7. Encontrando o seu "Gerente" interior
Tendo por base o marasmo que se via fora do período de veraneio, ele imaginou que ficaria a maior parte do tempo sentado no escritório minúsculo, lá nos fundos, olhando para o teto.
Só que não...
Os dias de trabalho para um gerente de supermercado não eram monótonos e sedentários, como Yago havia imaginado. Logo descobriu que precisava estar atento a todo o funcionamento dos setores essenciais de um estabelecimento como aquele, por menor que fosse. A parte interna: estoque e apresentação: higiene das prateleiras, do piso, o funcionamento dos caixas, etc. E a parte externa: fornecedores, clientela. reposição, compras, pesquisa de produtos e lidar com a entrega... desde o continente... passando pela ilha maior... até chegar à ilha menor...
Mas não bastava estar atento. Era preciso se antecipar e agir. Resolver o que precisava ser resolvido, criar alternativas criativas onde não havia.
Mas se estava espantado com tanta coisa a ser feita, estava mais espantado consigo mesmo. Isto é, com o fato de gostar do desafio que as tarefas diárias requeriam. Ele, cuja vida sempre foi regada à adrenalina, sentia–se até que adaptado a uma rotina comum. Como integrante e líder do pequeno contingente de funcionários.
Desejava ser aceito pela "família", mas encontrou em Danika um grande empecilho. Ela não o queria lá. Embora não manifestasse seus sentimentos em voz alta, a atitude dizia tudo. No entanto, ele era um cara paciente. Decidiu ganhar a simpatia dos outros primeiro. Daí, ela não teria escolha a não ser aceitá–lo também.
Logo venceu o desafio de se enturmar. Até o ranzinza do uruguaio acatou as suas decisões e ordens. A única que permanecia irredutível era Danika.
Ele jurou para si mesmo descobrir o motivo. E estava cada vez mais determinado a vencer a sua resistência.
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Yago não teve trabalho para descobrir que Aline gostava de fofocas. Investiu fundo na simpatia, a fim de conseguir a informação que queria.
Aline revelou–se uma garota adorável, fácil de conversar, conhecedora de tudo e de todos. Uma fonte valiosa de informações. Mas, em se tratando de sua amiga Danika, ela se comportava como uma esfinge. Yago não conseguia extrair qualquer elemento útil sobre ela.
Teve que admirá–la por isso. Aline era amiga de verdade. Não mais uma disposta a puxar o saco do patrão.
Tudo o que conseguiu descobrir foi que Danika não nasceu na ilha. Foi adotada no continente ou na capital e trazida pelos pais, que eram nativos da ilha das Guirlandas. Ela estudou Pedagogia fora, voltou para lecionar, mas se viu obrigada a trabalhar parcialmente no supermercado, para complementar a renda. A moça estaria juntando dinheiro para fazer a viagem dos sonhos, pelo mundo. Ela e Arlindo. Aline já propôs que rachassem, pois talvez saísse mais barato. Só que cada um sonhava em conhecer lugares muito diferentes.
Aline não lhe contou pra onde a amiga pretendia viajar. Isso, só Danika sabia. Já Arlindo era um livro aberto sobrevalorização terra do Tio Sam.
De outras fontes, menos criteriosas, Yago conseguiu descobrir que a mãe de Danika morreu há dois anos. Será que alguma outra tragédia pessoal, além desta, é a razão da atitude arisca da moça? Quem sabe, a vida antes da adoção? O que teria acontecido aos seus pais biológicos?
Havia o mistério por trás da atitude da moça em relação aos "forasteiros".
Yago também descobriu que Danika possuía uma cadelinha shitzu chamada Cora, e ela era tudo para a professora. As duas moravam num dos apartamentos disponibilizados por Dona Eulália, em cima do supermercado.
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Com o passar das semanas, Dona Eulália foi confiando mais e mais naquele jovem animado que tinha um estranho apelido: Guinho. O mais estranho era que aquele apelido, bem como a fisionomia dele, não lhe era estranha. Yago desconversava, sempre que ela falava a respeito.
Depois do primeiro mês de trabalho, ela o recompensou, cedendo a chave de um dos apartamentos vagos, no segundo piso. Ele iria pagar um aluguel e dividir com os demais moradores os gastos de água e luz. Para Eulália, era a combinação ideal: o supermercado podia não lucrar fora de temporada, mas ela tinha aluguéis e, ao mesmo tempo, nunca ficava sozinha.
Yago aceitou o oferecimento, aposentou a barraca e se mudou para a quitinete. Dona Eulália o instalou na porta em frente à porta de Danika. Sua intenção, como sempre, era que os dois se entendessem. Secretamente, ela cultivava um hobbie não muito ortodoxo: bancar o cupido. Não era sempre que tinha a chance, numa comunidade tão pequena.
Para Danika foi, no mínimo, estranho e perturbador ter o rato de praia como seu vizinho de porta. Seus sentimentos se alternavam entre choque, revolta, e preocupação, mas não disse nada. Passou a evitá–lo como se fosse um leproso. Corria para dentro da sua quitinete, antes que ele encontrasse uma desculpa plausível para bater na porta e pedir, quem sabe, uma xícara de açúcar. Ele, que não consumia açúcar... Estava buscando qualquer motivo para estabelecer uma conversa amigável com ela.
Danika não queria nem saber.
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De vez em quando, Eulália via as faíscas saindo de ambas as partes – muito mais do lado de Guinho, mas imaginava que, em breve, eles iriam aparar suas arestas. Imaginava se o rapaz tranquilão conseguiria, com todo o seu charme, fazer a mágica acontecer.
Se não funcionasse com Danika, ao menos a lábia do rapaz funcionava com todos os outros. Eulália reparou que até com o uruguaio caladão andava mais falante. Yago conseguiu estabelecer um bom relacionamento de trabalho com todos. Dava sugestões, mas não impunha. Ajudava a melhorar a dinâmica e até Seu Javier acatava as novas ideias, sem reclamar, como antigamente. Era engraçado ver como alguém que lidava com carnes bovinas tão bem, se fechasse para os outros, como uma ostra.
Mas, não era somente Javier que vivia como uma ostra ali. Ela sabia de uma ou duas ostras que também deveriam se abrir, logo–logo.
Yago estava indo tão bem, que até conseguiu convencê–la a mudar o nome do supermercado. De Alvorada Voraz (uma homenagem de seu falecido marido à banda favorita: RPM) para simplesmente Alvorada.
Com um sorriso nos lábios, Eulália retornou para o seu apartamento, de onde pouco saía. Sair para quê? Tudo o que precisava estava lá. Suas fotos e lembranças de pessoas amadas, e que já partiram antes dela. Não estava mais sozinha no mundo, não se sentia assim. Se precisasse de companhia, bastava descer as escadas e conversar com seus jovens funcionários. Eles tocavam o negócio que foi de seu esposo e que agora, era dela.
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Janete se derreteu toda para o novo gerente, Javier percebeu, cheio de ressentimento. Cortou a carne na prancha com mais força do que o necessário. E lá vem ela toda sorridente, para fazer seu pedido semanal. Ele se perguntou como não engordava, porque pedia tanta carne que ele imaginava se ela comia tudo, se alimentava leões, ou se estocava no freezer... E o mais importante: Qual a razão de vir atormentá–lo, quando era mais do que evidente o seu interesse pelo novo administrador do "Alvorada."
Outrora "Voraz."
"Jaz Voraz".
–Boa tarde, Javier. Como vai? – Ela perguntou, no seu tom modulado que antes mexia com ele, mas agora só o deixava irritado.
–Boa – respondeu de má vontade, e ela levantou o queixo, detectando o humor do momento.
Dane–se.
–Hoje, vou querer picanha – informou num tom seco. – Cinco quilos.
Ele largou a faca na bancada, interrompendo a tarefa para o dia. Que era abastecer a vitrine das carnes. Janete o estava atrapalhando.
–Cinco quilos, hein? Nossa...!
–O que o senhor quer dizer com "nossa"? – Ela o imitou. O que o deixou mais irritado ainda.
O novo gerente surgiu do nada. Janete já o viu de passagem. Achou interessante que um rapaz cabeludo, de sandálias franciscanas, bermuda e camiseta quadriculada de flanela, ostentasse o crachá de gerente. Na cabeça dela, os gerentes usavam ternos e eram enfadonhos... Ao menos se apresentavam de camisa e sapatos sociais... Aquele rapaz tinha um quê de petulante confiança, aliada ao toque natural de rebeldia. Algo desafiador e estimulante para alguém como ela. Quando Yago abriu a boca, porém, Janete deixou suas divagações de lado para lhe dedicar atenção.
–Acho que o que o nosso açougueiro quer dizer, é que...– Yago sorriu, confiante. – Talvez a senhorita nos convide para a festa... – fingiu não ver Javier abrindo e fechando a boca, indignado.
–Naturalmente! – Janete estava toda sorrisos. – Na verdade, eu venho me perguntando quando iriam questionar a quantidade de carne que compro aqui.
Ela lançou um olhar dissimulado para Javier e volveu toda a atenção para Yago.
–Ocorre que pretendo fazer um churrasco no próximo domingo e, enquanto vou angariando as receitas para os pratos, estou comprando a carne aos poucos e estocando no freezer.
Ora essa! Não é que Javier acertou em cheio?
Yago via uma versão diferente da situação. Sabia que ela comprava carne para visitar o uruguaio turrão e cegueta. Só poderia ser cegueta para não perceber que Janete tornou a ida ao supermercado o seu evento social de todos os dias. Mas, ele teve que reconhecer que a professora estava se saindo muito bem com a desculpa furada. Pelo menos o turrão acreditou.
Ela explicou rápida que decidiu fazer uma festa na piscina, para animar um pouco a vila. Não teve coragem de confessar que, no fundo, estava arranjando uma desculpa para convidar o açougueiro charmoso. Janete nunca viu um homem tão desejável e tão inconsciente dos seus próprios atributos, como Javier. Talvez fosse por isso que ela se sentisse tão atraída.
Desafio. Janete adorava desafios.
– Posso contar com a presença de vocês? – Ela indagou, sorrindo. Se Javier dissesse que não, e ele era bem capaz de fazê–lo, ela abriria o saco de carne e despejaria tudo na sua cabeça. E mais importante, sairia sem pagar.
Mas Yago estava atento e conduziu a conversa.
–Quanto a isso, fique tranquila! Javier teve umas ideias interessantes sobre kits churrascos, e está desenvolvendo o projeto para apresentar na próxima reunião de funcionários.
Javier ficou olhando para ele, sem expressão.
–Lembra da ideia que discutimos mais cedo? – Yago comentou, com as sobrancelhas erguidas.
–Era só uma ideia – disse o uruguaio, irritado.
–Pois bem, acho que poderemos testar a eficácia, se a senhorita nos permitir, para a sua festa. Uma festa na piscina certamente combina com nosso kit churrasco.
Janete se iluminou toda como uma árvore de natal.
–Esplêndido!
E virou–se para Javier, à espera de um comentário. Ele entendeu o que tinha que dizer, quando olhou para Yago.
–Bem, eu vou criar algumas combinações. Por que a senhorita não volta aqui outra hora, para ver se aprova?
–Esplêndido! – Repetiu – Quando?
– Ah, pode ser... Amanhã?
–Estarei aqui, bem cedo – disse ela pegando o saco de picanha e colocando no cesto. Virou–se, mas se lembrou de algo, voltou novamente para a janelinha de vidro, incluindo os dois com um breve gesto. – Não preciso dizer que todos aqui estão convidados para o churrasco, né? A vila toda está, na verdade.
Yago sorriu e respondeu: – Ficamos honrados, não é mesmo, Javier?
O uruguaio deu as costas para os dois, sem responder.
O sorriso de Janete vacilou um pouco, mas ela manteve a pose. Isso foi mais uma coisa que Yago admirou nela. A doutora se despediu e foi para o caixa pagar a sua compra.
Quando percebeu que estavam os dois sozinhos no açougue, Javier suspirou pesadamente.
–Essa louca está estocando carne no freezer para servir num churrasco – desabafou, olhando para a tábua de madeira, enquanto pegava o desinfetante.
–O que é que tem? – perguntou Yago, sem compreender.
–A carne de um churrasco tem que ser o mais fresca possível.
–Mas no freezer não tem problema algum. Quantos restaurantes estocam carne no freezer, Javier? – Yago se apoiou na janelinha de vidro. – E eu já estive em alguns churrascos, antes de me tornar vegetariano.
–Vai por mim, você não entende nada de churrasco.
–Ai, doeu! – disse Yago, sorrindo. – Alguém está de mal humor.
Ele se desencostou da janelinha e antes de se afastar, comentou: – Janete é uma pesquisadora e acadêmica. Mesmo que seja doutora, não deve ganhar tanto assim pra esbanjar... Eu entendo que ela queira gastar em doses bem homeopáticas.
Por um instante, o uruguaio parou para pensar. Quase compreendeu o lado dela. Mas não querendo ter uma compreensão que gerasse "intimidade", ele bufou.
– Mas ela tem dinheiro para comprar vestidos caros e colantes para ficar desfilando por aí. E aqueles sapatos?
Yago manteve a expressão neutra. Não queria expor o uruguaio, que, já deu para perceber, não reagia bem quando ficava acuado. Mas estava mais do que na cara de que ele estava com ciúmes da doutora.
–Bom, carne de freezer, ou não, ela vai estar aqui amanhã. Então, sobre aquele kit do qual conversamos? Quero que faça três opções e veremos no que vai dar.
Yago piscou um olho e se afastou, deixando o açougueiro com seus pensamentos sombrios.
–––
Yago se deparou com Aline, no corredor, empurrando um carrinho de compras lotado de latas.
–Quer ver como organizamos as prateleiras, chefe? – Ela lhe perguntou, sorrindo.
–Claro – ele se adiantou para empurrar o carrinho. – Deixe que eu levo.
Pararam na seção de latarias, molhos e massas. Aline apontou onde iria repor os produtos. Yago não só observou, como ajudou.
Lá pelas tantas, do nada, ela comentou:
–Aquele xaveco é antigo...
– Que xaveco? Ah... – Ele logo entendeu que estava se referindo a Javier e Janete.
– Tipo amor e ódio. – Ela completou.
–Por que será? – Yago perguntou suavemente, estendendo as latas para ela.
–Tenho as minhas hipóteses... – Aline torceu os lábios. – Acho que o fato de Javier ser viúvo tenha algo a ver com isso. Não sei se sabe, mas ele perdeu a esposa e a filhinha num acidente, há alguns anos... Nunca se recuperou.
Yago digeriu a informação. Sentiu pena do homem.
– Quem se recuperaria?
Vendo que Yago ficou consternado com a informação, Aline continuou: – Javier acha que a gente não sabe o que aconteceu. Mas eu encontrei uma menção ao seu nome, na internet. Uma notícia sobre o acidente. Ninguém tem segredos para o Tio Google.
O problema é que isso também vale para Yago, que engoliu em seco. Ele e o uruguaio tinham mais coisas em comum do que a princípio, ele imaginava.
Melhor mudar de assunto.
–Teremos uma reunião amanhã, pela manhã – disse ele.
Aline encarou–o sem entender.
– De agora em diante – explicou Yago: – teremos reunião de equipe uma vez por semana, para discutir questões de trabalho e organização.
Aline meneou a cabeça e encolheu os ombros. – Você é o chefe, você é quem manda!
Enquanto terminava de organizar as latas, ela tentou dissimular o espanto. "Espere só até Danika saber disso"... – pensou, enquanto riscava a lista de reposição das prateleiras.
–Precisamos verificar se todos os produtos têm etiquetas de identificação ou de preço na prateleira – ela comentou. – Porque arrisca a gente ter que dar o produto de presente, ou cobrar apenas o valor da etiqueta de um outro produto igual, mais barato, conforme dita o manual do consumidor.
–Certo... Yago anotou que deveria estudar o código do consumidor, o quanto antes.
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