I. O conto dos 900 dias.
Lutar não significa necessariamente vencer. Porém, voltar-se contra aqueles que zelaram por todos, por mais de cinco mil anos, significava destruir uma ordem natural imposta bem antes da criação de todos que ali habitavam.
No princípio existia apenas um imenso vazio e dele surgiram os primeiros Deuses, mas não se sabe ao certo como e porque apareceram. Azora era a Deusa da Ordem, parte de sua jornada se resumia a consertar o que o irmão destruía. Volkihar, o irmão de Azora, Deus do Caos, transformava qualquer lugar em anarquia se estivesse presente, por isso, os dois sempre andavam juntos, mantendo o equilíbrio. Logo cansaram-se de viver no imenso vazio e deram origem a sua primeira e perfeita criação, as terras de Velkhan. Era um lugar onde luz e escuridão, compartilhavam uma união conjunta capaz de manter o equilíbrio entre ordem e caos. Velkhan, por quase cinco mil anos, foi terra de coisa nenhuma, um belo lugar onde algumas criações consideradas imperfeitas, moldadas pelos dois irmãos, vagavam por curtos períodos até desapareceram da existência.
Após inúmeras tentativas, acidentalmente, Volkihar deu origem ao primogênito do caos, Crowe. Assim como o pai, ele criou afinidade pelas trevas, tornando-se Deus da Escuridão. Foi o primeiro habitante de Velkhan, imediatamente tomada por noites infindáveis que começaram a perturbar o equilíbrio. Azora notou ser necessário fazer alguma coisa, desta atitude nasceu seu primeiro filho, Guerenon, o Deus da Luz, o oposto de Crowe. Acontece que Azora não ficou satisfeita, tomou gosto pela ideia da origem e achou ser necessário outros filhos da ordem. Que inspirassem a luz de Guerenon e que ele continuasse a espalhá-la por Velkhan. Ayhan, a Deusa do Sol, surgiu e preencheu o lugar todo com a luz, que era dada por seu irmão, teus feitos foram chamados de Dia e o sol, que já existia, mas nunca acendeu, agora brilhava e aquecia as terras onde moravam. Volkihar não ficou satisfeito em ver como Azora sempre queria manter tudo em harmonia, odiava a ideia dos filhos dela tomarem para si o que pertencia ao seu primogênito. Não existia mais escuro e Crowe escondia-se onde podia, mas sempre parecia clamar por escuridão. Insatisfeito pela infelicidade de seu filho, Volkihar dividiu os dias, onde a luz pudesse perdurar por determinado tempo e igualmente a escuridão teria a mesma oportunidade. Criaram-se assim os dias e as noites. Azora, no entanto, ainda se incomodava com a escuridão completa que Crowe insistia em manter naquele momento que seu pai lhe deu para ser livre, por isso, criou do sol um astro sem luz própria, mas capaz de transmitir luz, a lua, e seu próprio Deus, Rhysen. Rhysen tornou-se irmão gêmeo de Ayhan, ambos eram designados aos astros que emanavam energia capaz de tornar tudo vivo e graças ao Deus da Lua, a noite não mais permaneceria escura e cheia de temores.
Guerenon e Ayhan deram origem às primeiras espécies que pisaram em Velkhan. Os primeiros povos, que Rhysen fazia questão de ensinar a sobreviver na noite, mas consumido por inveja, Crowe rebatia a criação dos Deuses da ordem com criaturas medonhas que viviam e sobreviviam do caos, como ele, matando e criando anarquia, exatamente como seu pai, Volkihar, ensinava. Mortes começaram a surgir, almas atormentadas e enlouquecidas vagavam pelas terras, assombrando e possuindo aqueles que ainda estavam vivos. Surgiu então a necessidade de um guia para o caminho e este caminho precisava levar a algum lugar. Azora criou o paraíso, deu passagem aos bons para que alcançassem plenitude eterna, porém, Volkihar criou o submundo onde os maus sofreriam pela eternidade pagando por seus longos pecados. Ainda assim, precisavam de alguém que decidisse por essas almas, havia a necessidade de uma coisa que os Deuses desconheciam e que mais tarde foi chamada de julgamento. Pela primeira vez em milénios, Azora e Volkihar trabalharam em comunhão e criaram Jirak, a Deusa da Morte, ela tornou-se responsável por ceifar e dar destino às almas dos perdidos. Mesmo depois de seus filhos, Volkihar não ficava satisfeito, sempre buscava chegar a uma criatura que emanasse mais e mais caos na ordem e harmonia instaurada por sua irmã, então, ainda deu origem a outro Deus, Wynona, a Deusa do Fogo.
Cada filho da ordem e do caos, moldou e deu vida aos primeiros povos que logo começaram a evoluir. As criaturas da noite aprenderam a andar no dia e causaram as primeiras disputas por território. Deuses caminhavam livremente perante seus filhos, eram adorados e homenageados por aqueles que juravam lealdade, como os primeiros humanos. Eram as criaturas menos evoluídas que pisavam em Velkhan, mas em contrapartida tornaram-se rapidamente mais inteligentes e independentes. Aprenderam sobre fogo, sobre água, sobre madeira, sobre armas e depois de alguns anos, sabiam se proteger e sobreviver sozinhos. Parte das lutas sempre tentavam infundir o desequilíbrio de maneira que apenas um lado prosperasse, como se todos os seres vivos ali, buscassem um líder, alguém abaixo dos Deuses, mas acima deles, que pudesse regê-los.
Ayhan, Rhysen, Guerenon, Wynona e Crowe acabaram vidrados naquele poder todo, nunca estavam satisfeitos mesmo com toda a submissão de suas criaturas, os templos enormes, os sacrifícios de animais e as crianças entregues a ordem e caos já não bastavam. Sempre queriam mais e mais submissão, em consequência, não demorou para a criação voltar-se contra seus criadores. Por que viver em um mundo onde eram escravos de divindades quando poderiam viver por si e assim não precisar deles? Foi assim que o primeiro guerreiro se levantou. Há a crença de que sua espada feriu um Deus, mas ninguém sabe se é verdade, ele claro, foi morto por aquele que tentou ferir e logo todos os Deuses perceberam que livre arbítrio tinha consequências.
Iniciou-se ali, através da primeira morte de um servo, a guerra que perdurou por 900 dias, há mais ou menos uns 20 anos. Deuses começaram a batalhar contra seus filhos e todo o povo de Velkhan contra as cinco divindades de ordem e caos. Jirak, no entanto, vivia no submundo, seu destino não era traçado para batalhar contra ninguém, seu equilíbrio de ordem e caos lhe impedia de fazer qualquer coisa contra os povos, por isso não interferia. Os cinco, como ficaram conhecidos, começaram a temer por sua existência, e logo seus pais também começaram a achar isso. O que poucas pessoas sabiam é que os Deuses tinham fraquezas, aço negro, era uma delas, mas até mesmo a maior das fraquezas pode se tornar uma força. Volkihar tomou aquilo como oportunidade, transformou o que lhes enfraquecia em algo que lhes daria força, dando origem à primeira lâmina, uma espada forjada de aço negro, onde um concentrado imenso de caos, passaria através dela e não haveria nada que não pudesse exterminar. Seu nome, Espada do Vigário. Azora fez o mesmo, forjando uma arma capaz de defendê-la e por ser uma espada de ordem, sempre estaria em busca de justiça. Seu nome, Luz Esmeralda.
Crowe não esperou ou mesmo cogitou a possibilidade de seu pai lhe presentear com algo parecido com a espada que o grande Deus do Caos levantava. A escuridão era mais complexa, necessitava de um elemento que ainda não fazia parte deles, algo que concentrasse magia pura de trevas, mas na melhor das hipóteses o caos viraria arma. É claro que nada encontrado em tão sombrias terras coincidiam com que ele precisava, logo, começou a buscar entre os seres de ordem, aqueles que tinham magia, mas não serviam ao caos, como as fadas. Criaturas puras e mágicas, incapazes de ferir o mais cruel de seus inimigos, regidos pela primeira rainha existente em Velkhan, era a mãe, a primogênita criada, a fada de todas as fadas, Barbara. As longas asas brilhantes, deixavam para trás um pó que costumava indicar onde estavam, ele não servia apenas para isso, o tão falado pó de fada, era conhecido por suas propriedades mágicas e aquele era o elemento final, para a arma perfeita. O Deus da Escuridão invadiu o território das fadas no meio da guerra, sozinho e desarmado, instaurou caos e destruição por todo o lugar. Milhares de fadas foram mortas e aquelas que não morreram, fugiram dali para se proteger. A rainha não teve sequer escolha e fugiu temendo por seus filhos. O que restou de seu lar, foram quantidades de pó que logo seriam levadas pelo vento, se o Deus não os recolhesse e levasse para onde seu pai fazia as espadas, a caverna de forja. Sua irmã, já tinha uma espada, seus primos também já tinham armas, a guerra estava sendo perdida e ele começava a se desesperar. Em uma fatídica noite da guerra dos 900 dias, o artefato foi criado surpreendentemente como um esforço final para garantir a sobrevivência deles. O cajado, arma que escolheu, foi esculpido de sua própria carne e sangue, além disso, foi amaldiçoado e apenas os amaldiçoados poderiam exercer seus poderes, por isso, no momento em que lhe ergueu, Crowe se amaldiçoou.
Naquela noite, o Deus da Escuridão foi para a batalha e mesmo que tivesse real vantagem naquela hora seus primos não tinham. Exceto Rhysen, mas estranhamente o Deus da Lua não se fazia presente naquele momento. Devido a sua ausência, Wynona acabou morta e Crowe percebeu estar sozinho diante dos três filhos de ordem. Aquilo o enfureceu, os Deuses recuaram e esconderam-se temendo a morte, pela primeira vez em milênios se acovardaram embaixo das asas de seus pais. Ainda com ódio tomando seu interior, o Deus da Escuridão foi atrás de Rhysen, encontrando-o em um lugar qualquer para observar uma camponesa medíocre em sua casa, era o cúmulo. Um Deus havia se apaixonado por um humano. Imediatamente após saber daquilo, o caos que consumia Crowe desejou matar aquela mulher, mas aquilo seria fácil demais. Já que ele sabia que de alguma forma, Rhysen provavelmente não era o único e Crowe nunca conseguiu explicar as ausências de seus primos ou sua irmã em alguns momentos. Então as reais intenções deles seriam inveja do que suas criaturas fizeram? Será que sentiam vontade de gerar vida? De amar? De ter família? Era complexo para ele, a escuridão não servia para essas coisas.
Rhysen quando soube da morte de Wynona pareceu arrependido. Seus irmãos estavam com Azora e Volkihar em Sorinser, conhecida por todos como a terra dos Deuses. Era lá que viviam seus dias, em seu castelo e sua terra, seu canto especial. Rhysen se preparava para voltar, com um olhar que dizia que queria continuar ali, Crowe pensou em deixá-lo ir tendo a oportunidade perfeita para matar a desconhecida, mas ao contrário disso, preferiu ferir-se ao empunhar Aura Celestial, a espada de Rhysen e matá-lo. Aquilo não o faria sofrer como estava sofrendo, mas por um instante lhe deixou completamente em paz. Rhysen, o Deus da Lua, foi morto por Crowe. Quando arrancou a espada do corpo desfalecido dele, ela se partiu em pedaços que desapareceram sem destino definido. Volkihar soube imediatamente o que houve, sentiu a partida de Rhysen mesmo não sendo seu filho e sabia que tinha sido pelas mãos de um dos seus. Ele não poderia deixar Crowe ser morto pelos outros Deuses, filhos da ordem, bastava para ele ter perdido um filho. Então, foi até o local onde Rhysen estava morto e seu filho já não estava mais lá, tinha provavelmente fugido temendo seu castigo. Logo Jirak apareceu para levá-lo e Volkihar ficou ali, só, pensando no que faria com seu primogênito pecador, ele teria de pagar, é claro, mas como puni-lo o bastante, se não fosse com a morte? Foi quando o Deus do Caos viu o que Rhysen admirava todas as noites em segredo. A criatura criada por seus filhos era bela, gentil e amável, seu nome, Isobel. Volkihar apaixonou-se pela mulher e ela se apaixonou por ele. A guerra ainda continuava, os homens tentavam entrar em Sorinser para matar todos os Deuses e eles, ali, abandonaram seus filhos, temendo por suas vidas. Todos os Deuses aprenderam a amar, como os humanos e outras criaturas, tiveram filhos que descendiam de seu sangue, não eram Deuses como eles e nem humanos como seus pais, mas tão poderosos quanto as duas raças. Pequenos bebês e crianças foram abandonadas, enquanto seus pais tentavam manter-se vivos. Volkihar então entendeu todo aquele amor, mas não podia deixar que seu filho, Crowe, fosse morto, decidindo então ensinar o lado oposto da guerra a derrotá-lo, contando a eles a maior fraqueza de um Deus.
Os humanos construíram com ajuda das fadas, uma jaula capaz de prender Crowe, deram a Volkihar a responsabilidade de mantê-lo trancado, então o Deus do Caos, jogou seu filho nas profundezas do submundo. Ele continuou a ver a mulher por quem se apaixonou e descobriu logo que ela esperava dele, um semideus, o primeiro semideus primal, capaz de tornar-se um Deus, algum dia. Volkihar sabia que aquela criança seria destinada à grandeza, um filho puro do caos. O Deus do Caos cobiçou a criança ainda no ventre de sua mãe e depositou nela a esperança de reaver o equilíbrio perdido.
O que ninguém sabia é que Crowe descobriu sobre os semideuses e fez o mesmo, mas como tinha ódio infindável pelos humanos, usou outra criatura para dar à luz a um filho da escuridão e a criança que nasceu, amaldiçoada por seu pai, estava destinada a exterminar toda raça humana. Logo o bebê de Volkihar também nasceu, uma menina metade humana, metade Deusa. Era a criatura mais bonita já vista por ele e mesmo sendo apenas um mero bebezinho, provou-se muito poderosa. O amor de Volkihar transformou-se em desejo de reaver o que devia ser deles, começou a pensar que a menina um dia tomaria para si o lugar que devia ser dela. Mas a criança era diferente, sua humanidade não lhe tornava fraca ou vulnerável, lhe fazia especial, tão incrivelmente especial e amável que Azora ao conhecê-la, apaixonou-se por ela a ponto de lhe abençoar, coisa que não acontecia a qualquer um. Com a benção de Azora, Kaliope, como era chamada, tornou-se ainda mais poderosa, mas agora tinha uma pequena parte de ordem em seu ser, que lhe impedia de ser completamente má e sozinha a menininha transformou o caos em equilíbrio e despertou um orgulho inexplicável no pai.
Com o fim da guerra dos 900 dias, Volkihar apagou Rhysen da memória de todos, a fim de evitar que os irmãos dele, ou mesmo sua irmã, matassem Crowe. O Deus da Lua também foi esquecido pelo mundo e apagado das histórias. O Deus do Caos era o único com esse poder, por isso também seria o único a lembrar que um dia existiu um ser de ordem chamado Rhysen. Os Deuses se recolheram em Sorinser, deles também foi tirado por Volkihar a capacidade de amar, isso os impediria de ir atrás de seus herdeiros, Volkihar fez o mesmo com ele. Isobel, mãe de Kaliope, passou a ser vista apenas como a mulher que deu à luz a uma semideusa e por isso não demorou a temer por ela e sua amada filha. Havia agora em Velkhan semideus espalhados, filhos de ordem e caos, que portavam consigo os poderes de seus pais e a vida humana, o que os tornava a esperança de reaver o equilíbrio perdido no momento em que as criações deixaram de acreditar em seus criadores.
Quando Volkihar tentou levar Kaliope com ele para Sorinser, a criança o impediu de separá-la de sua mãe. Sem pensar muito, Isobel pegou o que tinha e desapareceu nos mares atrás de alguém que pudesse proteger sua criança. Ela conseguiu fugir por quase três anos, mas estava cansada e temia que a criança fosse levada, então tomou uma decisão. Isobel foi em busca das fadas e com ajuda da rainha Barbara, a pequena menina agora com três anos, foi posta sobre um feitiço que impediria seu pai de encontrar o caos que emanava dela. Mas Barbara advertiu Isobel que Volkihar a encontraria se continuassem juntas e por isso, ela precisaria deixar a criança ou jamais ficariam seguras.
Não houve nada que lhe doesse mais do que abandonar sua menininha. Para não sofrer, Kaliope teve tudo tirado dela, suas lembranças, seu nome e até mesmo seus poderes. Tudo aquilo estava adormecido em seu inconsciente e como era muito nova, provavelmente jamais lembraria nada sobre si mesma. Então, foi deixada por sua mãe na floresta de Azaror e Isobel desapareceu com o coração partido, temendo ter cometido um erro. A fada rainha prometeu olhar pela criança até que alguém lhe encontrasse e assim convenceu a mulher a deixar a menina. Como Barbara disse, Volkihar não demorou a encontrar Isobel, mas ela já não estava mais com a filha deles. Irado, o Deus tentou arrancar a informação à força, ameaçou matá-la e mesmo assim a mulher não cedeu. Volkihar não teve escolha a não ser deixá-la viver, ele tinha esperança que um dia Isobel se arrependesse e fosse atrás da filha, assim então, ele a encontraria.
Azora e Volkihar deixaram sua maior criação nas mãos de seus filhos e o destino de todos os povos para que voltassem a acreditar em Deuses e adorá-los, sob responsabilidade de seus herdeiros. Os Deuses foram esquecidos, desapareceram junto com Sorinser e ninguém ouviu falar deles, ou mesmo eram mencionados nas histórias. Reza uma lenda que no momento em que um dos lados da balança do destino novamente pender, como quando Wynona foi morta, todo o lugar irá desmoronar e se desfazer para sempre, exterminando a existência de todo e qualquer ser vivo que foi criado.
Dentre tudo que foi criado, alguns seres destacaram-se e tornaram-se importantes depois da partida dos Deuses. O submundo, regido por Jirak, a Deusa da Morte, era o habitat de almas perdidas, condenados à prisão eterna como Crowe. Criaturas banidas da terra por serem muito perigosas, como orcs e casa da majestosa e maligna Pólen, filha de Crowe com uma súcubo, criatura inclusive criada por ele, cujo propósito era alimentar-se da essência vital de seres em que entrava nos sonhos. Crowe foi o único capaz de relacionar-se com uma súcubo fora de um sonho já que de todas as coisas que fazia, mudar de forma, era uma delas. Ele queria um filho de verdadeiro caos e se fosse metade humano, não seria bastante cruel, como ele imaginou. Pólen nasceu pouco antes do Deus da Escuridão ser aprisionado por seu pai com a ajuda de humanos e fadas, no submundo. Ele agora estava em uma jaula de aço negro nas profundezas mais escuras já conhecidas. Isso não o impediu de ensinar sua filha a desprezar aqueles que colocaram seu pai ali. A criança da escuridão, metade súcubo e metade deusa, tornou-se uma ágil assassina de homens, sempre indo atrás daqueles no topo, todos que tentaram ascender ao trono para tornarem-se soberanos em Velkhan. Logo, a lenda do filho da escuridão espalhou-se como água que corre depois da chuva. Ela era temida e odiada pela maioria dos lordes das cidades, por causa dela, Velkhan ainda não tinha um rei.
O paraíso não tinha um Deus regente como o submundo, há os que creem que ele ainda não havia sido criado. Contrário à Deusa da Morte, provavelmente seria um semideus primal cujo equilíbrio advinha de caos e ordem desordenado, a aposta de Volkihar estava completamente centrada em sua filha Kaliope, que desapareceu há três anos. O paraíso era lar dos anjos, eles é que mantinham a ordem e assim como os povos em Velkhan, cada anjo exercia uma tarefa que faria até a morte. Mas a guerra dos 900 dias, que fizeram criações medíocres se rebelarem contra os Deuses, despertou a revolta em alguns deles, que insatisfeitos com seus trabalhos queriam mais. Queriam o direito de escolherem ou não fazer aquilo a qual foram destinados. Mesmo sendo as criaturas celestiais mais poderosas depois dos semideuses, suas imperfeições tornavam-se destaque naqueles que infringiram as regras de Guerenon e Ayhan. Dentre os anjos que facilmente se revoltaram estava River, um anjo de segundo escalão cuja cobiça por poder tornou-o corrupto. Não demorou para o ser de ordem passar a dar ouvidos aos sussurros absurdos de Crowe e iniciar um desequilíbrio no paraíso.
A mando de seus criadores, Leone, um anjo de alto escalão e responsável por manter tudo em seu devido lugar, foi ordenado a matar River. Mas traído por alguns dos seus, Leone acabou expulso do céu e foi capturado pelos humanos. River tentou assumir como líder dos anjos, mas a maioria era bastante leal aos ideais dos Deuses da ordem e não quiseram curvar-se ao medíocre anjo de baixo escalão. Para conseguir o que queria, a única forma seria matar aquele à qual serviam, seu inimigo declarado que agora pisava nas terras de Velkhan. O anjo de asas brancas.
Dos humanos que triunfaram em Velkhan estavam nomes como o de Astrid de Azaror. Astrid era uma mulher da casa Azaror e uma das guerreiras mais lendárias de Velkhan. Ela lutou na guerra e além de ser uma das primeiras a erguer a arma de um Deus e usar de seu poder, foi uma das únicas a matar um deles. Astrid levou para baixo da terra a Deusa do Fogo e tornou-se a lendária guerreira de Azaror. Havia inúmeras canções sobre ela, havia estátuas de ouro em sua homenagem e em alguns anos todos sabiam de seus feitos. Por conta de Pólen, acabou tornando-se um dos primeiros nomes quando os humanos decidiram democratizar seus atos. Elegeram-na como rainha de Velkhan e para que não governasse só, ao seu lado estava Can, o mais novo de quatro irmãos, filhos do lorde de Belioz. Era um homem jovem de cabelos dourados, com a lábia do melhor dos chantagistas e apesar das incríveis habilidades com a espada, nunca matou absolutamente nada. Mesmo relutantes e odiando-se terrivelmente por conta de suas personalidades opostas, os dois se casaram poucos meses após a mulher assumir o trono. Formaram o primeiro reinado conhecido em Velkhan, nomeando os lordes que sobreviveram para cuidar das outras cidades. Assim como esperado por todos, mesmo depois de quase quinze anos de reinado, como quaisquer reis, Astrid e Can tiveram o primeiro herdeiro, o único pelo menos, uma garotinha de cachos loiros e olhos azuis nomeada como Stormy. Mesmo tendo um dos rostos mais angelicais de Azaror, tornou-se tremendamente malvada e encrenqueira como Astrid era em sua idade.
Havia uma desordem persistente em Velkhan, seres místicos que recusaram reverenciar a considerada mais insignificante de todas as espécies e desses problemas, surgiram os primeiros caçadores de recompensas, além de outros benevolentes cavaleiros que dedicaram suas vidas exterminando ameaças ao reinado humano. A filha da escuridão, lenda que circulava pelos domínios de Velkhan, fez Astrid e seus soldados trabalharem arduamente nas velhas histórias contadas por seus ancestrais, atrás de criaturas capazes de encontrar semideuses. O objetivo era capturá-los, assim seriam obrigados a encontrar os filhos de Deuses, acabando de vez com a grande ameaça à coroa. Dentre os capturados, estava Leone, que caiu em Azaror depois de seu duelo mal sucedido contra River e outros anjos. Para que não fugisse, ele teve as asas cortadas e por ser um anjo de alto escalão diziam que tinha a capacidade de encontrar semideuses.
Leone foi capturado por Astrid e torturado muitas vezes sem sequer tentar ferir qualquer um dos que lhe faziam mal e mesmo que quisesse talvez não poderia, já que era um ser de ordem e admirador da raça humana. Mesmo fraco por ter suas asas levadas, ele ainda era poderoso o bastante para encontrar semideuses e por isso, constantemente saía em jornadas ao longo das cinco cidades atrás de tais criaturas. Talvez ele tenha se encontrado com um deles, não há como saber, mas proteger os únicos capazes de reencontrar o equilíbrio era uma de suas tarefas e o anjo sabia disso. Em uma de suas jornadas obrigatórias depois de vários meses, Leone finalmente conseguiu fugir dos guardas de Astrid e desapareceu na floresta, agora com a missão de reconquistar suas asas para voltar ao céu e reaver a ordem, mas para tê-las de volta, teria de encontrar seres cuja existência era designada por ordem, porque mesmo admirando-os, ao contrário do que pensava, nem todos os humanos eram bons e isso custou-lhe tudo.
O anjo vagou alguns dias pela floresta densa de Azaror. Como não tinha asas, se parecia muito com um humano, sentia fome, sede e necessidades básicas comuns a quase todas as criaturas, por isso, precisava caçar e pescar para sobreviver. Em uma caçada rotineira, ainda seguindo o leito do rio que cruzava Azaror, ele encontrou uma menina de pouco mais de três anos, desmaiada no leito oposto de onde estava. Pensou estar morta, mas não poderia abandonar uma criança ali sem verificar. Após algumas escorregadas, enquanto atravessava para o outro lado do rio, ao tocá-la soube que estava viva e esse foi um dos motivos que lhe fizeram decidir protegê-la. Era uma bela criança, de longos cabelos negros, que parecia estar ali há dias, faminta e um pouco desidratada. Seus olhos tinham um tom azul profundo e mesmo sem ter ideia de que se tratava de Kaliope, filha de Volkihar, por conta do feitiço, Leone lhe acolheu, alimentou e enquanto a menininha crescia, ensinou-a a caçar, pescar, se proteger e até mesmo ler. Os dois viveram por muitos anos na floresta sozinhos, sobrevivendo do que a natureza oferecia sem a menina ter a menor ideia de quem era aquele que lhe ajudou ou porque insistia que se escondessem na floresta.
O tempo passou e Aleera, como agora era chamada, cresceu e estava com pouco mais de vinte anos, ainda sem ideia de quem eram seus pais ou qualquer informação sobre eles. Ela sempre quis ter uma família e apesar de considerar fortemente Leone como um pai, pensou que acabaria acolhida por alguma das famílias na cidade de Azaror. Aleera às vezes ia escondida até a cidade, pedia por comidas que não conseguiria ter na floresta, tentava fazer com que alguém sentisse pena dela e foi assim por vários anos. Acabou alimentando um forte sonho em descobrir sobre sua vida e viajar, viajar para qualquer lugar longe de Azaror. Além disso, pensava que não seria ruim saber sobre sua família, mesmo que fossem pessoas horríveis, já que lhe abandonaram, mas não importava.
Depois que Aleera aprendeu a se virar sozinha, com mais ou menos uns quinze anos, Leone achou ser hora de seguir atrás de suas asas. Por isso partiu em uma jornada atrás dos semideuses filhos de Guerenon ou Ayhan, eles poderiam ajudá-lo a reaver o que lhe pertencia, fazendo o anjo voltar finalmente ao céu. Com a partida de Leone, Aleera não tinha motivos para permanecer na floresta, então mesmo nas ruas, passou a viver na cidade de Azaror embaixo dos perigos que qualquer menina na idade dela sofreria. Em troca de água, comida e às vezes uma cama ou um teto sobre sua cabeça, ela passou a ensinar as crianças da cidade a ler e escrever, coisa que a maioria dos humanos naquela época não fazia. Ela passava o dia no mercado, rodeada por crianças e ensinava-lhes com pequenas placas de madeira feita por ela, juntando letras e formando várias palavras, depois, se desse sorte, algum pai ou mãe, comovido com ela, lhe cedia um prato de comida ou uma cama e assim terminava mais um dia sobrevivendo. Depois de alguns anos fazendo isso, a bela menina cresceu e tornou-se mulher. Uma bela garota que todos sabiam o nome e por isso, acabou chamando a atenção da monarquia. Aleera foi achada por alguns guardas do palácio a mando de Astrid e lhe arrastaram até o castelo. A moça, claro, apavorou-se pensando que seria castigada por educar as crianças, mas a rainha tinha a ela outros planos. Mesmo sem ideia de como uma simples mulher sabia tanto, ela tinha o pressentimento de que a jovem não se acovardaria dependendo do tamanho de sua responsabilidade, por isso, Astrid designou a ela uma tarefa que julgava digna de seus talentos. A moça tornou-se tutora de Stormy, a princesa, que tinha pouco mais do que sete anos agora.
Stormy cresceu rodeada por todos os poderes das quais uma princesa poderia usufruir e sem as rédeas autoritárias de seus pais, tornou-se uma criaturinha cheia de maldade, apesar da pouca idade. A menina nascida com muito custo do ventre de Astrid, parecia-se muito com a mãe, passava a maioria do tempo torturando os empregados com pedidos absurdos e quase impossíveis de resolver e outras crianças da cidade, exibindo regalias que tinha por ser princesa. Até aquele momento da vida da menina, ninguém teve a audácia de enfrentá-la. Claro, todos temiam a famosa rainha e sua ira que se conhecia pelos quatro cantos de Velkhan. Astrid tornou-se principalmente conhecida por não ser misericordiosa com quem lhe irritava e pensando que nunca lhe contrariariam por conta de sua mãe, Stormy transformou-se em espécie de ser indomável.
Havia um motivo para Astrid morar em Azaror. O castelo daquela cidade era um dos mais seguros das cinco, sendo escolhido especialmente para a família real. Além de enorme, tinha muitos lugares inexplorados e secretos, onde costumavam guardar tesouros valiosos e armas especiais. Antes da guerra, em cada um dos castelos, morava um Deus e ele fazia do lugar uma espécie de templo para exaltar sua própria divindade. Azaror era a casa de Wynona, a Deusa do Fogo. Há quem diga que Astrid escolheu aquele castelo como uma maneira de gloriar seu feito, ao matar a deusa, outros dizem que foi por mera questão estratégica. Lugares como o castelo de Azaror chamavam a atenção de ladrões audaciosos, já que histórias sobre riquezas divinas sempre se espalhavam rapidamente. Um engenhoso rapaz, de nome Athos, tratava-se de um desses ladrões. Não muito diferente de Aleera, ele cresceu sozinho após ser abandonado, mas ao contrário dela tornou-se um dos filhos do mar, um pirata que desde a infância aprimorou habilidades incríveis que usava para invadir lugares impenetráveis atrás de tesouros de valores inestimáveis.
Na tarde em que Aleera ia para o palácio se apresentar ao serviço a qual foi convocada sem a opção de recusa, seu caminho cruzou com o do jovem Athos. Os dois se esbarraram acidentalmente nos portões do castelo e o homem derrubou uma joia que acabou nas mãos da moça. Sem escolha, sabendo que acabaria decapitado, ele preferiu deixar o que derrubou para trás, assim que viu que os guardas lhe alcançariam e fugiu. Com a joia em mãos, Aleera seguiu para o palácio, tornando-se uma espécie de heroína, sem ideia do que salvou.
— Mulheres como você costumam ter um grande potencial. — Astrid encarou-a, ainda sentada sobre o trono, como se quisesse mostrar-se superior à moça, dez degraus distante da rainha. — Tens mais algum talento oculto do qual eu deva saber, jovem?
— Não, senhora. — mantinha a cabeça baixa, em completo sinal de respeito. Ousar encarar um rei ou uma rainha, sendo um medíocre servo, costumava ter punição.
— Você ensinará e cuidará da princesa, Stormy. Tudo que acontecer a ela será de sua responsabilidade e caso ela se machuque, a culpa será sua e terá de ser punida.
— Sim, senhora.
— Além de receber setenta moedas por quinzena, poderá morar no palácio, se alimentar na cozinha com os criados e terá sempre vestes limpas, algo um pouco mais parecido com uma tutora.
— Certo e onde a menina está?
— Será levada ao quarto dela. Espero que não me decepcione, caso contrário, qualquer punição dependerá exclusivamente do meu humor.
Aleera tomou aquilo como uma advertência que significava sua morte e acompanhou uma das criadas até o quarto de Stormy. A criada encarava a jovem moça com certa preocupação, seu olhar parecia querer alertá-la, mas a mulher decidiu não se intimidar, já que não tinha escolha e por isso faria o melhor que pudesse.
— Olá, princesa Stormy, sou Aleera, sua nova tutora.
— É mesmo? — ignorou-a e continuou a rabiscar os livros. — Vá buscar algumas amoras para mim, de preferência da floresta.
— Não sou sua criada. — respondeu-lhe, deu a volta e fez a menina lhe encarar enquanto se mantinha séria. — Lhe ensinarei a ler e escrever, zelando para que se torne uma boa princesa.
— Você? — levantou-se da cama, aproximando-se da mulher em pé e lhe olhou por inteiro. — Vai ter que fazer melhor que isso, garota. — bateu em uma das pernas dela com um pedaço de madeira que puxou debaixo da cama, nele havia muitos pregos e apesar de machucar Aleera, ela não recuou continuando séria. — Tsc, gosto das persistentes.
— Gosta de ver gente se humilhando aos seus pés só porque é uma princesa, mas não vai conseguir isso de mim, então sente na maldita cadeira e vamos a sua primeira lição. — apontou a mesa e a cadeira no canto do quarto, lugar dedicado aos estudos da menina.
— Não vai me obrigar! — a menininha desafiou-a e logo acabou tirando Aleera do sério.
— Ah, não? Veremos! — pegou a menina pelo braço e lhe arrastou entre gritos e pontapés, até chegarem ao cantinho dos estudos. Lá, Aleera levantou-a acima da cadeira e depois obrigou-a a sentar.
— Pagará por isso, sua insolente, pagará seriamente por isso! — tentou estapear a tutora, mas Aleera segurou o braço da menina, surpreendendo-lhe.
— Use sua raiva para aprender a escrever as letras. — bateu o braço da menininha no livro. — Deixe de ser mimada e escreva. — deu o lápis a ela e sentou-se em sua frente, sem mudar a expressão de desapontamento por cada atitude de Stormy, desde que chegou.
— Contarei a minha mãe. — retrucou, sendo vencida pela insistência de Aleera e começou finalmente a lição.
— Conte. — cruzou os braços. — Não é conhecida como soberana da maldade? Vai correr para a mamãe na primeira vez que alguém lhe enfrenta?
— Humf. — bufou encarando-a depois riu. — Seria interessante lhe ver sem os dedos.
— Aposto que os cachorros iriam adorar os seus. — debruçou-se sobre a mesa e devolveu o sorriso debochado. — Agora corrija essa letra G, está parecendo um Q, só que horroroso.
Claro que desafiar e fazer com Stormy o mesmo que a criança ocasionava a todos, fazia Aleera dar um passo mais próximo de uma sentença de morte, mas ela não ia passar seus dias, quantos fossem, como escrava particular de uma criança. Ou obrigava-a a aprender ou era melhor aceitar a morte. Com a chegada da noite, nunca ficou tão feliz em ter um quarto, uma cama em que pudesse deitar, descansar e dormir sem se preocupar com o que aconteceria a ela. Era um lugar agradável, relativamente luxuoso, com uma cama de casal enorme e um colchão que quando ela sentava nele não conseguia encostar seus pés no chão. Os travesseiros de penas eram macios como nunca, havia uma banheira ali, a água era trocada pelos empregados e ela podia tomar banho sem a menor pressa, lavando-se decentemente. Jamais teve nenhum daqueles luxos, ou mesmo um baú cheio de vestidos elegantes cujo tecido macio fazia-a querer usá-los pela eternidade. Lembrou-se de seus dedos furados pelas enormes agulhas, geralmente usadas para costurar sacos de trigo, que tinha de usar para consertar os rasgos em seus vestidos. Aquilo acabou e se finalmente conseguisse endireitar Stormy, ficaria feliz de viver ali.
— Deve descer e jantar conosco. — Astrid entrou no quarto e surpreendeu Aleera que estava deitada na cama, de olhos fechados, descansando um pouco. Ela pegou imediatamente a primeira coisa que viu, já que estava desacostumada a sentir-se realmente segura.
— Janto depois com os empregados, majestade. Não há porque se incomodar. — respondeu tentando desfazer o olhar desconfiado da mulher.
— Insisto que venha. — retrucou nervosa e continuou. — Não me faça lhe obrigar, isso geralmente não acaba bem.
— Se a senhora insiste, já vou.
— Vista-se e desça o mais rápido que puder. — virou-se e saiu batendo a porta.
Aleera escolheu um vestido qualquer e o vestiu. Enquanto descia para o salão de jantar, parava para reparar em si, nos reflexos da prataria que banhava as paredes e móveis do castelo. Nunca usou uma roupa tão bonita ou mesmo tão cheia de detalhes, cuidadosamente desenhados, mas ficou feliz por sentir-se apresentável pela primeira vez desde que se lembra.
Assim que chegou ao salão e despontou na porta, Stormy lhe apontou e gritou olhando a mãe.
— Mamãe, foi ela que brigou comigo!
O coração da moça parou praticamente de bater por um segundo ou dois. Era inegável que a morte passava de inúmeras maneiras por sua mente, chegou então o dia que faleceria? Sem saber sequer do motivo de sua existência?
— Senhora, eu...
— Não! — levantou o braço para que Aleera se calasse e olhou para a filha. — Não lhe ensinei a se defender?
— Sim, mamãe.
— Então o faça sozinha, se quiser. Não venha chorar no meu colo porque é burra e não consegue escrever.
Stormy fez careta para Aleera que ainda olhava ambas sem entender o que foi aquilo, após resmungar começou a jurar vingança e a moça continuou sem saber se sentava ou ia embora.
— Sente-se, Aleera. — Astrid apontou a cadeira. — O rei deve juntar-se a nós a qualquer momento, quero que se conheçam.
— Certamente, majestade. — sentou-se e sem disfarçar devorou a mesa com os olhos. Estava bastante farta, isso lhe fez pensar em quantas vezes não tinha o que comer, como muitos dos súditos de Astrid, que passavam fome nas ruas da cidade, enquanto ela sabia que metade daquilo iria para o lixo. Era um egoísmo que detestava, mas provavelmente não diria nada, já que contrariar a rainha ia contra qualquer um dos seus princípios.
— Já começaram sem mim? Qual o problema de esperar uns minutos? — o rei sentou-se em sua cadeira na ponta da mesa e depois de alguns segundos, enquanto sentiu-a confortável e observava os criados lhe servirem, voltou sua atenção para a única pessoa a mesa que não tinha cabelos dourados e não usava uma coroa. — Quem é essa mulher?
— Essa é Aleera, a nova tutora de Stormy... — Astrid apresentou-a.
— Vai durar quanto tempo desta vez, até que a mulher desista ou desapareça? — Can perguntou curioso sem deixar de olhar a moça que não demorou a se incomodar com aquilo.
— Não sei, mas se fosse adivinhar, acho que veio para ficar. — respondeu direcionando seu olhar a filha que ainda se mantinha resmungando furiosa pela maneira como foi tratada.
— É daqui de Azaror? — Can perguntou a moça que se assustou soltando os talheres sobre o prato. — Se acalme, querida, não costumo morder.
Astrid olhou o marido por cima dos olhos e puxou a taça de vinho sobre a mesa bebendo tudo em um único gole, depois virou-se um pouco para a esquerda tentando esconder a mulher sentada ao seu lado e instruiu com a cabeça para que ela respondesse.
— Desde que me lembro, majestade. — baixou a cabeça e rezou mentalmente para que ele não falasse mais nada, o que não aconteceu.
— Como nunca lhe vi antes?
— Sou bastante discreta, majestade.
— Não sei, tenho certeza que teria lhe notado no meio de qualquer multidão. Bem-vinda, de qualquer forma.
— Agradeço, majestade.
Aleera escutou o marido de Astrid curiosa, mas o que não sabia era o motivo pelo qual as outras tutoras desistiram ou supostamente desapareceram de Azaror. Não era por Stormy e sim porque o rei lhes transformava em amantes pessoais e a maioria delas já era casada, completamente diferente de Aleera, e acabavam descobertas por Astrid.
— Pode vir comigo, Aleera? — Astrid levantou-se e a garota lhe acompanhou sem sequer despedir-se de Stormy e o rei.
— Senhora, estamos indo a algum lugar? — olhava os corredores sem ter ideia do que a rainha queria com ela. Sua pele começava a suar e ela já pensava em como pediria perdão, independente do motivo.
— Na sua idade costumava ser uma das mulheres mais desejadas de Azaror. — entraram nos aposentos reais. — Você é uma bela moça, sabe disso, não sabe? — sentou-se em frente a um espelho e começou a pentear os cabelos.
— Por que a senhora está me dizendo isso?
— Quero que fique longe do meu marido, de preferência nem fiquem sozinhos no mesmo lugar. Ele acha que a terá, como um mero brinquedo de entretenimento. — olhou-a. — A maioria das mulheres da sua idade já está casada, mas você não... — levantou-se e ficaram cara a cara. — Se ele lhe tocar, por mínimo motivo que seja, mesmo sem a intenção de lhe possuir para si, lhe matarei, entendeu?
— Sim, senhora. — baixou a cabeça pensando no que tinha se metido.
— É a tutora de Stormy, nada mais que isso. Agora vá para o seu quarto e não saia de lá.
Aleera correu dali, entrou em seu quarto assustada e trancou a porta ainda ofegante. Com medo de haver outra chave, ainda empurrou uma mesa e uma cadeira na frente da porta, aquilo lhe daria tempo de acordar e se defender de quaisquer coisas que acontecessem a ela. Sentou-se depois, na cama, encarando a lua no topo do céu e permitiu-se respirar. Ela sempre adorou à noite, a maioria dela rodeada de um silêncio calmo que reinava por horas, lhe clareando as ideias e trazendo paz. Por fim, deitou-se e por estar exausta, sem dificuldade, adormeceu. Era a primeira vez em anos que dormia sem pesadelos e profundamente.
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