III. Talento Massivo.
Dois meses se passaram desde que Aleera assumiu a tutoria da princesa Stormy e depois de muito esforço, alguns ferimentos e quase preferir a morte, conseguiu um desenvolvimento surpreendente por parte da menina. Apesar de ainda ser uma tirana em forma de criança, pelo menos quando a mulher estava perto a menina tentava se comportar e mantinha modos que eram esperados para uma princesa. Claro que depois de dois meses, Aleera sentia falta de alguma coisa. Parecia presa a responsabilidade que tinha com a princesa e sempre que olhava o horizonte era preenchida por um vazio, algo que sempre estava incompleto e não tinha ideia do que era.
Os dias que passou no castelo, não foram exatamente os melhores de sua vida. Apesar de ter vivido nas ruas e antes disso na floresta, sobrevivendo aos animais silvestres, aqueles míseros meses passou se esgueirando pelos cantos e evitando cruzar caminho com o rei e suas investidas abusivas. Claro que ele tentou, a moça era jovem e tinha uma beleza única que chamava atenção não só dele, mas de quaisquer homens que chegaram a entrar no palácio. Aliás, desde que veio morar ali, Aleera nunca mais saiu, era como se Can quisesse mantê-la intocada, se não fosse dele não seria de ninguém mais. Astrid não demorou a perceber as segundas intenções de seu marido. A rainha não se tornou uma soberana à toa, tinha uma astúcia inconfundível e quase sempre estava certa sobre tudo. A tutora da princesa só estava viva porque finalmente depois de outras cinco mulheres, era a primeira vez que Stormy agia como uma monarca e estava feliz com aquele progresso. Às vezes quando o marido seguia Aleera tanto e tão descaradamente a ponto de Astrid perceber, ela pensava se encontraria uma oportunidade de livrar-se da jovem tutora apesar do bom trabalho, já que a beleza dela tornou-se um inconveniente.
Naquele momento em questão, Aleera estava junto a Stormy, no quarto da menina, enquanto fazia um novo penteado nos longos cabelos dourados da criança. Depois de um tempo a princesa já não conseguia disfarçar que amava a atenção que a tutora lhe dava. Ela tinha se tornado para Stormy uma espécie de irmã mais velha, cujos instintos maternais, faziam a princesa querer obedecer apenas para agradá-la.
— Onde aprendeu a fazer isso? — Stormy perguntou a outra que arrumava seus cabelos.
— Nas ruas da cidade, tem muitas menininhas até menores que você que passam horas arrumando os cabelos umas das outras, elas me ensinaram. — escorou a cabeça no ombro da criança vendo se aprovava o penteado com tranças.
— Deve ser mais fácil quando tem um cabelo do tamanho do seu. — virou-se para a moça. — Queria ser como você, é tão bonita. — levantou a cabeça para alcançar com os olhos, o rosto da jovem moça.
— Mas olha, um dia você será, princesa. — agachou ficando da altura da menina. — Logo irá crescer. — sorriu.
— Não sei, já tenho sete anos e parece que ainda continuo pequena.
— Tudo bem ser pequeno às vezes. — tocou o nariz dela. — Crescer nem é tão bom assim.
— Não deve ter sido divertido para você, que viveu nas ruas de Azaror.
— Ah, não foi de tudo ruim. Aprendi algumas coisas.
— Aleera, ainda quer ir reencontrar aquele seu amigo um dia?
— Acredito que se o destino quiser, ainda vamos nos rever.
Elas falavam de Leone, que desde sua partida nunca mais deu notícias a moça, mesmo prometendo lhe visitar às vezes. Aleera esperou, mas depois de um tempo começou a temer que algo ruim tivesse acontecido. A falta de informações lhe deixava preocupada, não sabia se estava vivo ou morto e por ser a única família que conheceu, ele era importante para ela.
— Aleera, está ocupada?
A moça encarou a figura escorada na porta, pelo reflexo do espelho, sentindo seus pelos estremecerem. A respiração ficou densa de uma hora para outra, seu medo de descobrir o que ele queria assombrava o sossego do cérebro dela que queria responder não, mas não podia enfrentá-lo, ainda era o rei de Velkhan.
— Não, o que sua majestade deseja?
— Gostaria de lhe falar um momento.
Aquele era um grande problema. Quem a defenderia ou entraria bruscamente chamando por ela, se a rainha Astrid estava em uma viagem há três dias e não tinha retornado? Esse era um dos motivos pelo qual a jovem tutora passou a maior parte deles escondendo-se de Can, até mesmo no estábulo. Tudo para evitar ter contato com ele. Ela nunca passou tanto tempo com Stormy como naqueles três dias, até deixou a menina dormir com ela em uma dessas noites, apenas para ter certeza de que ninguém invadiria o quarto lhe pegando desprevenida.
— Volto já, está bem? — ajoelhou-se olhando Stormy. — Vamos passear pelo jardim com seu cabelo arrumado como prometi.
— Está bem. — sorriu contente. — Esperarei na biblioteca.
— Não fique jogando os livros no chão! — gritou para a menina que corria.
Can não deixou que a moça saísse e lhes levasse para um ambiente aberto onde poderia correr se precisasse. Simplesmente entrou no quarto da filha sozinho com a tutora dela e fechou a porta.
— O que o senhor quer? — resolveu tentar ser grosseira tentando espantá-lo, mas não pareceu muito eficaz. Até mesmo fazendo-se de má, Aleera ainda continuava bastante atraente.
— Desde que chegou tenho tentado falar com você, mas nunca tive chance. — aproximou-se tentando tocar o rosto dela, mas a mesma esquivou. — Tem medo de mim? — perguntou sorrindo, como se aquilo fosse uma coisa boa.
— De modo algum. Porém sua mulher me amedronta em um nível inexplicável e não quero ser mais um corpo apodrecendo na masmorra.
— Essas histórias são contadas para atormentar os empregados. — segurou o braço da moça e impediu que ela andasse. — É uma das mulheres mais lindas que já pisaram no castelo de Azaror, sabe disso, não sabe? — deslizou seus lábios pelo pescoço e parte das costas da moça.
— Deve odiar o fato de que nunca serei sua. — respondeu sem encará-lo, enquanto dobrava os dedos contra os punhos sentindo suas pernas tremendo. Ela tinha medo de que não conseguisse se proteger e alguma coisa teria de ser feita.
— Nunca é uma palavra tão forte... — tirou os cabelos da moça de seu pescoço, jogando-os para o lado e continuou invasivamente deslizando lábios e dando beijos nas partes das costas que não eram cobertas pelo vestido.
— É a única palavra que conhecerá! — virou-se e o encarou seriamente. — Se sua mulher tentar me matar pelo que está fazendo pode ter certeza que te encontrarei e te matarei antes mesmo que ela tente me exterminar. Agora, se me der licença tenho que ir. — empurrou-o para o lado e ouviu-o rir. O que imediatamente preocupou-a, já que não tinha ideia do que viria a seguir.
— Pode se achar incrivelmente importante, mas é apenas mais uma criada, acha que tem direito de me dizer o que fazer? Ou me dar ordens?
— E que direito tem de achar que sou seu objeto? Só porque trabalho no castelo?
— Gosto de como pensa. — sacudiu o indicador como quem concordava. — É diferente das outras, mas há um ditado que diz, o que é difícil sempre costuma ser mais apetitoso.
— O senhor acha que conseguirá alguma coisa por que é rei? — ela riu debochada. — Realmente pensa que ligo para seu título a ponto de querer me deitar com você?
— E porque não?
— Você nem é homem! Nunca defendeu nada, nunca protegeu ninguém. Usa essa coroa acreditando ser alguém, mas não passa de um mero enfeite para a cadeira ao lado da verdadeira soberana, a rainha.
— É o que veremos. — irritou-se então, sequer se importando com o que poderia acontecer. Tentou aproximar-se, imediatamente Aleera abriu a porta do quarto e desceu as escadarias correndo. Virou-se para olhar, já no último degrau e perto o bastante da porta para fugir, e Can estava no topo da escada pensando se valia a pena descer, depois desistiu dela, pelo menos estaria a salvo, por enquanto.
— Oi Aleera. — Stormy apareceu bruscamente, assustando a moça. — Vamos passear agora?
— Vamos querida, vamos sim. — tomou-a pela mão e as duas saíram para o jardim.
Seu coração ainda palpitava acelerado temendo as consequências daquilo. E se Can contasse uma mentira a Astrid sobre ela e a rainha pensasse ser verdade? E se ela pensasse que a tutora de sua filha tinha deitado com seu marido? Ele poderia livrar-se de la ou pior, lhe obrigar a fazer o que quisesse apenas ameaçando contar a rainha uma coisa que não aconteceu. Como mera criada, sua palavra jamais seria válida contra a do rei.
— Tomara que a mamãe nunca te mande embora como as outras. — Stormy começou a quebrar os galhos das plantas enquanto andavam e Aleera, distraída, não fez questão de prestar atenção na garotinha, seus pensamentos não estavam mais ali.
— Pelo que vejo, algumas coisas nunca mudam. — ouviram uma voz e a menina virou-se.
— Mamãe! — Stormy correu ao encontro da rainha e lhe abraçou. — Quem é essa mulher esquisita?
— Mais respeito, não está aprendendo nada?
— Desculpe-me majestade. Stormy está meio irritada essa manhã. — Aleera andou e tomou a menina pela mão.
— Está parecendo assustada, aconteceu alguma coisa? — Astrid perguntou a tutora.
— Não, não senhora. — Aleera respondeu respirando densamente, mas continuou a confirmar que nada tinha acontecido.
— Certo. — dobrou uma sobrancelha desconfiada. — Prepare Stormy para o jantar, teremos uma convidada.
— Sim, senhora. — puxou a menina e nem fez questão de saber quem era a mulher loira vestida de preto que parecia ter saído de algum lugar assombrado.
— Quem será aquela mulher? — Stormy perguntou enquanto subiam de volta ao quarto dela.
— Não sei querida. — entraram e Aleera tomou o vestido do jantar nas mãos ajudando a pequena a colocá-lo. — Talvez uma criada.
— Outra? Vestida igual uma bruxa? Mamãe disse que era uma convidada, não ouviu?
— Hã? Estava pensando em outra coisa, não devo ter ouvido.
— E você? — virou-se de costas e sentiu os botões sendo fechados. — O que irá usar?
— Acho que isso. — mostrou o vestido que já estava em seu corpo.
— Por que não usa o vestido vermelho, aquele que ganhou do papai? Ele ficaria lindo em você, poderíamos parecer irmãs, duas irmãs princesas.
Aleera assustou-se com aquilo e ainda mais por descobrir que o vestido de festa que apareceu em seu quarto tinha sido dado por Can. Ela o achou um dos mais belos trajes que já viu, mas saber quem o tinha dado imediatamente lhe causou uma repugnância assustadora.
— Não parece adequado, sua mãe pode ficar brava. Está tudo bem, ficarei como estou, será melhor.
— Tá bom. — fingiu estar convencida com a desculpa e encarou-a. — Nos vemos lá embaixo, não demore. — desceu as escadas correndo e Aleera ficou no quarto para arrumar a bagunça da menina. Não demorou para o que guardava dentro de si finalmente sair e ela chorar desesperada por certo tempo.
— Está frustrada, com medo e tem uma vontade imensa de fugir?
— Hã? — virou-se para a porta assustada com a pergunta e meio aliviada por não ser o rei. — Desculpe, a senhora precisa de algo? — limpou as lágrimas na manga do vestido.
— Não se incomode, minha querida. — aproximou-se. — Sei que é responsável pela princesa, não se preocupe comigo. — estendeu a mão. — Meu nome é Gwendoline. Notei que tem uma energia muito forte, achei isso muito bom.
— Energia, que energia?
— Ah, desculpe, esqueci de mencionar, sou uma sacerdotisa. A mestre do castelo de Elirach.
Aleera já tinha ouvido falar das sacerdotisas de Elirach, mulheres e alguns homens praticantes de magia do caos, direcionadas na maioria dos casos ao cargo de conselheiros de lordes dos castelos das outras cidades e de grandes famílias ricas, capazes de pagar por serviços mágicos. Havia um boato que dizia que as crianças rejeitadas geralmente eram abandonadas lá, mas não sabia ser verdade já que foi encontrada em Azaror e criada por um homem.
— É o lugar onde tem gente que entende e usa magia?
— Exatamente, em sua maioria mulheres. Tivemos alguns homens, mas são exceções raras. — sorriu. — Desculpe chegar assim bruscamente, incomodando-a, mas é que desde que a vi não pude deixar de notar o quão interessante parece sua aura.
Tentou tocá-la, mas Aleera desviou-se. O que a sacerdotisa mestre de Elirach via sem saber explicar, na verdade, era poder do caos que foi mascarado por Barbara há muitos anos. Ela pensava ser uma energia magnífica de uma criança destinada ao sacerdócio do caos, quando teoricamente, o que Aleera tinha era muito maior do que pensava.
— Sou só uma tutora. — tentou continuar seu serviço e ignorar a mulher, que parecia dizer bobagens.
— Mas poderia ser muito mais... Está frustrada aqui, está com medo e não quer passar a vida como uma mera tutora.
— Não serei tutora para sempre. E mera é ofensivo, sou boa nisso. Estou bem como estou.
— Vejo que sim, minha criança.
— Sua nada, meu nome é Aleera. É isso, sem querida, criança ou coisa parecida, não lhe conheço.
— É, por isso assustou-se quando cheguei? Está com medo do que se esconde atrás das cortinas...
— Não sabe do que está falando.
— E se dissesse que pode livrar-se disso e se tornar uma de nós, tão poderosa a ponto de nunca mais sentir medo de coisas ou pessoas como essas?
— O que ganha com isso? Ninguém nunca me ofereceu nada sem segundas intenções, não pense que será a primeira.
— Notei que é esperta, Aleera. — sorriu. — Tem uma coisa que quero, se pegar para mim te levo e ensino tudo que sei. Quando terminar os ensinamentos, poderá se libertar de seus medos e se for comigo pode livrar-se das garras do rei. Elirach é um lugar inalcançável para homens como ele.
— Como... — sentiu suas mãos trêmulas. — Como sabe sobre isso?
— Eu vejo emoções, sentimentos, sensações e algumas outras coisas. Ele emana desejo sobre você, é difícil não notar. — respondeu-a. — Então, o que me diz? Um passo perto do que quero é um passo longe desse castelo.
— O que quer que eu pegue?
— O amuleto do caos.
— Amuleto do caos? Uma coisa de caos, literalmente?
— É uma pedra grande e preta, presa a um colar de ouro. Nada discreto se quer saber.
Aleera lembrava-se de já ter visto aquilo, ele quase foi roubado há cerca de dois meses pelo rapaz que ela derrubou na entrada do castelo, por acidente.
— Não está aqui por acaso, está?
— Quem sabe... — deu ombros.
— O que a rainha foi fazer em Elirach, para ter vindo pessoalmente até aqui, sendo uma mestre? Desde quando uma pessoa tão poderosa quanto você sai de seu lugar de soberania atrás de uma rainha que pensa mais com os músculos do que a cabeça?
— Astrid quer um sacerdote ao lado dela, está à procura de semideuses e depois que perdeu o anjo que capturou não teve nenhum sucesso em suas buscas.
Era a primeira vez que ouvia a palavra semideus, mas ela não tinha significado algum para Aleera, por isso, sequer se importou.
— Matar descendentes de Deuses por capricho? Que gesto nobre.
— Astrid não acredita no equilíbrio cósmico gerado pela vida de um Deus e muito menos no desequilíbrio que ocorrerá caso mate todos os semideuses.
— Dane-se o que ela pretende fazer, se formos morrer, não quero que meus últimos dias sejam aqui. Diga-me, onde encontro o que quer?
— Fica na sala de troféus da rainha, tem uma brecha perfeita no jantar onde todos estarão no salão. Eu os enrolarei para que não sintam sua falta. Deve lhe dar uns quinze minutos.
— E depois?
— Quando a lua atingir o topo do céu deve me encontrar no porto de Azaror, de lá partiremos para Elirach.
— Se Astrid descobrir irá nos matar sem piedade.
— Ela não vai perceber a falta do amuleto, irá substituí-lo. — entregou um outro amuleto a Aleera. — Este não tem magia, é falso.
— É, assim pode ser que funcione.
— Admiro estar tão disposta a arriscar sua cabeça para livrar-se do rei.
— Tem horas que realmente prefiro morrer. — olhou-a. — Deve ir, ou ela virá até aqui. Esperarei pelo jantar.
Aquele parecia um bom plano, a ideia de livrar-se de permanecer infindáveis dias esgueirando-se pelos cantos, lhe causava alívio. Se precisasse roubar da mulher que lhe acolheu, o faria. Nem todo teto sobre a cabeça significava felicidade, ela agora sabia disso. No entanto, Aleera preocupava-se em como Stormy reagiria quando soubesse que sua tutora e quase melhor amiga, iria embora as escondidas na calada da noite, sem despedidas ou mesmo uma explicação.
Gwendoline desfrutava tranquilamente do jantar como convidada de Astrid, naquele mesmo instante e rezando para nada dar errado, Aleera adentrava na sala de tesouros pessoais da rainha atrás do amuleto do caos. Seria fácil encontrá-lo, já que tinha uma cópia exata dele no bolso de seu vestido. A garota não tinha ideia do que aquela joia fazia, imaginou ser algo estranho e maligno, devido ao nome. Mas sequer se importava, a coisa de nome assustador era sua passagem para fora de Azaror e precisava encontrá-lo, já que seu tempo estava diminuindo. Na verdade, não foi difícil localizar o amuleto, ele estava bastante destacado no meio dos outros itens e parecia incrivelmente poderoso, apenas em uma mera olhada. Imediatamente a moça o trocou pelo outro e sentiu certo incômodo ao encostar no original e coberto por magia. Colocou no bolso, olhou os lados e saiu de fininho indo para seu quarto, torcendo para não ter sido vista. Aleera não desceu para jantar, não queria dar-se ao luxo de ver o olhar debochado do rei apenas esperando uma brecha para denegri-la diante da rainha, com palavras absurdas de coisas que jamais aconteceram. Além disso, não queria ver Stormy, pois sabia que deixá-la seria mais difícil.
Quando a lua atingiu seu ápice no céu, Aleera já estava pronta para ir. Depois de pegar sua bolsa com algumas roupas, encostou a orelha na porta para saber se não tinha ninguém no corredor. Quando certificou-se que sim, saiu de fininho pelo castelo e conseguiu chegar até o portão sem ser notada, ou pelo menos pensou que sim até ouvir uma voz lhe chamar, olhando para trás instintivamente quando devia ter ignorado e seguido.
— Aleera. — Stormy correu até ela, ainda de camisola e cabelos bagunçados. A moça perguntava-se como a menina acordou se tinha o sono tão pesado. — O que faz aqui fora?
— Eu? — tentou pensar em uma desculpa. — O que faz aqui, criança?
— Para que essa bolsa, está indo embora?
Convencida de que a verdade seria melhor e para poupar a pequena do transtorno de se irritar, por perceber que ela não voltaria, resolveu dizer a verdade.
— Vou embora sim, querida.
— Embora sem despedir-se? — ela arqueou uma sobrancelha se irritando. — Não pode ir! — gritou brava. — É minha tutora, não vai a lugar algum.
— Desculpe, Stormy, mas vou sim. — ajoelhou-se e segurou o ombro da menina de maneira gentil. — Não há mais nada para te ensinar e seria um desperdício do meu tempo.
— Seu tempo é meu. — puxou uma adaga das costas e encravou no ombro de Aleera que caiu sentada.
Todo o esforçou para transformá-la em uma princesa desceu por água abaixo em segundos. Tudo que Aleera dedicou para a criança parecia não significar nada a menininha, já que na primeira recusa, tentou eliminá-la sem pestanejar.
— Ah! — levantou-se sentindo tudo que doía e queimava por dentro como a sensação ardente de colocar a mão no fogo. Tornava-se insuportável e cansativo lutar contra aquilo para manter-se em pé. — Stormy! — empurrou-a brava e cambaleou sentindo a dor tomar conta de todo seu corpo. — Que diabos, quer me matar agora?
— Se não ficará comigo, não será de mais ninguém.
— É, tem a quem puxar. — lembrou-se de Can. — Uma criança mimada não irá me impedir de parar com esse martírio! — gritou furiosa e arrancou a adaga que não tinha ideia de onde havia saído e arremessou longe. — Tem muito o que crescer e não é só de tamanho. Se continuar a tentar matar todas as pessoas que gostam de você jamais terá alguém!
— Vou gritar! Vou falar que está fugindo.
— Faça isso, não ligo. — montou em um dos cavalos dos guardas e desapareceu na noite sem se importar se Stormy realmente gritaria ou não.
Como dito, Stormy chamou gritando pela mãe e pelo pai, ambos apareceram no portão, mas já era tarde demais para impedir Aleera, afinal sequer sabiam para onde ela ia. Astrid parou ao lado da filha com um semblante aliviado, talvez lidar com as consequências de uma princesa problemática fosse mais fácil do que lidar com seu marido querendo fazer de Aleera uma nova suposta esposa.
— Vai deixá-la fugir, mamãe?
— Acho que teve seus motivos. — encarou a criança. — Vamos para dentro, amanhã arrumaremos outra tutora para você.
— Não quero outra! — empurrou-a e saiu andando na frente. — Não quero mais ninguém! — gritou correndo.
— Tudo bem então, mais ninguém. — lamentou-se pensando no que aconteceria dali para frente, mas preferiu enfrentar as consequências da maternidade.
Aleera chegou ao porto de Azaror mal se aguentando em cima do cavalo, aquele ferimento feito por uma adaga não parecia nada grave, mas assim que o cavalo parou, despencou no chão desmaiada.
— Pelos Deuses! Aleera, você está bem? — Gwendoline tocou-a sentindo sangue sujar suas mãos, logo notou o ferimento que sangrava. — Athos, preciso que me ajude.
O homem saiu do navio e tomou a garota nos braços, subindo com ela enquanto era acompanhado por Gwendoline. Imediatamente seguiram para a cabine do capitão, onde a sacerdotisa pediu que ele a deitasse sobre a cama. O homem saiu dali já que tinha de colocar o navio em seu curso, mas torcia para que Gwendoline desse um jeito na garota de Azaror, a bela garota.
A sacerdotisa rasgou as vestes da mulher expondo o ferimento que escorria sangue para suas costas. Um buraco do tamanho de uns dois dedos, um corte reto e liso, mas que parecia envenenado, já que várias ramificações negras saiam dele e aumentavam cada vez que ela sangrava. Ao lado da cama havia um pouco de rum, nada que surpreendesse a mulher. Depois de pegar a garrafa com as mãos e puxar a rolha com a boca, usou aquela bebida alcoólica para limpar o ferimento, pois não tinha nada com ela que pudesse usar para ajudar a melhorar. A moça gemeu gravemente sentindo dor e virou-se de lado tentando impedir que Gwendoline continuasse. A sacerdotisa puxou-a pelo braço e insistiu tentando fazer um curativo, quando conseguiu, ajeitou o travesseiro, amarrou as metades rasgadas do vestido, para que não acabasse com um dos seios de fora e cobriu-a para que descansasse.
O segundo dia de viagem amanheceu. Haviam dois caminhos para Elirach, partindo de Azaror, um deles passava por Belioz, de lá para Valysha e de Valysha seguiria de carroça até Elirach. O segundo caminho era mais curto, um pouco mais perigoso para desconhecidos, ia de Azaror para Dungen e das águas traiçoeiras que rodeavam Dungen, a cidade das criaturas místicas, direto para Elirach. Como temia que Aleera não sobrevivesse sem cuidados adequados, Gwendoline pediu que o capitão do navio, Athos, pegasse o caminho mais rápido, mesmo com os riscos que poderiam correr.
Aleera despertou horas depois ainda fraca, olhou o lado e encontrou Gwendoline sentada, torcendo um pano úmido.
— O que aconteceu?
— Parece que foi esfaqueada. Pensei que seria uma tarefa fácil. — respondeu a moça e continuou umedecendo a pele dela para baixar a febre. — O que houve?
— Aquela criaturinha do submundo... — resmungou. — Stormy vai acabar morta por causa dessas atitudes.
— A menininha? Foi ela que lhe esfaqueou? Tsc... Já ouvi umas coisas sobre ela, não imaginava ser verdade.
— Não sabe como aquela coisinha pode ser maligna.
— Trouxe chá, achei que pudesse ser útil. — Athos entrou na cabine. — Você acordou? — sentou-se encarando a moça com um sorriso que a deixava envergonhada por sua meia nudez. Depois, discretamente puxou as cobertas cobrindo o vestido rasgado e olhou-o melhor, o homem em sua frente parecia familiar.
— Conheço você? — indagou curiosa.
— Me impediu de roubar o amuleto do caos. — ele sorriu e continuou a lhe encarar. — Teria dado certo da primeira vez e provavelmente não seria convocada por Gwendoline.
— Athos foi o primeiro ladrão que contratei para roubar o amuleto do caos, não sabia que foi você a lhe impedir.
— Desculpe, não foi por querer.
— Tudo bem, senhorita. Já tive dias piores. — beijou a mão da moça que virou a cabeça para o lado estranhando aquilo, que diabos era toda aquela atenção exagerada que o homem tinha nela?
— O importante é que ele está a salvo conosco e você se livrou de todos os seus problemas. — Gwendoline sorriu a garota. — Deixarei que descanse, apesar de ser um ferimento pequeno, parece estar envenenado. Deve poupar esforços para evitar o veneno de progredir.
— Obrigada, por tudo. — deitou a cabeça no travesseiro e fechou os olhos, exausta.
Athos seguiu Gwendoline, preocupado com a jovem deitada em sua cama. A bela moça parecia gravemente ferida e não demonstrou que sobreviveria, mesmo lutando muito contra isso.
— Acha que irá sobreviver? Demorou dois dias para acordar e pensei que nem o faria. — Athos questionou a sacerdotisa.
— Sobreviverá. Aleera pode não saber, mas alguma coisa está lhe protegendo desde sempre. — respondeu baixando a cabeça.
Talvez Gwendoline soubesse mais do que aparentava, mas revelar aquele segredo iniciaria uma cascata de eventos que ela preferia evitar e se pudesse, provavelmente o faria.
— Espero que esteja certa ou os tubarões ficarão felizes com uma refeição tão bonita quanto ela.
— Achou ela bonita, Athos? — arqueou uma sobrancelha. — A moça é tão apaixonante assim?
— Também seria, sacerdotisa. — aproximou-se dela. — Se não fosse uma velha cheia de magia para manter-se jovem. — sorriu debochado. — Aquela garota é única e isso lhe torna atraente aos olhos masculinos. Será um trunfo e tanto para você. Mas se quiser deixá-la comigo, não me importaria de admirar sua beleza por um ano ou dois.
— Tsc... É mais fácil pegar um raio com a mão do que deixar que fique com essa menina. Tenho planos para ela, grandes planos.
— Desde quando resgata donzelas sem segundas intenções? Pensa que não lhe conheço?
— Se estiver certa e não costumo me enganar, Aleera tem potencial para ser minha sucessora.
— Espero que esteja errada, prender uma mulher como aquela em um castelo por toda a sua vida é um fardo deprimente, se não desgastante.
— Mas o poder que ela teria, tenho certeza que seria mais forte que eu ou qualquer outro.
— Se ela é tão poderosa assim, acha que irá querer ficar como sacerdotisa mestre se pode fazer o que quiser?
— Terei tempo para convencê-la, já você não tem chance. — riu.
— Não amola, posso te jogar aos tubarões. — reclamou. — Devemos chegar em algumas horas, deve prepará-la.
Apesar de Dungen ser conhecida como a cidade dos seres místicos, Elirach era a cidade com maior quantidade de magia de Velkhan. Aquele era um lugar onde os diferentes podiam andar livremente sem medo de serem mortos, afinal eram maioria ali. Chamada de cidade da magia, Elirach era um lugar onde sonhos absurdos costumavam se realizar, onde dragões voam pelos céus, onde morte e vida se misturam como se fossem apenas um e onde sacerdotisas eram criadas e transformadas nas servas perfeitas do caos.
Por usar o caminho mais curto, com quase três dias estavam dentro das terras de Elirach. Infelizmente Aleera não apresentou uma melhora considerável, mas sobreviveu a viagem. Estava debilitada e demandaria cuidados por uns dias. Como Gwendoline suspeitava, alguma coisa não deixava a garota de longos cabelos negros ir, mantinha-a viva dentro do possível e isso com certeza atraía a atenção da velha sacerdotisa.
— Espero que melhore, senhorita Aleera.
— Obrigada pela viagem, Athos, espero que nos vejamos de novo.
— Certamente será uma honra dar-me outra oportunidade de vê-la. — beijou a mão da moça.
— Menos querido, menos. — Gwendoline começou a rir. — Vamos Aleera, quando chegar ao castelo poderemos dar um jeito em você.
— Mal posso esperar. Vamos então!
Desceram no porto de Elirach e a moça de Azaror logo se encantou com as terras até então desconhecidas, enquanto andavam pelo mercado do centro, onde as pessoas, seres e crianças, esbanjavam talentos para artes incomuns, até mesmo a da enganação.
— Cuidado com os bolsos, Elirach também é conhecida como a terra dos ladrões.
— Não há nada de valor. — parou observando um homem que atraía a atenção de todos. — Olha, olha aqueles gatinhos, eles atravessaram o arco em chamas. — apontou.
— Nunca viu um encantador de animais?
— Não. — respondeu. — Nunca vi muitas coisas, nada parecido com isso e é incrível.
— Tsc. — Gwendoline sorriu. — Tem muito o que aprender, menina.
Aleera sentiu algo macio tocando seu pescoço e direcionou sua mão até ele, mas não tinha mais nada, foi deslizando a mão por toda a extensão do pescoço e deu falta de um delicado colar que usava, dado a ela por seu amigo, Leone.
— Você viu? Viu meu colar, acho que deixei cair!
— Talvez devesse tentar o macaco! — apontou o animal entregando um saco ao dono dele, enquanto ambos saíam de fininho e as pessoas continuavam distraídas com o show de acrobacias dos filhotes de gato. — Lhe avisei, cuidado com os bolsos.
— Não creio. — olhou indignada. — Ei, volta aqui! — chamou-o e os dois correram. — Ah não, não vai levá-lo!
Apesar de querer pegar o meliante com um macaco ladrão, Aleera estava fraca demais para persegui-lo e logo foi vencida pelo cansaço, esbarrando em alguém que nem conhecia, se debruçando sobre ele.
— Aquele macaco... Macaco estúpido. — sentiu sua cabeça recostada no tórax de alguém que respirava tão pouco que parecia morto.
— Ice Angeles! — estalou os dedos e o homem apareceu ali com seu macaquinho de estimação.
— Droga, o que quer? — se tocou para certificar-se que não havia nada lhe faltando.
— A mulher está chamando seu macaco, você a roubou, não foi?
— E o que tem a ver com isso? — retrucou. — Não pode provar.
— Posso te revirar do avesso se tiver vontade, agora diga o que pegou dela.
— Não sei, Enay não me disse.
— Então pergunte a droga do macaco o que ele pegou! — gritou com o outro, assustando tanto ele quanto seu macaco.
— O que deu em você? Não costuma bancar o bom samaritano e essa garota está mais morta que viva, porque se importa?
— Isso não lhe diz respeito, quer viver ou não? Posso te matar facilmente e sabe que não estou blefando.
— Está bem... — ajoelhou-se e abriu o saco com suas pilhagens perguntando ao macaco o que tinha pego da garota. Enay, o macaquinho, revirou o saco entregando ao dono, um colar que praticamente nem tinha valor de mercado. — Essa coisinha? Ela não tinha mais nada para você roubar, não? — questionou o macaco que deu ombros e sentou-se. — Toma. — jogou o objeto contra o outro homem ali. — Você não devia se meter nos meus negócios. — levantou-se. — E da próxima vez que me trouxer a algum lugar sem minha permissão certifique-se de estar longe do mercado.
— Por que há gente nele que quer sua cabeça em uma estaca? Que gratificante isso seria. — riu.
— É um idiota, Emre. Um demônio asqueroso e idiota. Não sei porque ajudar essa mulher, ela irá morrer.
— Aconselho que desapareça antes que alguém descubra que os roubou.
— Isso não ficará assim. — apontou-o e saiu correndo.
— Parece corajosa. — colocou o colar na garota e segurou seus braços para que não caísse. — Aposto que não o deixaria te roubar se estivesse completamente saudável. — lentamente sentou-a em um caixote e continuou a lhe encarar por um tempo considerável, até que ela despertasse de novo.
— O que aconteceu? — abriu os olhos lentamente e viu o rapaz com quem falava. — Quem é você? — perguntou ao homem com um dos rostos mais belos que já tinha visto e da aparência mais diferente também.
— Eu que pergunto, você que caiu em cima de mim. É um ser místico? Foi ferida por aço negro.
— Hã? Você tá doente? Como pode ser tão branco assim. — tocou o rosto do rapaz. — É tão gelado e agradável... — deslizou as unhas por seu rosto e continuou a lhe encarar.
— Não devia fazer isso. — puxou a mão dela para o lado e olhou-a sem entender o que ela seria. — Como se chama?
— Sou Aleera. — sorriu. — Preciso voltar ao mercado, tenho que reencontrar minha amiga.
— Esteve desmaiada um tempo, tem certeza que consegue?
— Só por que fui esfaqueada por uma criaturinha acha que não vou sobreviver? Aquela infeliz maldita, quando crescer vai ver, vou fazer questão de lhe dar uma surra.
— Tsc. — riu ajudando a garota a ficar em pé, sem ter ideia do que ela falava. — Tem uma determinação admirável, senhorita Aleera.
— Agradeço, senhor... Não me disse seu nome.
— Emre. É um prazer lhe conhecer.
— Então, Emre. Para que lado fica o mercado?
— Atrás de você. — apontou o aglomerado de pessoas. — Fiz Ice Angeles devolver seu colar, acredito que não irá mais lhe incomodar.
— Ah... — tocou o pescoço. — Muito obrigada. Preciso ir.
— É claro que tem. — distanciou-se dois passos.
— Por que está escondido aqui nesse beco? Não tem medo de ser morto por algum assassino?
— Acho que talvez não seja do tipo fácil de matar.
— Então é alguma coisa, uma criatura mística?
— Aleera! — Gwendoline chamou-a e pareceu aliviada ao vê-la. — Ficou maluca de correr por aí sem conhecer a cidade? E o que foi que fez com ela, Emre? — puxou a moça pelo braço lhe protegendo do homem.
— Eu? — perguntou desconversando. — Estou com cara de que?
— Sabe bem o que é, acha que lhe deixarei chegar perto dela?
— Ele me ajudou, recuperou meu colar, Gwendoline. — Aleera mostrou o objeto em seu pescoço.
— Não pode confiar nele. Pode te matar se der brecha.
— Assim você me ofende. — Emre retrucou. — Só mato quem quero, porque machucaria essa mulher? — riu. — Está sofrendo por conta do aço negro, se assoprar um vento sobre ela, cai mortinha.
— Obrigada viu. — Aleera encarou-o irritada.
— Aço negro... Não, não pode fazer sentido. — Gwendoline olhou a moça. — Isso te faria uma... É loucura.
— Vamos embora Gwendoline. — Aleera chamou-a. — Obrigada pela ajuda e prazer em te conhecer, espero que não nos vejamos de novo.
— Acho pouco provável que não nos reencontremos. — sorriu seguindo pelo beco escuro.
— Não deve se aproximar de seres como ele.
— O que ele é?
— Emre é um íncubo. Entra nos sonhos de mulheres e suga sua energia vital. Na maioria das vezes elas morrem.
— Nossa! Por que não começou dizendo isso? — perguntou espantada com a nova informação. — Ele é tão bonito, como pode?
— Emre é sim, muito bonito. Mas como sabem o que ele é, as mulheres o evitam temendo a morte. Pensei que soubesse alguma coisa sobre criaturas místicas. Não pode se enganar, Aleera. Apesar de gentil, ele usa dessas artimanhas para fragilizar mulheres e entrar em seus sonhos.
— Estou com medo de dormir.
— Não se preocupe, o castelo tem muitos amuletos contra íncubos. Lhe darei um assim ele não irá entrar. Depois que te curar deste ferimento poderá descansar da viagem sossegada.
— Obrigada, Gwendoline. Mal posso esperar para começar.
— Espero que esteja realmente animada com tudo isso, porque não será fácil.
Será mesmo que Emre não conseguiria adentrar os sonhos de Aleera se quisesse? E porque parecia um bom homem, se na verdade, alimentava-se da vida de mulheres para sobreviver? Gwendoline preocupou-se com a nova informação que obteve com o íncubo, se Aleera realmente estivesse envenenada por aço negro, só poderia ser uma coisa e isso a colocaria em um desnecessário risco. Então, valia a pena manter a jovem moça ali para ensiná-la?
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