Capítulo 2
Observei bem o estranho na minha frente, tinha longos cabelos loiros, quase brancos e profundos olhos em um verde escuro, quase azul, se estivesse no meu reino, tinho certeza que não faltariam mulheres atrás dele.
- Você não parece em condições de se libertar - comentei, só para garantir que ele entendia a situação.
- Ah, isso? São realmente muitas, na verdade isso é meio que um elogio - ele observou as correntes em sua volta, e deu um leve sorriso zombador.
- Realmente, você deve ser muito perigoso para ele te prenderem tanto.
- Depende de que lado você está, só sou perigoso para os meus inimigos - olhou em volta, observando os herdeiros presos, e seus olhos ficaram escuros, como uma tempestade turbulenta.
- Então, qual é o plano?
- Plano?
- Você não disse que iríamos sair daqui? - ele ergueu uma sobrancelha.
- Achei que eu não estava em "condições".
Suspirei, seja quem fosse, essa não era uma pessoa fácil de lidar. Mas eu não tinha escolha, não se quisesse sair daqui. E eu precisava, não só porque esse era um lugar horrível e eu queria desesperadamente sair , mas porquê tinha uma missão, vim aqui por um motivo, um objetivo e ele não era ficar presa e escravizada. Tinha que descobrir a fraqueza de Lianof o tirano e usá-la em benefício do meu reino e faria o que fosse possível para cumpri-la, inclusive confiar em um estranho.
- Não é como se eu tivesse muitas opções, então se é pra escolher entre confiar em você ou ficar presa aqui, não é uma escolha difícil.
- Entendo - ele pareceu me observar com mais atenção - você não parece estar aqui há muito tempo, sua família descobriu que era uma herdeira e te enviou pra cá?
Era a segunda referência que eu ouvia a respeito de família.
- Por que pergunta isso?
- Bom, herdeiros não podem ser nobres - observou bem o seu vestido - e apesar de desgastadas, suas roupas não aparentam ser baratas.
- Está dizendo que ter uma herança é motivo o suficiente para escravizar alguém? - Ele me olhou surpreso.
- Você não sabe disso?
- Não sou daqui - tentei explicar evasivamente.
- Deve ser de muito longe - ele pareceu levemente interessado antes de deviar a atenção para as barras da cela - Parece que eles não são de economizar, as barras são feitas de ferro Astral, todas elas.
- Ferro Astral?
- Não sabe disso também? - ele suspirou - A Ferro astral é um metal antigo encontrado por acaso no fundo do mar Astal, parece ter sido achado a uns cinco mil anos atrás, ouvi que ninguém se interessou muito quando foi encontrado, era muito distante da costa e não valia a pena extraí-lo, e Fair não é exatamente pobre quando o assunto são minas, mas alguém finalmente resolveu tentar e imagina a surpresa quando foi descoberto que ele poderia conter heranças? Não só isso, mas também enfraquece os usuários - apontou para os escravos que tinham as mãos presas apesar de já estarem dentro das celas - Ótimo material para algemas não?
Não sabia como ele poderia brincar com esse assunto, mas isso explicava muita coisa, inclusive a fraqueza súbita que senti tocando as barras das celas. Mas se esse material tinha tal poder , por que eu nunca tinha ouvido falar dele até hoje?
E ainda estava no oceano Astral, o mesmo que dividia o continente de Linfaer do Fairiano. Como isso permaneceu em segredo?
- As correntes te prendendo são feitas de ferro astral também?
- Sim - ele respondeu com um sorriso e contive um tremor, se só tocá-las tinham me deixado totalmente sem forças, o que estar cercado com elas faria? Entretanto ali estava ele, sorrindo e falando como se não pudesse se incomodar menos.
- Ferro astral pode parecer comum só olhando, mas você não vai querer subestimá - lo - sua atenção foi para as mãos dela, livre ds algemas e sorriu - mas alguém com certeza a subestimou, sinto que você é uma herdeira, mas por que não a prenderam como os outros?
Dei de ombros.
- Aparentemente eles não me acharam ameaçante o suficiente.
- Estranho, normalmente eles colocam os com herança mais fracas para leilão.
- Leilão?! - o pensamento me horrorisou - Eles leiloam pessoas?
- Não. Eles leiloam herdeiros, não nos acham humanos. No entanto - apontou com um ombro para os demais nas celas - nos acham úteis. As pessoas que você vê aqui são para uso militar, os quinze reinos estão constantemente em guerra uns com os outros, e os herdeiros são a maior força bélica. Então eles pegam os poderosos o bastante para lutar e os prende em lugares como esse, até estarem treinados o suficiente para lutar na guerra sem ser uma ameaça ao restante do exército. Os mais fracos são leiloados para outras coisas.
Eu não perguntei para que, mas a lembrança do guarda dizendo que a venderia para a diversão de um lorde era fresca demais para ser ignorada.
Estremeci com o pensamento, sentia o fluxo da minha herança em movimento ainda agora, sendo usada para me manter no passado, seria muito simples cancelá- la e voltar ao presente, mas a ideia de voltar para o meu reino ameaçado sem ter feito nada, era ruim o bastante para arriscar ficar aqui.
Ele observou minha reação.
- Vou agir a partir de agora como se você não soubesse nada sobre Fair, dada sua reação. Você pode falar sobre sua terra natal depois, sinto que será interessante, mas agora temos que sair daqui, esse lugar está começando a me irritar.
- Então se considere sortudo, porque esse lugar me irrita desde que cheguei aqui - e eu me referia não só a esse lugar, mas toda Fair - Então qual é o plano?
- Antes de tudo, precisamos convencer esses herdeiros a se rebelar.
Olhei para ele incrédula.
- Sabia que não seria tão simples, essas pessoas não vão se rebelar, olhe os olhos deles, tão vazios, tão sem vida - virei apontando para as pessoas em questão, que nem prestavam atenção, apesar de não estarmos falando particularmente baixo - Essas pessoas não vão se rebelar, pense em outra coisa.
Ele me encarou por um longo tempo, até que eu me senti desconfortável, antes de falar suavemente:
- Eles estão respirando, então tem vida suficiente para mim.
Em seguida se virou para os demais prisioneiros, não mais me dando atenção.
- Já disse que não adianta.
Ele se virou pra mim novamente.
- Sabe, quando vi você pela primeira vez não achei que fosse do tipo que desiste fácil - deu de ombros - pelo visto me enganei.
- O que você quer dizer com isso? - perguntei, me recusando a cair na sua provocação.
- Escravos que não são inteligentes não sobrevivem muito tempo, principalmente em batalhas onde informação pode ser a diferença entre a vida e a morte, eles podem não reagir, mas quem disse que não estão prestando atenção?
Olhei para ele chocada.
- Você quer dizer que é tudo fingimento?
Por um momento sua expressão ficou sombria.
- Não, não é fingimento, eles não se importam realmente com muito, e sentem menos ainda, as condições os fizeram ser assim - suspirou - mas eles prestam atenção. É o bastante por agora.
- E o que você quer fazer?
- Observe com atenção, enquanto eu acendo as faíscas - ele se aproximou mais uma vez da cela e comentou para os outros presos com uma voz alta o bastante para ser ouvida por todos, mas não o bastante para chamar a atenção dos guardas - Eu fugirei desse lugar hoje e estou disposto a levar todos vocês comigo, quem virá também?
Nenhuma resposta.
Ergui uma sobrancelha sarcasticamente.
- Impressionante.
Ele não respondeu.
- Mas é claro - seu tom de repente se tornou sério, e ele pareceu se tornar uma pessoa completamente diferente, sem o sarcasmo ou a zombaria, a voz ressoando com força - Vocês podem escolher ficar aqui, sem nenhuma esperança de mudança, de uma vida melhor, apenas sobrevivendo, um dia de cada vez, até que as ordens, as humilhações e os castigos os tornem cascas vazias.
Ainda sem respostas, mas eu pude jurar que vi um ou outro corpo se mover, incomodado.
Ele também pareceu notar, pois se concentrou em um deles especialmente, um homem velho, mas que não parecia tão subjugado quanto os outros.
- E vocês não serão os únicos, seus filhos, serão como vocês, seus netos serão como vocês. E isso continuará. Ninguém virá salvá-los se não puderem se levantar e lutar por vocês mesmos.
O velho se virou pra ele e falou, a voz rouca como se não a usasse a um bom tempo.
- Já ouvi pessoas como você rapaz, com palavras bonitas e promessas vazias, e já vi o resultado com meus próprios olhos, não fará nenhuma diferença no final, desista enquanto pode.
- E se não forem vazias? E se eu tiver uma garantia?
- Que tipo de garantia?
- Uma cidade, e não uma qualquer, mas uma em que herdeiros são aceitos e livres, Elaria, a cidade impenetrável.
Um profundo silêncio caiu sobre o ambiente e eu pude jurar que as pessoas prenderam a respiração,como se qualquer barulho pudesse quebrar o momento. Pude entender o sentimento, uma coisa era uma pessoa falando de rebelião, isso sempre aconteceria e pela dureza dessas pessoas, não acabava bem , mas outra totalmente diferente era dar uma garantia, algo para que pudessem se agarrar e uma coisa que não tiveram a muito tempo. Esperança.
- Impossível, tal lugar não existe - o homem velho falou, mas pude ouvir a esperança na sua voz- conheçi a cidade impenetrável e nunca ouvi nada sobre isso.
- Então você não é um nascido escravo.
- Não, fui preso a cerca de trinta e cinco anos atrás, e já vi muitas tentativas de rebelião nesse tempo. Não acabaram bem.
- Eles puderam oferecer a mesma coisa?
- Não - ele admitiu - mas de que adianta ter um lugar para ir estando presos? Os guardas não pegarão mais leve, é impossível.
- Quer dizer que se estivessem livres, fugiriam comigo? - ele perguntou.
O velho homem assentiu, os demais o acompanhando, e pude ver o desejo em seus olhos. Olhos que momentos atrás estava vazios. Olhei para o homem ao meu lado admirada, ele não parecia muitos anos mais velho que eu, mas com poucas palavras pode trazer vida a esses olhares cansados, uma coisa que eu julguei impossível pouco tempo atrás.
Mas a situação não mudava, o que adiantava acender o desejo nessas pessoas se elas fossem continuar presas? Isso seria apenas cruel. Antes eles poderiam seguir em frente sabendo que nada ia mudar. Mas agora... sempre ficariam sabendo que há um lugar onde poderiam viver em paz. Aceitos. E nunca poderiam fazer nada a respeito. Um sonho próximo, mas ainda inalcançável.
Ele encontrou o meu olhar e pareceu adivinhar o que eu estava pensando. Sorriu maliciosamente, a seriedade deixando seu olhar.
- Há algo que eu não contei a você sobre o ferro astral.
- O quê? - perguntei desconfiadamente.
Ele sorriu mais ainda.
- Ele não pode me prender.
E eu olhei incrédula enquanto as correntes o rodeando derreteram, escorrendo a sua volta como água. E não fui a única, pude ouvir o arfar das pessoas nas outras celas junto com susurros de "impossível" .
Um herdeiro do fogo, e não um comum, eles ja eram raros, mas nunca vi um que poderia exercer as chamas tão quentes em tão pouco tempo.
- Parece que vocês não tem desculpas para ficarem presos aqui por mais tempo - e avançou, derretendo as barras da cela que nos rodeava antes de avançar para as outras, as pessoas antes sem reação, agora com os olhos brilhando diante da liberdade eminente.
***
Pouco tempo depois estava acabado, todos os herdeiros estavam soltos, olhando uns para os outros incrédulos e aos seus próprios pulsos, agora livres das algemas, como se ainda não pudessem acreditar.
- Temos que ir agora - falei para o homem, mesmo enquanto minha mente fervilhava com perguntas não respondidas. Como ele tinha feito isso? O ferro astral não deveria bloquear heranças? E se ele pudesse fazer isso antes por que não os soltou logo? Como foi capturado em primeiro lugar ? Mas essas perguntas podiam esperar, tínhamos que sair daqui agora.
- Por quê?
- Como por que? Os guardam devem estar vindo depois de toda essa comoção!
- E?
- Temos que fugir!
Ele sorriu.
- Por que deveríamos fugir quando temos uma sala inteira cheia de herdeiros com sede de vingança?
Congelei no meu lugar, ele tinha razão, os herdeiros já começavam a erguer o olhar, seus rostos antes vazios com outra expressão agora . Raiva. Ira. Sede de sangue. Estremeci, e nesse momento , sons de passos soaram no corredor .
Guardam encheram o restante do espaço vazio , apesar do número de herdeiros ser grande, os guardas dobravam facilmente essa quantidade. O mesmo guarda magrelo de antes, que agora reconheçi como o líder, se adiantou.
- Sabia que alguma coisa estava errada, você não seria capturado tão facilmente, não sei como fugiu, mas volte para cela agora junto com os demais, ou não vão gostar das consequências - ele tentou soar valente, mas o tremor em sua voz o entegrava. Números não fariam muita diferença para herdeiros , muito menos para esses que ficaram sofrendo nas mãos desses guardas por anos, sem poder reagir.
E o homem misterioso parecia saber exatamente isso quando ergueu os braços abertos e os estendeu de lado englobando as pessoas atrás dele.
- Sinto muito, essas pessoas são livres agora, não recebem mais ordens, e... - deu um sorriso torto - estão furiosas.
E abaixou os braços, parecendo soltar toda a fúria do mundo sobre os guardas conforme os herdeiros avançavam. Anos de abusos contínuos liberados em um momento só para engolir tudo ao seu redor.
E pude finalmente perceber o que esse homem quis dizer quando disse "acender as faíscas". Essas pessoas eram como faíscas soltas em palha e estavam prestes a iniciar um incêndio.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro