A Hora do Horror
A luz do dia despedia-se, cedendo aos poucos espaço à noite que sugira, ainda tímida, esperando pelo seu momento de dominar o céu. No horizonte via-se um espetáculo de cores, como em uma pintura: tons de laranja e rosa que desbotavam de maneira suave, dando lugar a um roxo profundo que se derramava sobre o firmamento, como se alguém tivesse derramado tinta de um pincel invisível. O vento fresco primaveril dançava pelo chão, soprando embalagens plásticas, papéis e quaisquer outras coisas que pudesse carregar.
A brisa trouxe certo alívio para o calor que havia reinado durante o dia. Misturando-se a este show da natureza, o barulho de incontáveis vozes enchia o ambiente, um cor vibrante de murmúrios e risadas revelava não só uma ansiedade que podia ser sentida no ar, como se pequenas correntes elétricas passasse ao redor de todo mundo. No horizonte, três amigos encaravam um portão monumental que erguia-se sobre centenas de cabeças — imponente e ameaçador, feito de ferro cinza e adornado com luzes avermelhadas que pulsavam como veias, conferindo à entrada um ar de maldito. No centro, um gigantesco crânio os recebia, observando a todos os visitantes com suas orbes vazias, mas estranhamente penetrantes.
As lâmpadas vermelhas dispostas por todo o caminho, bruxuleavam nas laterais da fila, projetando sombras que dançavam quase que de forma hipnótica, dando a impressão que a própria entrada do labirinto estivesse viva, sussurrando desafios para seus visitantes para penetrassem os portões.
— Uau! Eles capricharam mesmo esse ano! — exclamou Saulo, os olhos brilhavam com um misto de excitação e admiração.
Sem pensar duas vezes, ele sacou o telefone do bolso — um Iphone 13 vermelho que reluzia sob as luzes pulsantes — e apontou a câmera para registrar o cenário ao seu redor. Suas duas amigas, Mari e Yuri, estavam ao seu lado, também impressionadas pela grandiosidade do portão. Mari, à esquerda, tinha cabelos ondulados e castanhos que caíam em cascata sobre seus ombros balançando suavemente com a brisa noturna. Ela vestia uma camiseta preta estampada com a imagem icônica de Sexta-Feira 13, seu filme de slasher favorito. À Yuri, à direita, ostentava um corte Chanel, seus cabelos castanhos avermelhados brilhavam sob as luzes da lamparina. Sua camiseta exibia a figura marcante de Chucky, de O Brinquedo Assassino, com um sorriso diabólico.
— Daora sua camiseta! — comentou um homem mais velho, sorrindo para Saulo enquanto apontava para a figura de Freddy Krueger estampada em sua camisa.
— Ah, valeu! — respondeu Saulo, surpreso e animado. O homem assentiu e voltou sua atenção para sua família, que o acompanhava enquanto avançavam para a entrada do parque.
Saulo focou novamente na câmera, determinado a capturar cada detalhe daquela entrada tão imponente. À sua volta, dezenas de pessoas faziam o mesmo, erguendo seus celulares, criando um show de flashes que se misturavam ao zumbido das vozes ao redor. A inquietação coletiva se intensificava, vibrando no ar como uma energia invisível que parecia envolver cada pessoa presente. Saulo deu um passo à frente, ajustando o enquadramento da câmera, decidido a eternizar aquele momento que, ele sabia, marcaria o início de uma noite inesquecível.
"Bem-vindo aos portões do inferno" — escreveu na legenda das fotos que estava prestes a publicar.
— Você tá aí todo animado agora, quero ver na hora dos sustos! — Yuri comentou, provocando o amigo, ao vê-lo terminar de escrever a legenda para as fotos.
— Igual naquela vez que ele se borrou todo?
— Em minha defesa, eu quis testar meus limites e tinha tomado um grande copo de milkshake, sem contar todo aquele molho cheddar no hambúrguer...
— Tá! Culpa da intolerância à lactose... — disse Mari, desacreditada e com desdém.
— Vou provar pra vocês que não sou tão medroso como pensam! — disse Saulo, estufando o peito. Tirando uma confiança que as meninas sabiam exatamente onde acabaria.
— Eu só acredito vendo — Yuri sussurrou no ouvido de Saulo, causando alguns arrepios.
— Quer apostar?
— Isso vai ser mais divertido do que te ver trancado no banheiro com uma turba de pessoas furiosas querendo entrar! — Mari completou, rindo da desgraça do amigo, enquanto se lembrava do fatídico dia.
À medida que se aproximavam mais da entrada do castelo, o trio podia ouvir os diversos gritos, em sua maioria femininos. Mari e Yuri olharam diretamente para Saulo, que as encarou, como se perguntasse "o que há de errado com elas?". Notaram também a presença de um ou outro funcionário do labirinto, mantendo a ordem da atração. Dentre eles, estava um rapaz magricela, com cabelos ondulados que desciam de sua cabeça como se fossem pequenas serpentes.
Álvaro supervisionava a entrada, colocou-se entre a passagem para o labirinto e o trio de amigos. Saulo e as meninas aguardaram mais um pouco, até verem Diogo, outro funcionário surgir das persianas feitas com veludo de cor cinza. Ele olhou para o colega, depois na direção de Saulo e os outros visitantes.
— Pode mandar os próximos — ordenou o amigo de Álvaro.
Finalmente o trio pôde entrar. Se antes a decoração e as luzes do lado fora impressionaram, ao adentrar o labirinto, não tinha sido muito diferente. Ali dentro, eles não tinham tanta luz, e a iluminação que tinham era graças às poucas luminárias vermelhas. Eles também tiveram que guardar seus telefones, já que era proibido o uso de câmeras ali.
Ao cruzarem o primeiro corredor, se depararam com uma figura alienígena. Saulo achou a maquiagem e a fantasia muito bem-feitas, mas não o suficiente para que levasse um tremendo susto. Mari e Yuri seguiam à sua frente, praticamente coladas uma na outra, fazendo Saulo sorrir ao perceber que talvez estivessem nervosas. Ele pensou na maior vigarice que poderia fazer — repentinamente, soltou um grito tão estridente, que assustou não só as meninas à sua frente, mas algumas outras pessoas ao redor, que protestaram contra a brincadeira do garoto.
— Ha! Quem é o medroso agora? — ele falou, explodindo em gargalhadas, enquanto Yuri, nada contente com a brincadeira, olhou torto para o rapaz e depois deu um soco no peito dele.
— Otário!
— Ih! Qual é, Yuri? Num guenta uma brincadeirinha?
Saulo não disse mais nada, principalmente porque Yuri passou a ignorá-lo completamente. No caminho até o coração do labirinto, cruzaram com várias pessoas fantasiadas — viram de tudo — zumbis, múmias, alienígenas e monstros saídos diretamente de Silent Hill.
Mari foi pega de surpresa por uma figura toda amarrada em uma camisa de força, que urrou de maneira gutural, encarando-a com os olhos vermelhos e diabólicos.
— Falei para não me tocar! — bradou o monstro, a centímetros de distância do rosto da garota.
Saulo riu bastante, e Yuri, já menos arisca desde a brincadeira do amigo, juntou-se às gargalhadas.
— Isso é o melhor que vocês têm?
— É sério, isso é melhor que eles têm? — cochichou para Mari, que lançou lhe um olhar cheio de reprovação.
Mesmo saindo do interior do labirinto, continuavam ouvindo os gritos dos visitantes que se assustavam pelos monstros que passavam por eles. Os três continuaram seu trajeto, iriam para a próxima atração — o labirinto de espelhos.
Um ator fantasiado de monstro, aproximou-se da multidão que ia em direção às outras atrações, muitas pessoas mostravam-se surpresas com a maquiagem, outras vertiam o olhar, pois parecia nojento demais olhar para as vísceras que escapavam de seu corpo e o sangue que sujava suas calças.
— Que maquiagem e efeitos sinistros! — Yuri elogiou, aproximando-se do ator, que tinha olhos lacrimejantes, completamente assustados.
— Me ajudem! — falou vacilante, a voz morrendo em sua garganta.
O ator deu mais alguns passos, trombando em Saulo, que ainda estava vislumbrado com o quão real tudo aquilo parecia. Pelo menos até ele cair a seus pés.
Inerte.
Houve um breve silêncio, como se todos esperassem que o ator se levantasse e gritasse, assustando a todos. Só que ele nunca se levantou, o susto nunca veio, pelo menos não o que eles esperavam.
Mari se ajoelhou e tocou no homem fantasiado. Ele estava rígido, uma estranha poça gosmenta se formava debaixo dele.
— Gente, acho que isso... não faz parte do show! — Mari levantou-se realmente assustada, com as mãos sujas e grudentas.
Tudo aconteceu muito rápido. Os outros visitantes que saíam aos poucos do labirinto, formavam uma corrente de pessoas ao redor do tiro. Saulo e as meninas entreolharam-se, depois fitaram o corpo aos pés. Então, voltaram seus olhares para o restante da multidão, seus corações batendo acelerados, e como se pudessem se comunicar por telepatia, em silêncio, anuíram, compreendendo a gravidade da situação.
Os gritos continuavam, pareciam fazer parte do lugar — ouvia-se eles por todo canto. Saulo olhou na direção em que o ator veio, notou que as pessoas corriam de um lado para o outro, mas sem motivo aparente. Tudo o que via eram monstros e visitantes espalhando-se pelo parque. E sem aviso algum, vieram os empurrões e as pessoas começaram a correr.
Em pânico, as pessoas no labirinto tentavam desesperadamente fugir por onde haviam entrado, empurrando uns aos outros e separando Saulo e suas amigas no caos. Gritos de pânico se misturavam ao som de pés tropeçando, criando uma cacofonia ensurdecedora que parecia aumentar a cada segundo.
Álvaro, na outra entrada do labirinto, tentava sem sucesso algum, acalmar os visitantes em pânico. Ele gesticulava e gritava instruções que se perdiam no tumulto, enquanto outros colegas lutavam para conter a multidão desgovernada.
— Por favor, não corram! É perigoso! — insistia Álvaro, mas ninguém o ouvia. Ele olhou para Diogo, que segurava o braço de um adolescente assustado para evitar que ele fosse derrubado. — O que está acontecendo? Isso é parte do show, não é? — Álvaro perguntou, a voz carregada de dúvida.
O colega, pálido e visivelmente abalado, apenas balançou a cabeça negativamente. Antes que Álvaro pudesse reagir, um urro profundo ecoou pelo labirinto, um som tão primal que fez sua espinha gelar e os cabelos da nuca se arrepiarem. Ele trocou um olhar com Diogo, ambos com o mesmo pensamento aterrorizante: aquilo não era parte da atração.
Mari, separada de seus amigos, vagava em meio ao labirinto como uma folha à mercê de uma tempestade. Seu coração martelava no peito, e ela tentava conter as lágrimas que embaçavam sua visão. As vozes de pânico ao redor pareciam distantes, abafadas pelo som de suas próprias respirações ofegantes. Ela olhava freneticamente para os corredores à sua volta, buscando uma saída ou um rosto familiar, mas tudo o que encontrou foi mais confusão.
Os atores fantasiados já não davam mais tanto medo e ver tantas pessoas fugirem amedrontadas fez com que ficassem confusos com o que estava acontecendo.
— Saulo... Yuri... — Mari berrava, na esperança de ouvirem-na e reencontrarem-se.
Ela encontrou Kelly, uma funcionária do parque, que ajudava uma outra menina a sair do labirinto.
— Ei, moça!
— Tá tudo bem? No que posso te ajudar?
— Na confusão eu me perdi dos meus amigos, preciso de ajuda para achá-los.
— Tá! Primeiro vou levar essa menina até um posto aqui próximo...— Kelly pausou por um instante, tentava organizar os pensamentos. Nunca passou por uma situação como aquela. — e... você pode nos acompanhar.
— Ah, claro! — disse Mari assustada, olhando para os lados.
O interior do labirinto que até minutos atrás estava tão barulhento, agora parecia quase silencioso, podendo escutar os gritos dos visitantes distante, guiando-as na direção em que deveriam seguir.
— O que aconteceu? — Kelly sussurrou, não queria que a garotinha as escutasse.
— Eu não sei, tudo o que me lembro foi de um dos atores do parque vir até a gente, ele parecia só mais um dos monstros assustadores, mas tinha algo de errado...
— Como assim?
— Ele estava ferido... alguma coisa abriu a barriga dele...
— Que? Como assim?
— Eu...
A conversa foi subitamente interrompida, Mari olhou para trás e foi então que ela o viu. Entre os estreitos corredores iluminados por luzes fracas, uma sombra imensa e bestial emergiu. Era um animal quadrúpede, mas havia algo de grotescamente humano em sua postura. As patas dianteiras pareciam mais braços longos, deformados e cobertos de pêlos. O dorso da criatura era adornado por pêlos eriçados que se assemelhavam a espinhos, e o focinho, longo e afilado como o de um lobo, exibindo os dentes afiados, cada um do tamanho de uma pequena lâmina. Os olhos brilhavam com um vermelho predatório, varrendo o ambiente em busca de sua próxima presa.
O chão tremeu sob as passadas pesadas da criatura, e as garras arranhavam o concreto, produzindo um som que fez com que Mari olhasse para Kelly e depois para a menina, e então se encolhesse instintivamente. Agora, com as costas contra a parede, levou a mão à boca para abafar os soluços que ameaçavam escapar. Não podia chamar a atenção.
A menina que estava com elas começou a chorar, seus soluços chamaram atenção do monstro que caminhava na direção do som delas. Kelly colocou a mão na boca da garota, em seguida, olhou para Mari que estava visivelmente abalada.
— Não façam barulho! — ordenou, primeiro olhando para a garotinha e depois para Mari, que anuiu em concordância.
Vagarosamente, Mari começou a se arrastar para longe, a aspereza do concreto, ferindo suas costas. O tecido de sua calça rasgou, e uma ardência percorreu sua pele, mas ela mal registrou a dor — o medo era muito maior. Quando a sombra do monstro se ergueu sobre duas patas, prensando alguma alma infeliz contra a parede, ela congelou. O som de ossos quebrando e carne sendo rasgada era nauseante, e ela virou o rosto, incapaz de assistir à cena.
— Pai nosso que estais no céu... — começou a murmurar, a voz tremendo enquanto os pés moviam-se automaticamente para longe do horror.
— Vamos! Você quer ser a próxima? — Kelly a repreendeu entre sussurros.
A criatura parecia distraída com sua vítima, e o trio aproveitou para se afastar, um passo hesitante de cada vez. Kelly forçava a menininha a se mover, empurrando seu corpo contra o dela, ainda com a mão sobre a boca dela. Já Mari, de tempos em tempos, olhava para trás para ter certeza de que aquela coisa não as estavam seguindo.
Quando dobraram o próximo corredor, sentiram esperança de conseguiriam escapar, mas o som de passos pesados atrás delas fez com que seus corações congelassem por um instante. Estavam sendo seguidas. As pernas fraquejaram, e Mari quase caiu de joelhos, sendo amparada pelo braço forte de Kelly, que a impediu de ir ao chão. Em surto de adrenalina e medo, Mari se pôs a correr com tudo o que tinha.
A funcionária e a garotinha não tiveram outra alternativa, senão fazer o mesmo. Os corredores do labirinto pareciam infinitos, cada curva revelando apenas mais escuridão. Mari ouvia o som das patas da criatura batendo contra o chão, um galope que se aproximava rápido demais. O monstro rugiu e o som reverberou por todo o labirinto.
Desesperada, olhou para trás, a funcionária e a menina ainda a seguiam, no entanto, a sombra do monstro parecia aproximar-se ainda mais. O coração batia desenfreado, de repente, Mari pôde ouvir os gritos de Kelly e a da menina, seguido de um som abafado de uma pancada contra a parede que ecoou pelo labirinto, e um último grito da menininha, antes de ser tomado pelo completo silêncio.
Ela ousou olhar para trás uma vez mais, apenas para se deparar com a cena de um enorme cão de pelagem escura, abocanhar a cabeça da garotinha e arrancá-la numa única mordida. Mari gritou, os olhos desaguando.
Ela até tentou correr, mas antes que pudesse colocar alguma distância entre elas, a criatura saltou, aterrizando sobre si. As garras afiadas cravaram-se em seu ombro, e o peso da besta a lançou ao chão. O impacto fez seu rosto bater no concreto, o gosto metálico de sangue misturado ao salgado das lágrimas invadindo sua boca. Mari tentou se levantar, mas o monstro era rápido demais. Em um movimento brutal, suas presas afundaram na carne de seu ombro e pescoço, arrancando um grito de dor que ecoou pelos corredores.
O mundo ao redor começou a perder o foco. O som dos gritos e dos passos tornou-se distante, abafado. A visão de Mari começou a escurecer, e ela sentiu o corpo ficando mais leve, como se estivesse sendo carregada por uma onda de alívio desesperado. No último instante, antes de ceder completamente à escuridão, suas últimas palavras escaparam de seus lábios ensanguentados:
— Saulo, Yuri...
Então, tudo desapareceu.
Yuri foi praticamente arrastada para o interior do labirinto. O pânico dos visitantes tinha se espalhado como fogo, e em questão de minutos, acabou separada dos amigos. Houve gritos, empurrões, cotoveladas — ela tropeçou, levou pisões nos pés e sentiu uma dor aguda de um arranhão no braço ao ser jogada contra uma das paredes do labirinto. O cheiro de suor e terror impregnava o ar, e por um breve momento, o calor dos corpos que a empurravam parecia sufocante.
Então, tudo parou.
Momentos atrás, o lugar estava tomado por vozes assustadas, mas elas se dissolveram, substituídas por um silêncio opressor. Agora estava sozinha. Nenhum sinal de Saulo. Nenhum sinal de Mari. Nenhum sinal de qualquer outra pessoa.
A não ser daquela coisa.
Ela esfregou o braço machucado, tentando ignorar a ardência. A respiração estava entrecortada, escapando de seus lábios trêmulos enquanto tentava organizar os pensamentos. Onde seus amigos estavam? Para onde correram? A única certeza que tinha era de que havia escutado um grito. Talvez de Mari? Coincidentemente, a voz assemelhava-se à de sua amiga.
O medo subiu por sua espinha, gélido como mãos invisíveis segurando sua nuca. O silêncio parecia errado, profundo demais para um parque de diversões que até minutos atrás estava lotado.
E então, o som de mastigação rompeu a quietude.
Molhado. Pegajoso. Voraz.
O estômago de Yuri revirou. Era algo grande. Algo que não se preocupava em esconder o que fazia. Cada mastigação estalava no ar, acompanhada por um ruído úmido, como se pedaços estivessem sendo arrancados com brutalidade.
Ela engoliu em seco. E se fosse a Mari?
O coração queria romper suas costelas, cada batida mais forte que a anterior. Cada passo que dava, sentia que poderia ser seu último. A dúvida cruel sobre se mexer ou ficar parada a aterrorizava. Se ficasse ali, seria questão de tempo até aquela coisa encontrá-la.
Tentando acalmar os dedos trêmulos, puxou o celular do bolso. A tela iluminou seu rosto suado, e as notificações pipocaram diante de seus olhos: nenhuma mensagem de seus amigos. Apenas curtidas na foto que Saulo havia postado minutos antes. Como se aquilo importasse agora.
Ela abriu a conversa com ele e digitou depressa:
"Onde você tá? Na confusão acabei voltando pro labirinto..."
Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, apertou o botão de enviar sem querer.
E algo mudou.
Passos.
Não eram humanos. Eram pesados, irregulares, acompanhados por uma respiração gutural, como se algo estivesse farejando o ar.
Yuri congelou. O silêncio ficou mais profundo, como se o próprio espaço entre as paredes do labirinto prendesse o fôlego junto com ela. Ele sabia que ela estava ali. O que poderia fazer? Que chance teria?
O som dos passos aumentou. A criatura estava se aproximando.
Yuri tomou uma decisão rápida. Com as mãos tremendo, abriu um aplicativo de vídeos. Qualquer coisa. Qualquer som.
Havia um podcast inacabado. Perfeito.
Aumentou o volume no máximo e atirou o celular no chão do corredor, bem à frente do próximo cruzamento.
Um segundo de silêncio.
Então, a voz casual do apresentador ecoou pelo labirinto:
"E foi aí que ele percebeu... que não estava sozinho..."
Um uivo respondeu.
Longo.
Sofrido.
Faminto.
O som dos passos hesitou. Depois, retomaram—mas agora corriam.
Na direção do celular.
Era a chance dela.
Yuri se virou e disparou pelo corredor estreito, os pulmões queimando, os pés quase tropeçando no chão irregular. O labirinto parecia se estender infinitamente, cada curva um beco sem saída, cada sombra uma ameaça. O suor escorria por sua testa, seu corpo todo tremia de exaustão e adrenalina. Mas a necessidade de escapar era maior.
Atrás dela, um estrondo.
A criatura havia atingido algo. O barulho do podcast foi interrompido abruptamente, seguido de um grunhido enfurecido.
O cheiro de pipoca e comida de parque invadiu suas narinas quando finalmente avistou a saída.
Atirou-se para fora do labirinto e quase caiu de joelhos, mas mãos firmes a seguraram pelos ombros.
— Uou... uou... — disse um homem, a confusão estampada no rosto.
Yuri arfava, olhos arregalados, suada e trêmula.
— Ele tá aqui — sussurrou, sem fôlego. — A coisa... A coisa que atacou o ator vestido de monstro...
O homem franziu a testa.
— Do que você tá falando?
Ela segurou seus braços com força.
— Não entra lá. Tem um monstro de verdade no labirinto.
Ele riu, ainda confuso.
— Mas o parque tá cheio de monstros? É a Hora do Horror, lembra?
— Eu sei disso! — O desespero explodiu em sua voz. — Mas esse não faz parte do show.
Então, antes que ele pudesse responder, um som aterrador veio de dentro do labirinto. Algo esmagando o celular contra o chão. A tela piscou uma última vez antes do vidro rachar. O podcast silenciou.
Os dois ouviram um rugido feroz, carregado de fúria. Yuri não queria se virar.
O homem olhou para ela com uma expressão estranha, confusa — ou talvez assustada demais para processar o que estava acontecendo. O som de passos pesados se aproximava, reverberando contra as paredes do labirinto. No interior escuro, olhos vermelhos e malignos brilharam na penumbra. A criatura se movia, emergindo da escuridão.
O homem nem deu chance para Yuri reagir. Num movimento instintivo, girou sobre os calcanhares e disparou na direção contrária.
— Ei! — Yuri gritou, mas sua voz se perdeu no rugido ensurdecedor que rasgou o ar.
A fera avançou. Os dentes enormes, amarelados e sujos de sangue se revelaram quando sua boca se abriu em um esgar de pura selvageria. Cada passo era um impacto brutal no chão, cada galope diminuía a distância entre predador e presa.
Yuri não pensou. Apenas correu.
Suas pernas queimavam, os pulmões imploravam por ar, mas ela ignorou tudo. O homem estava à sua frente, correndo desesperado, e quando olhou para trás, percebeu que Yuri ainda estava ali. Ele estendeu a mão para ela.
— Pegue!
Ela tentou alcançar.
O toque foi breve, a conexão fugaz entre suas mãos suadas. Por um instante, um lampejo de esperança brilhou nos olhos de Yuri. Mas então, algo mudou.
O homem olhou diretamente para ela. Sorriu.
— Precisamos de um plano! — ele gritou, a voz carregada de uma animação inesperada.
— Sou todo ouvidos! — Yuri arfou, tentando ignorar o medo rasgando sua garganta.
Os olhos dele brilharam. Uma ideia. Uma chance.
Yuri percebeu tarde demais.
O golpe foi certeiro, um empurrão brutal contra seu ombro. Seu corpo tombou para trás, os pés falharam, e o impacto com o chão veio como um choque elétrico, arrancando o ar de seus pulmões.
A dor explodiu em suas costas e braços, mas o pavor foi mais forte. Ela piscou, atordoada, e viu a silhueta do homem hesitando por um breve segundo diante da cabine do carrossel.
Ele sorriu.
Um sorriso satisfeito.
— Alguém precisa distrair a fera, não é?
Yuri engoliu em seco, o terror petrificando seus músculos.
Ele fechou a porta de ferro. O ranger metálico ecoou, e antes que Yuri pudesse se arrastar para frente, um som oco reverberou: clack.
A fechadura foi trancada por dentro.
— Não... não, não, não! — Ela correu para a janela, o punho socando a superfície fria do vidro. — SEU DESGRAÇADO!
O homem desapareceu lá dentro, ficou escondido embaixo da mesa de operação do brinquedo.
Atrás dela, uma sombra colossal se ergueu. Ela viu o monstro pelo reflexo do vidro.
O ar ficou pesado, carregado com um cheiro nauseante de carne podre e sangue seco.
E então, a mastigação recomeçou.
Molhada. Pegajosa. Voraz.
Ao ouvirem os primeiros urros infernais — uma mistura grotesca de grito animal e lamento humano — Álvaro e Diogo correram sem olhar para trás. O instinto primitivo de sobrevivência os dominou, e o labirinto, agora uma sombra ameaçadora atrás deles, parecia prestes a engolir o parque inteiro. Os gritos das pessoas, tão desesperados quanto os urros, ecoavam como reflexos do próprio medo que contaminava a multidão.
Espero que Kelly esteja bem, pensou Álvaro, o coração apertado. Sabia que a colega ainda estava no interior do labirinto quando toda aquela confusão começou, sem qualquer aviso de que algo tão absurdo estava prestes a acontecer. A ideia de deixá-la para trás o atormentava, dividindo-o entre culpa e terror.
Ao redor, tudo era caos. Pessoas chorando, abraçadas, confusas. Dezenas, talvez centenas, sem entender o que estava acontecendo. A única certeza era o medo, palpável e quase sobrenatural, que se espalhava como um veneno. Algo muito sinistro rondava aquele parque.
Álvaro foi o primeiro a diminuir a velocidade. Seu peito subia e descia freneticamente, as pernas fraquejando, ora pelo cansaço, ora pelo pânico. Diogo parou alguns metros à frente, ofegante, e virou-se para o amigo.
— Vamos dar o fora daqui — sugeriu Álvaro, a voz firme, mas carregada de ansiedade.
— O que você acha que aconteceu? — perguntou Diogo, ainda tentando recuperar o fôlego.
— Não faço ideia. Mas tenho certeza de que nenhum dos nossos atores faria um som daqueles. Aquilo foi... estranho demais. — Álvaro hesitou. A ideia de monstros parecia absurda, mas nada fazia sentido.
— Credo, Álvaro! Isso me lembra das histórias que meu avô contava quando eu era piá...
— Pelo amor de Deus, Diogo, para com isso. — Álvaro tentou soar firme, mas a irritação só servia para mascarar seu próprio desconforto.
— Vai me dizer que você não pensa na possibilidade?
— Claro que não! Deve ser só algum lunático... E monstros não existem! — retorquiu Álvaro, mais ríspido do que pretendia.
— Tá, mas...
Antes que pudesse continuar, uma voz os chamou.
— Álvaro! Diogo!
Era Pedrão, um dos seguranças do parque. Ele surgiu de um aglomerado de pessoas, parecendo mais calmo do que a situação permitia. Essa tranquilidade sempre fora admirada pelos dois, mas, naquela noite, até mesmo Pedrão parecia carregado de tensão.
— Vocês estavam no labirinto? O que tá acontecendo lá? — perguntou ele, direto.
— Se você descobrir, me avisa... — respondeu Álvaro, exasperado. — As pessoas simplesmente enlouqueceram do nada.
— Tô te falando, Álvaro, isso não foi "do nada". Meu avô sempre falou sobre...
— Cala a boca, Diogo. — Álvaro desviou o olhar para Pedrão. — Só sei que começou com gritos e correria. Alguém pode ter se machucado, mas...
Antes que pudesse terminar, duas figuras surgiram, aproximando-se a passos rápidos. Eram Léo e Ísis, dois dos funcionários mais respeitados — e misteriosos — do parque. Léo, alto e robusto, mantinha uma expressão impenetrável, enquanto seus olhos vasculhavam a cena como se procurassem respostas. Ísis, ao seu lado, exibia uma postura igualmente confiante, com olhos atentos e uma calma que parecia inabalável.
— O que vocês estão fazendo aqui? — Ísis perguntou, alternando o olhar entre Álvaro e Diogo.
— Eles estavam no labirinto — explicou Pedrão.
— E o que vocês viram? — insistiu Léo, a voz grave, porém sem pressa.
Diogo respirou fundo.
— Não sabemos. Só ouvimos gritos, urros... seja lá o que for, não é normal.
Léo e Ísis trocaram um olhar breve, mas carregado de significado.
— Escutem. O labirinto foi fechado, e precisamos organizar a evacuação do parque — informou Léo, com uma calma que parecia ensaiada. — Pedrão, consegue ficar aqui e acalmar a multidão enquanto verificamos o perímetro?
— Vocês vão entrar lá? — Diogo arregalou os olhos. — Vocês são malucos?
Álvaro lançou um olhar aflito para o amigo.
— A Kelly ainda pode estar lá... — murmurou ele, a culpa misturada com o medo em sua voz.
Diogo hesitou antes de responder, mas Ísis interveio antes que ele pudesse dizer algo.
— Mais um motivo para precisarmos verificar. Não vamos deixar ninguém para trás — disse Ísis, com um sorriso breve e tranquilizador que, embora pequeno, parecia carregar uma força inesperada.
— Vocês cuidem disso aqui — acrescentou Léo, dando um tapinha firme no ombro de Pedrão. — Nós damos conta do resto.
Sem mais palavras, Ísis ajeitou o rádio no cinto e sinalizou para Léo. Ambos desapareceram na direção do labirinto, avançando como se estivessem habituados a enfrentar o desconhecido.
— Corajosos pra caramba... ou malucos — murmurou Diogo, cruzando os braços.
Enquanto os dois desapareciam na penumbra, um arrepio percorreu a espinha de Diogo. Ele não sabia o que era mais assustador: o que quer que estivesse escondido no labirinto ou a estranha calma de Léo e Ísis ao encará-lo.
Pedrão e os outros seguranças, com a ajuda de Álvaro e Diogo, conseguiram afastar boa parte dos visitantes das proximidades do labirinto. Léo, sempre atento, mantinha o olhar fixo em qualquer sinal de feridos, enquanto Isis, de pé ao seu lado, olhava para seu telefone, examinando com precisão o mapa do parque.
— Nosso equipamento deve estar próximo à Casa dos Espelhos — Léo comentou, aproximando-se de Isis e espiando sua tela.
— Eu sei, deveria ter deixado mais algumas bolsas deste lado do parque — Isis respondeu, sua voz tingida por um amargor que parecia se expandir dentro de si.
— Desta vez o maldito não vai escapar da gente — Léo declarou, com uma confiança feroz que, no entanto, não apagava a tensão no ar.
À frente deles, o labirinto parecia, à primeira vista, apenas mais uma das atrações turísticas do parque. Mas a sensação que eles compartilhavam era clara: aquele lugar era um campo perfeito para uma emboscada. Nada fazia sentido ali, a não ser o vazio carregado de presságios.
Léo deslizou sua mão até a faca presa em sua perna, enquanto Isis fez o mesmo com a pistola acoplada à sua perna esquerda. Um silêncio tenso pairou entre eles, quebrado apenas pelo som suave de seus movimentos.
Isis olhou para Léo, e algo estranho se fez presente em seu olhar. Uma excitação, misturada com a ansiedade. A missão que os aguardava estava prestes a testar seus limites.
— E então? — Ela perguntou, a voz grave, com um toque de expectativa.
— Definitivamente, ele esteve aqui — Léo respondeu, os olhos fixos em um ponto além da escuridão, onde sombras se moviam como se estivessem vivas. O silêncio que os cercava estava impregnado com os lamentos daqueles que já haviam caído. Vítimas do monstro que eles estavam caçando, que somente Léo era capaz de as escutar.
— Mais um motivo para tomarmos mais cuidado — Isis murmurou, entregando sua pistola a Léo com um gesto firme.
— E você? — Léo questionou, surpreso.
— Eu me cuido. Passa sua faca pra cá. — O tom de sua voz não deixava espaço para discussões.
Eles avançaram, ambos habituados a cenários como aquele, mas ainda assim não conseguiam controlar a adrenalina que se espalhava por seus corpos. A escuridão parecia envolver tudo à sua volta, fazendo com que cada movimento se tornasse mais audacioso e mais perigoso.
Isis, com os olhos ajustados à penumbra, vasculhava os cantos do labirinto com atenção implacável. A lâmina em suas mãos estava pronta, como uma extensão de sua vontade. O silêncio era pesado, mas de repente, algo quebraria essa calmaria.
Um grito à distância, cortando o ar.
— Mari... Yuri?! — Saulo chamou, sua voz trêmula, enquanto ele se afastava, olhando freneticamente para todos os lados. O telefone em suas mãos tremia com o pânico crescente.
Ele estava perdido. Em um momento, estivera com Yuri, apegado à sua mão, e no instante seguinte, encontrava-se sozinho, longe de onde pensava estar. A pressão do lugar parecia sufocá-lo, e ele lutava contra o medo crescente, sem entender o que estava acontecendo.
Saulo olhou ao redor, seus olhos piscando com desespero. Onde estavam Yuri e Mari? Ele não sabia, mas seu olhar se fixou nas sombras. Algo não estava certo. O que eram aquelas silhuetas? Ele piscou, tentando processar, mas a realidade parecia se distorcer diante dele.
Sua lanterna iluminou o que parecia ser... cadáveres? Pessoas mortas de verdade? A visão o fez paralisar, o medo subindo como uma onda gelada. A luz da lanterna revelou corpos com gargantas dilaceradas e troncos partidos ao meio. Algo insano e maligno havia atacado aquelas pessoas.
O brilho da lanterna encontrou um pé — um tênis familiar. O ar se agarrou à sua garganta, e seu
O coração deu um salto. A luz continuou, mais forte, até iluminar o rosto. Saulo sentiu uma dor aguda nos olhos ao perceber o que estava diante dele. Suas mãos tremiam, incapazes de segurar o telefone corretamente. Ele fechou os olhos, murmurando para si mesmo que tudo ficaria bem, que ele encontraria suas amigas. Mas quando abriu os olhos novamente, o pânico se instalou de vez.
Ali estava Mari. O buraco no pescoço e no peito. A vida escorreu de seu corpo. O telefone caiu de suas mãos, o choro rompia como um rio furioso. Saulo não conseguia se afastar, mas seus pés começavam a se mover involuntariamente, afastando-se para trás. Ele não sabia o que estava fazendo, não sabia o que tocava seu corpo.
O pânico o paralisou. Um som. Algo o tocou no ombro. A respiração dele parou por um instante. Ele não queria olhar. Não queria. Mas não teve escolha. Quando finalmente virou, o grito se formou na garganta, mas não teve chance de sair.
Saulo sobressaltou-se ao sentir o toque de alguém em seu ombro. Por um instante, acreditou que seria o fim, que aquelas pessoas poderiam dar-lhe o mesmo destino de Mari, mas logo se aliviou ao perceber que se tratava de dois seguranças do parque. Contudo, a sensação de desconforto permaneceu. O olhar de Saulo fixou-se na pistola empunhada pelo homem, enquanto sua companheira escondia uma faca em seu cinto, logo abaixo das costas.
— Vocês precisam me ajudar — disse Saulo, desesperado, com os olhos cheios de lágrimas, a voz trêmula.
Léo, sem dizer uma palavra, apontou sua lanterna para os corpos caídos de sua amiga e dos outros dois ao lado dela. Aquelas garotas nunca tiveram uma chance de sair dali com vida. O caçador não conseguia desviar os olhos da garota ao lado do rapaz. Mari parecia chorar copiosamente, mas nem Isis, nem o menino conseguiam notar a dor que ela sentia.
Ele também percebeu que, ao lado da garota com a camiseta de Sexta-Feira 13, estava Kelly, colega de Álvaro, e uma menininha.
— Vamos, temos uma fera para encontrar — Isis ordenou, com um tom gélido, que fez Saulo arrepiar.
— Por favor, me ajudem a encontrar a minha amiga, Yuri... — pediu, segurando o braço de Léo com força. Seus dedos estavam úmidos de suor, mas sua expressão era de pura súplica. — Ela ainda está por aí...
— Se sua amiga for esperta, ficará bem longe daqui... — Ísis respondeu, os olhos fixos no horizonte sombrio.
— Isis....
— O que foi? — Isis virou-se para Léo com impaciência.
— Ele é só um garoto... — Léo disse, a voz carregada de uma súbita suavidade.
— O que quer que a gente faça? — Isis cortou com frieza.
— Eu prometo, não vou atrapalhar, mas por favor, não deixem minha amiga por aí. Eu... eu não posso. — Saulo ajoelhou-se, segurando a perna de Isis, mas ela simplesmente revirou os olhos, sem demonstrar compaixão.
— Vamos primeiro sair daqui... somos presas fáceis aqui dentro. — Léo observou as estreitas paredes ao redor, ainda desconfiado.
Isis concordou em silêncio. Ela sabia que estavam em perigo naquele labirinto, e a fera poderia atacar a qualquer momento. Mas o que mais a inquietava era o silêncio. Não se ouvia mais o som dos gritos e urros da criatura. Teria escapado?
O trio começou a se afastar, Saulo ainda soluçando baixinho, perdido em seu próprio medo e culpa. Quando chegaram ao local onde Saulo encontrara o ator ferido minutos atrás, o cenário os chocou. O ambiente estava impregnado com o cheiro de morte. O corpo de Saulo tremeu de horror enquanto ele vomitava, e ao olhar para os corpos mutilados ao redor, um choro silencioso começou a escorrer por sua face.
Léo, atento, notou algo estranho. Ele olhou para o garoto com mais intensidade e, com uma preocupação crescente, pediu para que Isis observasse sua camiseta.
— Você se feriu? — Léo perguntou, o tom inquisitivo suavizado por um toque de compaixão.
— Não... esse sangue não é meu... — a voz de Saulo estava quase inaudível, um sussurro de desespero.
Isis e Léo se entreolharam, seus olhares se cruzando em uma troca silenciosa de preocupações. Algo não estava certo.
Sem hesitar, Ísis tomou a pistola da mão de Léo, mirando diretamente em Saulo, que congelou, os olhos arregalados de pavor.
— Ei, por que estão fazendo isso? — a voz de Saulo subiu em um tom agudo, tentando compreender a súbita hostilidade.
— De quem é esse sangue? — Isis perguntou, o dedo no gatilho, a tensão no ar palpável.
— É dele — Saulo apontou para o ator caído. — Ele esbarrou em mim, depois caiu. Achamos que ele se levantaria e nos daria um baita susto, só que não, ele não se levantou. Ele tava morto. Depois, as pessoas começaram a correr, empurrando umas às outras... alguma coisa entrou no parque. Algo... algo animal...
— Quem mais estava com você? — Isis perguntou, o tom desafiador, uma ameaça clara em sua voz. — E nem pense em mentir pra mim ou sua aventura acaba aqui.
— Minhas amigas... a gente se separou no labirinto quando a confusão começou... — Saulo explicou, sua voz tremendo, o choro de desespero tornando-se mais agudo. — Eu juro, elas estavam lá... uma delas, Mari, ela está...
Léo podia ver nitidamente que Saulo não mentia, afinal, ao lado dele estava sua amiga Mari, seguindo-os.
— Vocês precisam acreditar em mim!
— Por favor, ele não fez nada. — Léo escutou Mari lamuriar.
Antes que pudesse terminar, um grito cortou o ar, seguido de um uivo distante, que fez todos se calarem instantaneamente. O som gelado pareceu atravessar suas almas.
— Aquilo foi um... — Saulo sussurrou, seus olhos arregalados.
— Lobisomem. — Isis murmurou, a expressão sombria, a mão firme na pistola.
Outro grito rompeu a escuridão da noite, ecoando como um trovão. Saulo reconheceu imediatamente a voz — era Yuri. Sem hesitar, o garoto disparou na direção do som, o coração martelando no peito enquanto ele próprio gritava:
— Yuri! Yuri!
— E que ideia brilhante você teve, hein?! — Ísis resmungou, os olhos atentos acompanhando a corrida desesperada do garoto. Agora, ele também estava em perigo.
— Vai atrás dele. Eu busco a bolsa na Casa dos Espelhos — ordenou Léo, já se movendo na direção oposta.
Ísis não perdeu tempo. Apertou o passo, a arma em punho, e seus olhos varreram as sombras traiçoeiras ao redor. Ela praguejava baixinho, uma corrente de irritação misturada com apreensão:
— Como eu detesto adolescentes!
Determinada, ela correu a todo custo para alcançar Saulo. Quando finalmente o encontrou, o garoto estava estático, como uma estátua esculpida pelo medo. À frente dele, uma visão aterrorizante — o lobisomem. Ele devorava Yuri com ferocidade.
Saulo ficou paralisado, tinha perdido não só sua amiga Mari, mas agora, Yuri. Se ele voltasse para casa naquela noite, certamente voltaria sem as amigas.
— Ei! — gritou Ísis, balançando os braços, tentando atrair a atenção da fera.
A enorme besta virou sua cabeça na direção de Ísis e Saulo, as enormes presas amostra, o sangue quente e viscoso escorrendo pelo queixo peludo. A criatura rugiu para a dupla, virou-se na direção deles e disparou na direção dos dois. Sob quatro patadas, seus músculos ondulando sob a pele acinzentada, e Saulo teve a certeza de que aquilo era uma visão saída diretamente do inferno.
Com a luz do parque incidindo sobre ele, Saulo e Ísis puderam medir a real dimensão da ameaça. O lobisomem tinha quase o tamanho de um jovem cavalo, seus braços, desproporcionalmente longos e incrivelmente fortes, pareciam os de um homem grotescamente deformado. De seus dedos, garras enormes e afiadas rasgavam o ar e arranhavam o cimento com um som arrepiante. Cada passo pesado fazia o chão parecer vibrar.
Os olhos da criatura, grandes e flamejantes como carvões em brasa, se fixaram na caçadora. Ísis, agora à frente de Saulo, ergueu a arma e mirou firme. Sua voz soou como um comando irrefutável:
— Corra daqui!
Ela disparou. O tiro atingiu o ombro esquerdo do lobisomem, mas, ao invés de recuar, a criatura soltou um uivo gutural que reverberou pelo parque, como um aviso de pura fúria.
— AGORA! — Ísis gritou novamente, insistindo.
Ela praguejou entre dentes ao perceber que havia acertado o tiro, mas ele não teve o efeito esperado. Ísis nunca errava, nem mesmo sob a pressão mais extrema.
— Vem cá, Totó! Vamo ver se tu é brabo mesmo! — provocou, mantendo a mira firme.
Mais disparos ecoaram na noite, atingindo a besta colossal. Mas, longe de intimidá-la, isso apenas pareceu enfurecê-la ainda mais. O lobisomem continuou avançando a galope em sua direção. Com suas pernas traseiras poderosas saltou, parecendo uma sombra monstruosa engolindo o céu.
Ísis conseguiu esquivar-se da investida por pouco, rolando para o lado e disparando mais dois tiros em pleno movimento. O confronto era brutal, e a caçadora sabia que tinha pouco tempo.
Saulo corria sem rumo, como folha levada por uma ventania, movido apenas pelo impulso desesperado de fugir. O medo parecia grudar em suas costas, pesado como uma capa molhada, enquanto seus olhos vasculhavam o parque em busca de alguma saída. Foi então que avistou o labirinto dos espelhos.
A estrutura reluzia fracamente sob a luz mortiça, como um predador aguardando suas presas. Era perigoso, mas não havia escolha: ou se arriscava ali, ou ficava à mercê da fera.
— Droga! Ela precisa de ajuda, se não todos vamos morrer! — Saulo disse para si mesmo, querendo vencer o medo que o dominava, mas suas pernas tremiam e ele mal conseguia sair do lugar.
Tudo ficou repentinamente silencioso, o som dos tiros havia cessado, deixando apenas a sensação de que até mesmo o parque prendia a respiração com eles. Foi quando um uivo assustador rasgou aquele longo silêncio. O som era tão profundo e feroz que parecia vibrar no ar, como o lamento de uma força selvagem que não poderia ser contida.
Saulo não hesitou ao ver a criatura investindo contra ele. O medo foi ofuscado por um único instinto: sobreviver. Seu coração martelava enquanto ele se lançava no labirinto de espelhos. Os pulmões queimavam com a corrida frenética.
Atrás dele, um rugido bestial rasgou o ar, alto e apavorante. O lobisomem se aproximava.
O som dos passos de Saulo ecoava pelas passagens estreitas, misturado ao pulsar vermelho das luzes. Reflexos infinitos distorciam sua imagem nos espelhos, criando um pesadelo claustrofóbico. Ele não podia se dar ao luxo de perder a calma.
Outro rugido. Mais próximo.
Os espelhos vibraram. O rugido reverberou pelo corredor, arrepiando sua espinha. O estrondo de vidro se estilhaçando cortou o silêncio. O lobisomem não buscava uma saída. Ele abria caminho à força.
Engolindo em seco, Saulo continuou, tropeçando e esbarrando nos espelhos como um rato encurralado. O suor empapava seu corpo, escorria pelas têmporas, costas e pernas. Cada esquina errada alimentava sua frustração. Ele não podia parar.
— Droga, droga, droga... — gritou, quase sem fôlego.
Outro vidro estourou à sua esquerda. O lobisomem estava dentro do labirinto. O medo apertou seu estômago. Ele tentou controlar a respiração, mas era impossível. Cada ofego parecia um convite ao monstro.
De repente, uma voz abafada soou de um dos corredores:
— Por aqui!
Ele virou a cabeça e viu Léo, o parceiro da caçadora, emergindo das sombras. A expressão tensa, mas firme.
— Ele tá vindo atrás de mim! — Saulo arfou.
Léo manteve o olhar firme.
— Ele sente o medo. Se acalma.
Saulo quase riu. Como alguém ficaria calmo sendo caçado?
Léo jogou uma espingarda para ele.
— Sabe usar isso?
Saulo agarrou a arma, as mãos trêmulas.
— Nem um pouco!
— Munição de prata. Mira direito.
Outro estrondo. Estilhaços voaram. O lobisomem estava perto.
Léo apontou um corredor estreito.
— Esse lugar não vai aguentar. Vamos!
Os dois avançaram. Os reflexos os cercavam em cada curva. Saulo buscava desesperadamente uma saída, até sentir Léo agarrar seu pulso. Rugidos ecoavam, seguidos pelo vidro despedaçado. O monstro derrubava barreiras para alcançá-los.
O labirinto tremia a cada impacto. O chão vibrava com as patas pesadas da fera.
A saída surgiu adiante. O ar fresco da noite se aproximava. Saulo foi o primeiro a sair, recebendo a brisa gélida. Lá fora, avistou uma das entradas do parque. Mas o alívio durou pouco.
Um vulto emergiu das sombras.
O lobisomem saltou com um rugido ensurdecedor.
O impacto foi brutal. Léo voou contra um espelho. O vidro explodiu ao redor dele, moldando uma moldura de cacos.
— NÃO! — Saulo gritou, a voz carregada de terror.
Léo segurava as mandíbulas da criatura, forçando-as para longe de seu pescoço. Saulo assistia, paralisado. A espingarda tremia em suas mãos.
— NÃO FICA PARADO! — Léo berrou.
Hesitante, Saulo avançou alguns passos. — Eu não sou covarde... — lembrou da promessa vazia às amigas, que certamente o repreenderiam se estivessem ali.
Uma súbita coragem tomou seu peito. O medo deu lugar à determinação. Segurando firme a arma, Saulo golpeou o lobisomem na cabeça com o cabo. A fera rugiu e o golpeou de volta com uma pata poderosa.
Saulo foi lançado ao chão, soltando um grito abafado. Uma dor lancinante tomou seu braço. O calor latejante e o sangue escorrendo deixaram claro: estava ferido.
Léo aproveitou a distração e se ergueu, mas o lobisomem já avançava. Ele sacou sua faca e a segurou firme. O monstro não se intimidava. Quando a fera investiu novamente, o som de um tiro rompeu o ar.
A criatura recuou, grunhindo de dor. Sangue negro escorria pelo ombro. Saulo, com o rosto molhado de suor e lágrimas, disparou mais uma vez.
— MORRE! — rugiu, sua voz carregada de uma raiva que ele mesmo desconhecia.
Cada disparo soava como um trovão. Finalmente, o lobisomem tombou, contorcendo-se ao voltar à forma humana. Os pelos desapareceram, as garras encolheram. Sob a luz fraca, restava um homem magro e pálido.
Saulo deixou a espingarda cair no chão. Ofegante, em choque. Léo se aproximou, envolvendo-o em um abraço firme.
— Você fez bem, garoto. Fez bem...
— Acabou? — Saulo murmurou, encarando o corpo imóvel.
— Acho que sim.
O sangue de Saulo pingava no chão. Ele pressionou o ferimento, sentindo a pele quente e úmida sob os dedos. O medo se misturava ao alívio. Ele venceu... mas a que custo?
Léo analisou o braço ferido de Saulo, pegou a espingarda e hesitou.
— Ele te mordeu?
— Não... foi só um arranhão — Saulo respondeu, a voz trêmula, a adrenalina baixando. — Eu vou ter pesadelos com isso pro resto da vida! — exclamou antes de cair de joelhos, exausto.
Distante, sirenes ecoavam.
— Vamos sair daqui. Precisamos limpar esse ferimento antes que infeccione.
Léo lançou outro olhar ao cadáver. Ao lado dele, um homem estava de pé, seu olhar era sereno, como se enfim tivesse encontrado a tão desejada paz.
Saulo respirou fundo, uma nova onda de dor pulsando em seu braço. Ele não sabia o que viria depois. Mas uma coisa era certa — sua vida nunca mais seria a mesma.
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