4. Os da velha guarda
Danika atravessou a trilha que ligava uma ponta à outra da Praia do Viking.
A ilha possuía quatro praias, formando quase um quadrilátero, se não fosse pelo trecho do Pontal. As praias eram belas e suas ondas tinham humores divergentes. A Praia Bravia (ou Praia Marrenta para alguns), a Praia do Viking, a Praia da Choupana, e a Praia dos Lilases... Cada qual recebeu o seu nome por razões evidentes e autoexplicativas.
O Pontal dos Rochedos era um pequeno trecho ou descontinuamento rochoso entre a Praia dos lilases e a da Choupana. um lugar perigoso, com ondas grandes e um penhasco que já foi muito usado para saltos. Havia pequenas cruzes de madeira colocadas antes do acesso à trilha, para lembrar os imprudentes que saltadores morreram ali.
A escola em que Danika lecionava, ficava entre duas pequenas colinas, a meio caminho da Praia do Viking. Lá, naquela área, os arqueólogos encontraram indícios da presença de navegadores vikings e, antes deles, dos fenícios. Então, a professora e seus alunos topavam de vez em quando com o pessoal das universidades. Principalmente, antes e no fim da alta temporada de verão, pois era quando as aulas respectivamente começavam e estavam em seu final. Os acadêmicos nunca cruzavam com o volume de turistas que assolava Florianópolis durante a temporada.
Por sorte, a ilha das Guirlandas não era muito procurada; além disso, Danika e seus alunos ajudavam a proteger os sítios arqueólogos contra o assédio de "forasteiros" de verão desavisados.
Os moradores da ilha não se surpreenderam com os achados dos universitários. Tinham suas lendas. Além do quê, os pescadores também já encontraram alguns artefatos no fundo do mar, durante mergulhos de pesca ou de mergulho profissional.
Alguns arqueólogos, entre professores e estudantes universitários, visitavam a ilha para nadar e mergulhar e contratavam os serviços dos pescadores nativos, como guias.
Tudo isso era muito interessante. Fazia parte do cotidiano dos moradores. E por causa disso, Danika incorporava nas aulas dadas aos adultos.
O problema que ela enfrentava era ver seus alunos completarem os estudos.
Os idosos frequentavam a escola mais como um acontecimento social, do que um compromisso acadêmico. Muitos reprovavam de propósito, para continuar frequentando a escola no ano seguinte. Era uma tática para prolongar o prazer do "encontro social", mas também, para impedir que a escola fosse fechada.
Claro que eles negavam, quando Danika os confrontava.
Alguns dos seus alunos estavam na sexta série do Ensino Fundamental há dois anos. E não havia quem os convencesse de que eles deveriam prosseguir para a sétima série.
Ficar estacionado garantia a diversão deles.
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Danika estava acostumada a andar na escuridão para chegar à escola, pois conhecia todo mundo e todo mundo a conhecia, desde pequena. Cada um sabia o que o outro estaria fazendo aquele horário; poderia ser considerado o problema das pequenas comunidades, mas ela gostava assim. Toda essa cumplicidade comunitária era o que precisava alguém como Danika, tão avessa aos turistas/forasteiros.
E por falar em forasteiros...
Ela agora estava com "um espinho enfiado no dedo do seu pé". Figurativamente falando. Esse espinho se traduzia sob a forma de um andarilho, com cara de hippie... Ele não tinha nada que vir para cá, ainda mais fora de temporada, e ficar lá na Marrenta acampado...
Será que a última maré alta o derrubou? Ela começou a rir. Mas parou só de imaginar que o sujeito deve ter deixado um monte de lixo pela praia. Forasteiros sempre emporcalhavam tudo. E depois sobrava para ela e outros voluntários irem até lá limpar.
De repente, uma sombra saltou diante dela, e quase a matou de susto. Ela logo reconheceu o objeto de seus pensamentos. O forasteiro simplesmente se materializou diante dela.
-Desculpa, moça! - Disse ele, num tom sincero de arrependimento. - Não quis assustar você.
Ela fez uma carranca.
-Não assustou - e dito isso, continuou andando. Se não estivesse pensando nele, não teria se assustado. A culpa, de qualquer forma, era dele.
Ele a acompanhou com os olhos, uma expressão pensativa no rosto. Queria saber quem tinha magoado tanto aquela moça para que ela se tornasse assim, tão amarga. Se soubesse, daria um soco na cara do sujeito. Ela, de fato, rotulou-o por baixo, sem ao menos o conhecer.
Encolhendo os ombros, Yago continuou o seu caminho rumo ao centrinho da ilha. Queria tomar um café e estar em meio às pessoas daquela pacata comunidade, aprendendo com suas experiências...
Fazia tempo que ele não se sentia assim... Receptivo às pessoas.
Respirando o ar puro, ele continuou pela trilha, só que na direção contrária à da garota zangada. Mas não pode deixar de sentir preocupação por vê-la assim, andando sozinha, no escuro, àquela hora. Teve que se forçar a lembrar que estavam numa ilha minúscula, onde todos se conheciam, e que dificilmente ela correria mais riscos que ele próprio.
Quando deu por si, estava dando meia volta e seguindo-a à distância.
"Aonde será que ela está indo?", pensou, enquanto caminhava com cuidado.
A cautela se devia à duas razões:
1)Para não tropeçar nas pedras - verdadeiras armadilhas naquela escuridão. Alguém podia tropeçar e rolar ribanceira abaixo.
2) Porque não queria que a marrenta notasse a sua presença.
Taí... A praia recebeu o nome de Marrenta, em homenagem à Danika.
Ele começou a rir. Que desculpa iria dar a ela, sobre o fato de a estar seguindo na escuridão? Quem acreditaria que ele só desejava se assegurar de que chegasse em segurança ao seu destino? Ela o acharia um completo maluco. Ou um tarado, um perseguidor.
Danika desceu a colina com uma agilidade espantosa até para uma nativa e se dirigiu à casinha de tijolos, toda iluminada. Havia pessoas conversando na calçada ao redor, bem como sob um puxadinho de eternite. A construção estava aninhada na base entre duas colinas. O barulho das ondas do mar e a brisa fresca o alcançaram. Ele parou no alto da primeira colina para contemplar a paisagem.
Deu-se conta de que as pessoas à espera de Danika eram todas idosas. Então, caiu a ficha. Aquela era uma escola de adultos! A compreensão veio pouco antes da visão da enorme placa, na frente, contendo os dizeres: "Centro de Educação de Jovens e Adultos da Ilha das Guirlandas. Distrito Norte de Florianópolis".
Ele parou atrás de uma árvore frondosa. Contudo, achou que logo iriam enxergá-lo ali. por isso, correu para trás das ruínas do muro que cercava a propriedade. Dali - desde que continuasse agachado, conseguia ouvir, sem ser visto.
- Olá, professora! - Cumprimentou uma das alunas.
Então, a marrenta também era professora da escola local. Quem diria... Ela não tinha cara de professora, nem se comportava como uma. Yago sempre achou que um professor tivesse uma postura tranquila e ponderada... E que só atuasse como professor. Mas isso era um estereótipo. Quase um preconceito.
Bom, agora ele sabia algo a mais sobre Danika. Só não sabia o sobrenome. (Queria enxergar o que estava escrito no crachá por tempo suficiente para ler as informações... Sem parecer um stalker). Bem, ele teria que fazer uma nova compra no supermercado. Desde que a maré alta quase levou sua barraca e o celular deu perda total, ele teria que repor o prejuízo.
Quem sabe, pudesse remediar a animosidade que ela nutria por ele, gratuitamente, se batessem um papo amistoso? Tendo essa ideia em mente, observou Danika toda sorrisos, cumprimentar seus alunos da velha guarda. Ela conversou um pouco com eles, e quando deu o horário, convidou a todos para dentro da sala de aula iluminada. Logo, Danika começou a explicar o conteúdo da aula, com sua voz paciente e agradável.
Uma senhorinha uniformizada apareceu, vindo de trás da casa. Trazia consigo duas garrafas de café e uma bandeja com bolinhos. Ela colocou a bandeja no centro da mesa, embaixo do puxadinho; cobriu-a com um pano de prato quadriculado; e colocou as garrafas térmicas ao lado. Provavelmente, era o lanche do intervalo.
Assim que a mulher se afastou, Yago tomou o caminho de volta ao centro da vila.
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A noite seguia quente e agradável. As pessoas riam e bebiam. Alguns já um pouco alterados. Desta vez, havia casais e pequenos grupos; alguns jogavam canastra, outros contavam estórias... E havia quem se acabasse no karaokê.
Yago sorriu, observando a dinâmica descontraída dos locais.
-Então, meu jovem... - o Senhor Setúbal sorriu, benevolente.
Setúbal era um homem atarracado, e aparentava menos que seus sessenta e três anos bem vividos. Tinha a pele curtida do sol e do sal do mar. Afinal, foi pescador durante boa parte de sua vida, até que um tubarão decidiu que era hora dele parar. O bicho quase provocou a amputação de sua perna e Setúbal teve que repensar a vida. A perna foi salva, embora ele mancasse ligeiramente e tivesse dor quase constante na altura da mordida, no quadril. No entanto, todos diziam que foi um milagre ter saído quase ileso do ataque.
Quase.
Já que pescar ficou difícil, Setúbal abriu o único bar da ilha; o qual atendia aos pescadores da velha guarda, turistas e bebuns de plantão. Na falta dos dois últimos, ele tinha os primeiros de sobra. Alguns gostavam de sentar ali e ficar a tarde toda proseando e contando seus "causos". Outros seguiam noite adentro, obrigando Setúbal a fechar o bar e despachar o sujeito para casa.
No dia seguinte, o desinfeliz voltava atrás de uma jovem loira gelada, ou da velha e boa cachaça. Beldades alcoólicas que serviam de desculpa para ficar alegrinhos; especialmente no período de defeso.
Tanta gente já passou pelo bar do Setúbal... Que ele realmente se tornou um bom conhecedor de pessoas e avaliador de caráter - tanto dos bebuns, quanto dos não bebuns. O forasteiro que acabou de entrar em seu bar, não tinha jeito de ser um vagabundo de praia, muito menos bebum. (Embora, desse a impressão de conhecer a boemia).
Ele trazia um sofrimento profundo no coração. Sim, pareceu-lhe óbvio que carregava algo bem guardado. Tudo o que você traz no peito, dizia sua falecida mãezinha, transparece no olhar. E o olhar era de alguém que estava tentando se curar. Setúbal lamentou por ele, pois intuiu que Yago fosse uma boa pessoa.
Depois das palavras breves de cumprimento e a escolha da bebida, Setúbal encetou uma conversa leve, até que decidiu perguntar:
-O que pretende por essas bandas?
Yago inclinou a cabeça. Perguntinha interessante. Ainda mais do jeito como foi proferida.
- Estou passando o meu tempo, da melhor maneira possível. - Encarou-o com tranquilidade.
O dono do bar torceu os lábios. Não gostava de evasivas. A atitude lhe mostrou que o rapaz era simpático, mas sabia se fechar como uma ostra.
-E pretende fazer algo útil com o seu tempo?
O rapaz encolheu os ombros.
- Penso que sim.
-Ótimo... - Setúbal sorriu, contente. De repente, achou que poderia ajudar duas pessoas ao mesmo tempo: Eulália, e este excelente jovem que parecia perdido em sua dor.
- Minha amiga está precisando de um gerente em seu estabelecimento. Ela já é uma senhora de idade, viúva, e tem tocado tudo sozinha desde que o marido faleceu, que Deus o tenha.
-Gerente - Yago pronunciou o título do cargo como quem testa a palavra.
- Claro que ela conta com funcionários solícitos. É uma equipe muito boa, aliás. Mas creio que Javier anda cansado e sobrecarregado... Javier é o açougueiro. Que lhe parece? - perguntou o velho pescador, fechando a rede. - Acha que dá conta?
-Sinceramente, não sei - respondeu Yago, com honestidade. De repente, coçou a cabeça e olhou para o mar. Estava elucubrando.
- Posso tentar descobrir se é a minha praia. - Yago disse por fim, já sabendo que não era.
- Ótimo, ótimo! Você vai encontrar Eulália no piso superior do supermercado.
Yago paralisou o movimento.
-O senhor disse "supermercado"? O cargo de gerente é para o supermercado?
- Isso mesmo... - O velho o analisou, intrigado. - Por quê?
Yago manteve uma expressão de esfinge. Ou melhor dizendo, de pôquer.
-Nada, não... - respondeu de maneira tranquila. - Acho que vou gostar de trabalhar num supermercado.
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