviar a atenção.

-É agora – disse ao pai.

O convés da Medusa já estava abarrotado de caixas, barris, e animais. Dom Jayme tentou se equilibrar ao lado do filho, junto à amurada. Antonio sugeriu: – Melhor o senhor se sentar ali.

-Está bem – disse Dom Jayme, cansado de ficar em pé. Precisava apoiar a perna doente.

-Parece que, finalmente, houve uma mudança de vento. – Antonio gritou para Ignácia, enquanto Dom Jayme se afastava para o lado mais vazio do convés.

A mudança do vento era o milagre que os marujos esperavam. Alguns tripulantes começaram a assoprar seus apitos. A comunicação foi rápida e precisa. Então, correu a notícia entre os nobres de que a nau Príncipe Regente estava abrindo as velas. Antonio ouviu o som produzido pelo içamento de âncoras.

"Por um triz", reflete o rapaz, "o general francês vai ficar a ver navios".

Na segunda nau mais potente, a expectativa é enorme.

-Todos a postos! – ouviu-se o comandante gritar da cabine de comando da Alfonso de Albuquerque.

Ignácia acenou uma última vez para Antonio. Em resposta, ele colocou a mão sobre o peito, solene, depois fez-lhe uma breve reverência antes de se juntar ao pai, no convés da Medusa.

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Havia muitas coisas a se fazer, a bordo de um navio. Apenas os ociosos e os desacostumados não percebiam isso.

A viagem não pretendia ser nenhum cruzeiro turístico. Assim, Ignácia estabeleceu um plano de ação. Para começo de conversa, tornou-se uma ladra – sua primeira aventura fora da lei! Mas, em tempo, uma ladra com propósito. Nobre propósito, diga-se de passagem.

A sobrevivência.

Assim, ela roubou utensílios de limpeza - como escovão, pano, balde, e alguns sacos de estopa que ela pretendia costurar mais tarde (a fim de criar uma tenda improvisada onde pudesse dormir). Depois, escolheu um canto da popa protegido do vento e pediu a um dos carpinteiros que cuidavam da manutenção do navio, para que pendurasse os ganchos da rede que ela também roubou.

Sim, ela roubou uma rede. Uma não. Duas. E convidou sua prima em terceiro grau, Otacília, para dividir os aposentos improvisados. Otacília era meio tolinha, mas de bom coração. Ignácia gostava bastante dela. Poderiam fazer o papel necessário de acompanhantes, uma a outra. E ao mesmo tempo, protegeriam o esconderijo de nobres oportunistas que tentassem se apossar dele.

Foi à cloaca, perdeu o lugar.

E Ignácia estava decidida a não perder o seu.

A travessia oceânica seria uma aventura que Ignácia jamais iria se esquecer. A primeira que não se passava inteiramente em sua imaginação. Ela tratou de registrar tudo o que viu e ouviu, em seu diário.

Não havia como não olhar na direção do mar, e não se maravilhar com a bela formação das embarcações portuguesas brilhando ao sol. As naus à frente, todas alinhadas, seguidas de perto pelas fragatas, escunas e pelos brigues. Ao fundo, o sol deitava-se no horizonte, produzindo uma luz etérea sobre as velas tremulantes. No convés de sua nau, alguns artistas decidiram retratar aquele momento de rara beleza.

Distraída, a garota levou um susto com o arrulhar de uma pomba pousada próxima a sua cabeça. Ela se aproximou da ave, percebendo que se tratava de Adelaide. Sorriu, antecipando o recado que Antonio teria para ela.

Tratou de pegar o bilhete rápido, imaginando que teria de enviar Adelaide de volta ao seu dono antes que decidissem assá-la para o jantar. (A questão da comida a bordo estava ficando um caso sério).

Abriu o papel e leu: Propriedade de Jayme Toledo de Aragão. "Tem comida suficiente? Precisa de algo? Caso precise, mande pedir, que darei um jeitinho. Ass. Antonio".

Ela rapidamente pegou um lápis e rabiscou a resposta no verso: "Estamos bem, por ora. Vamos precisar de ajuda. A comida, aqui, é insuficiente".

Ela enrolou o papel, amarrou a mensagem novamente no anel da pomba, e fez um carinho nela antes de lançá-la ao ar. Adelaide não hesitou ao escolher o seu rumo... Foi direto para a terceira nau a sua esquerda, mais atrás. A famigerada Medusa.

-Ignácia! Aonde está essa menina!

Ignácia sentiu um calafrio percorrer sua espinha. Era Dona Carlota. A jovem correu pelo tombadilho e se escondeu antes que a princesa ou uma de suas damas de companhia a avistasse. Àquela hora da manhã, era muito cedo para qualquer um da nobreza estar de pé, exceto aqueles que exerciam funções especiais junto à família real.

Ignácia costumava ficar afastada da cabine real, para proteger Rochelle. A princesa bem poderia ordenar que a pobre buldogue, por ser de origem francesa, fosse atirada ao mar...

Ou, que fizessem dela a refeição da noite.

A garota tinha criado um esconderijo para o filhote, dentro de um dos barcos salva-vidas que ficava de frente para a sua rede. Contudo, só colocaria a cachorrinha lá numa emergência. Se chegasse a esse ponto, porém, ela mesma utilizaria o bote para escapar.

Normalmente, Ignácia transportava a pequena buldogue nos bolsos internos reforçados que costurou em suas saias, às pressas, antes da viagem. Foi a forma mais inteligente que encontrou para que Rochelle ficasse longe das vistas curiosas dos demais companheiros de viagem. Isso, durante o dia. Porque, à noite, a cachorra corria solta, e depois se recolhia para dormir com sua dona, na rede.

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Certa manhã, Otacília lhe contou que os biscoitos estocados estavam cheios de vermes. Os marujos tiveram que colocar peixes podres para fazê-los – os vermes – migrarem dos biscoitos para as carcaças. Para piorar, havia muitos ratos - passageiros cativos dos velhos navios da esquadra portuguesa. Dizia-se até que roeram os barris de comida...

Ignácia chegou a dar nomes aos ratos. E, sinceramente, torcia por eles. Considerando-se que havia outros animais a bordo... E não eram somente os cães... Estes também, mas, além deles, havia porcos, cabras, vacas, e aves... A higiene nunca poderia ser feita da forma correta.

Resultado: muitos nobres tiveram que correr para as cloacas(5) por causa dos desarranjos intestinais. A vergonha de ficar com a bundinha de fora, ao léu, para todo mundo ver, era pior do que o mal estar em si.

Nem a pau que Ignácia comeria o que estava armazenado nos porões do navio. Ela estava desenvolvendo seus estratagemas para conseguir comida fresca. Nesse meio tempo, escreveu uma crônica nada lisonjeira sobre a relação entre a nobreza e a falta de higiene. Deu ao texto o título: "O incidente da cloaca".

Enquanto escrevia, um problema lhe ocorreu. Quando desembarcassem no Rio, será que encontraria uma tipografia para dar andamento às publicação dos artigos? Será que Antonio conseguiria encontrar o maquinário necessário? E se encontrasse, o rei descobriria que os misteriosos Senhor Xavier e João de Algarve estavam entre os cinco ou dez mil nobres que desembarcaram com a família real, na colônia.

Ela deu de ombros.

Dom João VI não teria como adivinhar, entre cinquenta e tantos navios, quem era o ousado escritor... Ou teria?

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Vez por outra, quando a situação dentro do navio ficava crítica, os ingleses enviavam mantimentos para alimentá-los, além de roupa de cama para aqueles que não tinham com o que se cobrir, no frio da noite.

Numa dessas ocasiões, Ignácia aproveitou a chegada dos marujos ingleses, para lhes pedir emprestada uma vara de pesca, ao que foi atendida. Na verdade, o marujo riu, achando engraçado. Disse que dificilmente ela conseguiria pescar alguma coisa em alto mar. A não ser que os navios parassem por algum tempo... E olhe lá! Mesmo assim, atendeu ao pedido e ensinou-a um jeito simples de tentar capturar os peixes.

Uma tempestade dispersou os navios por vários dias. Os ingleses não puderam ajudar com os suprimentos, nem com a roupa de cama. Daí, Ignácia começou a pescar a própria comida, enquanto estavam ancorados, aguardando que o comandante da nau determinasse o curso correto.

Ela dividia o resultado da pesca entre ela, Teresa e Otacília. Tudo às escondidas... O esquema era o seguinte: Ignácia trabalhava de madrugada, quando não havia bisbilhoteiros a atrapalhá-la. Primeiro, pescava, e quando conseguia, caminhava até a cozinha, pé ante pé, a fim de limpar o peixe.

O problema era que não sabia limpá-lo. Teve a sorte de cativar a simpatia do cozinheiro, que certa vez a flagrou tentando preparar um pescado. Ele também riu, como inglês que a ensinou a pescar, só que de admiração. A garota era um desastre total na cozinha, como todo nobre que se prezasse, mas era esperta e determinada. Ele a ensinou a limpar o peixe e a salgá-lo para não apodrecer. Assim, poderia estocá-lo para os dias em que não conseguisse pescar coisa alguma.

Depois de utilizar a cozinha com a conivência do cozinheiro, ela se acostumou a preparar o peixe, salgá-lo, cortá-lo e embrulhá-lo em pedaços menores.

Como não era todo o dia que ela conseguia peixe, passou a direcionar suas excursões noturnas para assaltar a despensa bem fornida da princesa-regente.

Que ficava em separado, é claro.

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Rodapé:

5 - Que ficavam a céu aberto, suspensas sobre o mar.

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