10. Banquete
Quando entrei no salão acompanhada de Helgan, as pessoas já bebiam e dançavam. A música que tocava era incrivelmente lenta, quase como as que já tinha ouvido tocar em caixinhas de música encantadas vendidas na rara feira do luar em Ístar. A decoração era dourada e vermelha, com arranjos suntuosos de flores e joias, lustres impecáveis e cheiro leve de anis, o ambiente era inebriante.
Dei um passo analisando cuidadosamente todos os presentes. Nira já estava dançando, ela e seu parceiro de longe eram os melhores dentre os pares. O par de Nira usava vestes de vocação que eram rosadas. Em seu cabelo curto, pingentes dourados se destacavam, não precisei olhar novamente para ver que vários homens e mulheres na pista de dança usavam os mesmos adereços no cabelo e a mesma cor de roupa. Aproximei-me um pouco, apenas para conseguir observar melhor quando o homem que acompanhava Nira cedeu seu lugar para uma mulher, que usava o mesmo tipo de roupas. Ela puxou Nira para seus braços, antes de recomeçar a dança, girando, enquanto a melodia se tornava mais grave e intensa.
Prendi a respiração, observando a beleza da dança, dos corpos se movendo lentamente enquanto os músicos tocavam a melodia apaixonadamente.
— São cortesões. — Ouvi a voz de Kiram atrás de mim.
Franzi o cenho, me virando para o príncipe de cabelos azuis. Kiram estava estonteante. Seu cabelo normalmente rebelde, e apresadamente amarrado estava solto e penteado.
— Aqui eles são chamados de nulicos.
Nas terras sem lei, existiam inúmeras prostitutas, algumas inclusive eram vendidas, chantageadas e agredidas para que oferecessem seu corpo sem restrições para aqueles mais fortes e mais ricos. Aqui, no entanto, não eram as terras sem lei, eram um dos reinos mais prósperos e ricos do continente, um que se orgulhava de seus valores e morais.
— Nunca pensei que veria isso aqui. — Falei.
Kiram deu uma risadinha.
— Também pensei assim quando os vi pela primeira vez. Mas o sistema de nulicas é bem diferente do que vemos no resto do continente. Eles não ganham dinheiro oferecendo seu corpo, não fazem isso porque não tem escolha, fazem porque é uma profissão, uma vocação artística como qualquer outra. Eles são pagos pela sua companhia, seus elogios, seus dotes artísticos e sua boa e aconchegante conversa. — O jovem terminou, ainda observando os pares terminarem a dança com graça.
— Então não oferecem sexo? — Perguntei.
Kiram assentiu.
— Oferecem. Eles são treinados em várias artes do sexo. Mas tem regras bastante rígidas sobre o assunto. O sexo deve ser uma proposta do nulica, pouquíssimos tem essa honra, e eles só devem fazer a oferta para aqueles que os fizerem sentir seguros, atraídos e confortáveis. A segurança deles é garantida por toda a guilda, e a lei para crimes sexuais é a mais rígida do continente.
— Mas não se engane. — Outra voz me fez desviar da conversa com Kiram. Davos se aproximava, acompanhado do restante de minha corte. O guerreiro com olhos diferentes tornou a falar. — O reino de rubi tem seus submundos, suas mazelas assim como qualquer outro lugar do continente, existem prostitutas fora do sistema de vocações, pessoas esquecidas, enquanto os nobres lutam para deixá-las ainda mais escondidas, e assim manter a boa imagem de Rubi.
Quando vi minha corte reunida, me dei conta que a vestimenta de Kiram se destacava. Ele não usava as vestes com as cores de minha porção como o restante do grupo. Apesar de parecer vestido apropriadamente para ocasião, Kiram estava com uma calça de couro preta, combinando com um casaco longo do mesmo material. Sua blusa de seda era azul como o céu da noite, e deixava a cor de seu cabelo ainda mais evidente.
— Pelo menos alguém de nós pode escolher o que vestir hoje. — falei dando um sorrisinho na direção de Kiram, que não devolveu o gesto.
— Ele não teve escolha. — Foi Jadeone que explicou. — Estrangeiros não podem vestir a roupa oficial de Rubi.
— Mesmo quando são membros de uma corte? — Perguntei.
Jadeone, que mantinha seu rosto livre de qualquer emoção, balançou a cabeça, sem tirar seu olhar do meu. Alexis, Starne e Davos, já se afastavam, procurando comida e bebida enquanto conversavam animadamente.
— A rainha usou uma brecha na lei de rubi para permitir que ele fizesse parte de uma corte. Mas o príncipe se recusou a se naturalizar, a abrir mão de sua posição na madeira, um nobre não pode ser nobre em dois reinos diferentes, é um conflito de interesses. De qualquer forma, ele não poderá permanecer na sua corte para sempre, três meses é o período de transição, depois disso a lei é clara ao dizer que apenas nobres de rubi podem ser parte da corte de um herdeiro.
Isso eu ainda não sabia e pelo olhar culpado no rosto do rastreador, eu era a única que desconhecia que nosso tempo tinha um prazo final. Kiram tinha uma posição no reino da madeira, tinha um lar, e eu não podia esperar que ele desistisse daquilo para me seguir em uma vingança pessoal. Dei a ele um sorriso tranquilizador antes de me virar novamente para a pista de dança, mas por alguma razão algo pareceu se quebrar dentro de mim.
— Herdeira Lorilae! — Uma jovem conhecida desviou das pessoas que agora esperavam a próxima música começar para chegar até mim. Era Pauline, a filha da rainha, a jovem sem título nascida no ventre real.
Ela se aproximou de mim e fez uma reverencia profunda. Que tentei deter sem sucesso.
— Não precisa dessas formalidades comigo, Pauline. — Falei rapidamente e ela estendeu a mesura para Kiram. — Princípe Kiram.
— Olá Pauline. — Escutei sua voz grave.
— Não tive a chance de agradecer propriamente depois que entrou no castelo. — Ela disse. — Se vocês não tivessem chegado naquela hora, não sei exatamente se estaria aqui hoje. Gostaria de convidar vocês para jantarem na semana que vem em meus aposentos, vou preparar a comida pessoalmente, não tenho instalações tão grande como as suas mas acredito que possa receber vocês com um singelo conforto, se decidirem ir.
Minha boca que abriu para recusar o pedido, mas algo no olhar de Pauline me fez pensar duas vezes.
— Vou ter que conversar com Helgan sobre isso, mas assim que puder confirmamos, tudo bem? — Uma comoção começou entre os convidados, que se aproximaram mais do mezanino que servia como palco para os músicos.
— Ah. — Pauline suspirou. — Estava torcendo para que ele cantasse hoje.
Vestido de roxo, uma figura encapuzada com traços familiares subiu ao mezanino. O som de um instrumento de sopro começou e silenciou as vozes e sons dos presentes no banquete, quando reconheceram a música. Alguns poucos pares se juntaram novamente no centro do salão. Nira estava entre eles, a maioria, entretanto, parecia ser composta de cortesão e dançarinos.
— Aida e Heide. — Pauline falou baixinho. — É uma das danças de baile mais difíceis.
A melodia da flauta era leve e parecia ser tocada com cuidado, mas mesmo assim as notas ressoavam por todo o salão. A dança começou quieta e sombria, os pares de mãos dadas quase não mexiam seus pés, até que o tambor acompanhado da voz grave que já tinha escutado entraram me fazendo perder o folego.
A história é de Aida e Heide.
Aida e Heide. O par. O amor de Aida e Heide.
Se encontraram quando o sol perdeu o brilho.
E se separaram quando a lua sumiu do céu.
Os pares dançavam uma dança complexa, muito próximos uns dos outros. Se separando e se encontrando, aumentando a sensualidade a cada batida nos tambores. Meus pés se mexiam inconscientemente, enquanto a melodia ficava mais rápida e profunda.
Aida era a vida.
Heide era a morte.
Aida a luz.
Heide as trevas.
Aida era parte de Heide
E Heide era Aida.
Até mesmo a luz do ambiente pareceu diminuir temendo atrapalhar a estranha sensação que tomava conta do ambiente como mágica. A rainha caminhou decidida para o centro do salão acompanhada de uma nulica mascarada. Elas se juntaram a dança no momento perfeito, quando os pares aproximavam seus corpos mais uma vez, rodopiando ao som da flauta e tambor.
Aida e Heide colidiram e amaram
Heide e Aida condenados a não serem
Eram.
Eram e não eram.
A voz grave e forte do homem que cantava se tornou ainda mais rouca para cantar a última parte, enquanto os casais terminavam a dança com passos complicados e respirações ofegantes. Olhei mais uma vez para o homem encapuzado que terminava a canção. Era o mesmo músico que tinha visto cantar na noite em que visitei a capital com Kiram.
A sensação estranha que a música teceu no ambiente demorou a se quebrar. E os casais permaneciam juntos respirando ao outro abraçados no salão, até que a música terminou completamente.
Meu corpo formigava e a mão de Kiram em minha cintura parecia fogo contra minha pele.
— Ele é incrível. — Pauline comentou. — O reitor da academia real de músicos.
— Qual é o nome dele? — Kiram perguntou despreocupadamente, enquanto mexia seu dedo levemente, transmitindo todo tipo de sensações, para meu corpo desperto pela canção.
— Kareno. — Ela respondeu com um sorriso, e meu coração perdeu uma batida. — Isoldo Kareno.
Meu olhar se voltou para o homem de cabelos e barba grisalha no mezanino, ele não saiu do lugar quando a música se encerrou e os músicos começaram outra canção agitava. Agora, ele olhava diretamente para mim.
— Lorilae. — Kiram chamou com cuidado, mas meus pés já andavam.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro