Os últimos guardiães de fronteira
Diana Clemente Sinclair
Divisão A dos Texas Rangers,
Houston, Texas, US, dias atuais
-Somente uma pessoa já o chamou de Alec James, portanto, não faça isso - alertou-me o meu misterioso guia. - Chame-o de AJ.
Decidi não perguntar de novo "Por quê?", pois ao que parece, eu já estava ficando repetitiva.
Nós atravessamos um longo corredor. Longo o bastante para que eu pudesse admirar e refletir sobre os retratos dispostos nas paredes. Eram pedaços congelados da História dos Rangers. Tropas em formação, com os homens austeros montados em seus cavalos, ou apenas empunhando os rifles ameaçadores. Lenços e chapéus cobriam seus rostos em meio a nuvens de poeira do deserto texano.
Los diablos tejanos... Assim ficaram conhecidos aqueles homens, em seu tempo.
Dizia-se que o Texas era uma terra de bravos. Dos mais convictos americanos. O lugar que definia o país, por excelência. Merica¹.
Parei diante de um retrato em destaque. Não porque fosse diferente dos outros, mas porque houvesse um nome escrito com letras douradas e gritantes: Alec James Quint. Analisei o rosto meio assustador - não muito visível naquela foto tirada no meio de uma rua deserta, de longe, com a luz da lua vinda de trás. Ele não estava posando, como se a imagem tivesse sido capturada em movimento. O cenário não parecia ser o Texas.
Ao lado de Alec, havia um homem idoso com feições indígenas e mais outros dois sujeitos um pouco afastados. Os nomes estavam gravados ali também, logo abaixo do nome dele. Eu era boa em línguas, então deduzi que um deles fosse de origem polonesa, ou russa, outro deveria ser de origem latina... Talvez, espanhola, ou castelhana, e o outro cara - com cicatrizes no rosto - era afrodescendente. Seu nome condizia com a expressão feroz. No entanto, poderia ser de qualquer parte do continente africano, quem sabe além...? Madagascar, talvez?
Todos na foto pareciam orgulhosos com o corpo de um enorme e peludo animal morto - resultado de uma caçada? Eu só não saberia dizer que animal era aquele... Dava para ver que era de extravagante, grande, descomunal porte. Parecia ser um lobo bem nutrido demais... no meio de uma área urbana.
-Búfalo - explicou o ranger que me acompanhava, num tom leve. Incitou-me a continuar andando com um toque leve dos dedos nas minhas costas.
- Búfalo? - resmunguei. - Não parece
- Você conhece búfalos? - ele me lançou um olhar de zombaria.
- Não, mas... Deixa pra lá!
E ele deixou.
Logo alcançamos uma porta de mogno maciça - provavelmente tão antiga quanto aquelas fotos.
Ele bateu de leve e girou a maçaneta em seguida, sem esperar resposta. Inclinou a cabeça para dentro da fresta e disse "ela está aqui" antes de escancarar a porta e avançar, com um gesto para que eu o seguisse.
Entrei logo atrás e mal tive tempo de assimilar o ambiente ao meu redor. As janelas altas cobriam praticamente toda a parede - do chão ao teto; eram de vidro quadriculado e deixavam entrar a luz do sol, formando cubos dourados. Um efeito muito bonito.
Os cubos de luz incidiam em cheio nas paredes forradas de placas de madeira, com as prateleiras embutidas, abarrotadas de livros e encadernações . "Uau", pensei, aquele escritório pertencia a uma pessoa que gostava de ler e estudar. Pelo pouco que pude observar, os livros pareciam ser de diferentes épocas e nacionalidades, considerando os variados estados de conservação. Reconheci os títulos de algumas das lombadas mais visíveis.
-Gosta de ler, Srta. Sinclair? - soou uma voz grave e imperiosa que atraiu minha atenção de imediato para a figura alta, de pé, atrás da escrivaninha.
Tentei divisar o rosto, mas estava oculto pela sombra da pesada cortina que adornava a janela.
-Sim, eu gosto muito - respondi com sinceridade.
Ele ficou em silêncio, como se estivesse me analisando. Enquanto isso, eu analisava a sua mesa. Havia papéis, livros e bloco de anotações, um notebook fechado... Nada diferente de qualquer escrivaninha de trabalho, exceto pela estrela de latão torta, aninhada numa caixa de veludo preto, com uma placa dourada onde estava escrito: AJ "Lobo" Quint, major.
Major... Ainda se usava essa hierarquia dentro de uma divisão que atualmente pertencia à Polícia Estadual do Texas? Mais um elemento pitoresco para pesquisar.
-Imagino que esteja curiosa para saber como a história de nossa família se entrelaça - ele mencionou, em tom casual; então, sentou-se diante da escrivaninha, apontando para a cadeira do lado oposto. Entendi a dica; embora não quisesse me aproximar muito daquele homem, pois ele me causava arrepios. Relutante, aceitei a sugestão e me sentei diante dele.
A sombra da cortina, portanto, mudou de ângulo. Agora eu tinha uma visão plena de sua expressão. Engoli em seco. Diante de mim, o rosto anguloso e austero de um homem idoso, com um par de olhos entre cinzentos e prateados - muito brilhantes e perturbadores. Olhos que não deixaram de me fitar e praticamente não piscavam.
Ele parecia com um daqueles animais que caçam. Como se chamam? Os predadores... Deve ter sido perigosamente belo, quando jovem. Do tipo que deixava as mulheres maluquinhas.
Ele moveu os dedos calejados pelo charuto, apagando-o no cinzeiro de prata trabalhada. Havia uma caixa de charutos de qualidade, ao lado do laptop. Relanceei o olhar pelo cenário atrás do homem. Sem dúvida, um homem tradicionalista como aquele, deveria ter um chapéu de cowboy em algum lugar. E ele não me decepcionou... Avistei um chapéu Stanton preto pendurado no cabide.
-Eu gostaria de obter mais informações sobre o primeiro Quint - expliquei, preferindo ir direto ao ponto. - Só recentemente fiquei sabendo que existe uma conexão entre ele e minha família.
O homem ficou quieto, por algum tempo.
-Era inevitável que descobrisse - comentou AJ, por fim. - A herança de sua mãe, avó e bisavó é inquebrantável. Mais cedo ou mais tarde a traria até aqui, isto é... Se você veio até aqui por um impulso natural.
Não entendi bulhufas. Estava começando a ficar aborrecida. Detestava gente que falava por enigmas. Franzindo o cenho, indaguei:
-O que quer dizer com isso, senhor?
O rosto dele se iluminou num sorriso lento, revelando um par de covinhas.
Cara, ele deve ter sido muito sexy quando jovem. Agora deveria estar com o quantos anos? Uns sessenta anos?
-Se você prefere que eu seja direto... O que estou dizendo é que você tem o raro dom de lidar com feras. Aliás, é atraída por elas, assim como elas são atraídas para você.
Se por feras, ele quis dizer que eu tinha o dom de conversar com pessoas intratáveis, então estava ridiculamente certo.
-Já percebeu como se sente atraída por assuntos e pessoas estranho? - ele prosseguiu. - Que quanto mais você investiga, mais eventos se colocam em seu caminho?
Por incrível que parecesse, ele não soou sombrio, ou assustador. Soou melancólico.
-Já, mas... Não sei explicar o motivo - encolhi os ombros, constrangida.
De repente, seus olhos se fixaram em mim com uma intensidade que me assustou.
-Isso é porque você tem o sangue da sua ancestral... Maria Júlia - o nome soou na boca dele como uma prece. Eu estremeci. - Você também é adestradora, como ela.
Minhas sobrancelhas levantaram em expectativa. E como ele nada dissesse, perguntei:
-Importa-se em me explicar o que é uma adestradora?
O som de passos nos interrompeu, fazendo-me lembrar de que o homem que me trouxe ainda estava na sala. AJ sorriu.
-Delimitando território, Sebastian? - O sorriso alargou-se, para depois morrer. - Acalme-se, garoto.
O comentário soou mais um aviso do que sugestão.
AJ se inclinou para mim e disse apenas: - Você vai descobrir tudo o que precisa à medida que avançar em sua pesquisa.
Assim, com o rosto inclinado na minha direção, a luz bateu em cheio no seu rosto esculpido - realçando pele curtida devido a prolongada exposição ao sol. Rugas acentuadas marcavam as feições belas e ainda másculas. A barba grisalha e bem aparada adornava um rosto familiar e desconhecido a um só tempo. Ele era a imagem viva de Odin, o rei dos deuses, em um dos livros de mitologia que estive estudando.
Só então percebi que estava diante de um homem com mais idade do que realmente aparentava. Possivelmente, com bem mais de sessenta anos. Oitenta? E ainda por cima, para meu horror, constatei que ele era uma versão mais velha da imagem que vi na parede do corredor. O homem diante de mim e o retratado se pareciam tanto que poderiam ser avô e neto. Então, me ocorreu, claro, que a semelhança se devia ao parentesco entre ambos. Pertencíamos a mesma família.
-Somos parentes afinal? - questionei.
Ele apenas balançou a cabeça, ainda me encarando.
-Você é a expressão viva de sua ancestral... Manteve o Clemente no sobrenome. Tem ideia de como o nome Clemente se perpetuou e o Quint, não? - ele encolheu os ombros, com evidente desgosto.
Deixei passar o fato de que Alec James parecia saber muito sobre mim, enquanto eu não sabia nada sobre ele.
-Aposto que está se perguntando como sei tanto sobre você... - seu rosto de abriu num sorriso franco.
-De fato...
-Eu vivi uma longa vida, senhorita Sinclair. Parte deste feito se deve a uma postura de esperar pelos acontecimentos inesperados. E este - ele gesticulou sugestivamente - definitivamente é um acontecimento que eu antecipei...
De repente, por um momento insano, ele me pareceu tão familiar, a lembrança de um sonho nebuloso. Assim como veio a sensação desapareceu.
Ele se levantou, estendeu a mão grande num cumprimento. Eu me levantei e aceitei o aperto, hesitante. Sua mão era calosa, mas agradavelmente quente e seca. A mão de um homem acostumado a fazer as coisas por si mesmo. A viver da terra e a consertar coisas. Ele não combinava com aquele escritório, embora aquele escritório combinasse com ele.
Se é que me entende.
-Sebastian irá levá-la em segurança até o seu carro. - Lancei um olhar para o enigmático Sebastian, enquanto AJ contornava a mesa. - Ele tem instruções de ajudá-la em sua pesquisa e acompanhá-la aos demais escritórios...
Sei... Ele iria vigiar os meus passos, isso sim.
-E a propósito... - Ele lançou um olhar esperto de mim para Sebastian.
-Vocês são primos... de uma certa maneira... Simbólica.
Cada vez mais confusa, girei nos calcanhares para observar o rapaz sob uma nova luz. Parente distante? Primo? Por que eu não me sentia parente de nenhum deles?
Sebastian evitou o meu olhar - na verdade, ele fitava a quina da mesa com especial atenção. Parecia mortalmente constrangido.
-AJ - murmurou, sem graça, então olhou para mim. - Não somos primos, tá legal! Eu sou meio que adotado, agregado, ou chame do que quiser...
-Detalhes técnicos... - Alec James estava se divertindo muito com o constrangimento dele. De seu peito amplo e ainda sólido brotou uma risada custosa. Como se Alec James não estivesse habituado a rir com frequência.
-Vamos - disse Sebastian e eu só acatei a urgência da ordem porque queria livrá-lo (e livrar a mim) do embaraço.
Caminhamos para fora do escritório.
-Até mais, Srta Sinclair - ouvi o Major Quint dizer às minhas costas.
Eu me voltei para ele. Continuava de pé, como se nunca descansasse. - Ainda vamos nos ver, antes que meu tempo nessa terra termine.
Achei muito estranha a sua escolha de palavras.
Sebastian ficou parado na porta, esperando pacientemente por mim.
Nós nos afastamos pelo corredor. Comecei a conjecturar a respeito de Sebastian. Eu estava na dúvida quanto a sua idade também, por causa da seriedade em seu rosto. Tinha todo o jeito de ser um homem muito responsável. Assim, de perto, porém, tive quase certeza de que devia ter basicamente entre vinte e cinco anos e trinca e cinco anos.
Eu o acompanhei pelo corredor silencioso.
-A que divisão os Texas Rangers estão subordinados? - perguntei, para puxar assunto.
-Investigações Especiais - respondeu Seb, sucinto.
-Que tipo de investigações especiais? - insisti, ligeiramente irritada com sua má vontade.
-Do tipo que envolve vítimas especiais e assassinos especiais - disse ele, com um sorriso cínico.
Não pude evitar de bufar. Ele riu de leve.
-Para conseguir extrair informações de um Texas Ranger, primeiro tem que ganhar a confiança dele - decretou.
-Você é um ranger, então?
Ele parou diante do meu carro e me encarou com intensidade.
-Ah, pode apostar que eu sou - respondeu suavemente.
E isso me deixou entrever o grau de força naquela resposta. Ele era um ranger até a medula.
-Vai ficar bem, Srta. Sinclair?
-Ah, pode apostar que eu vou - imitei o tom de voz dele. - O trajeto até o hotel não é longo.
Ele ficou mais sério do que já estava.
-Fique com o meu telefone, para o caso de precisar de alguma coisa - estendeu um cartão e partiu sem olhar para trás.
Não sei porquê, mas eu me senti decepcionada. Guardei o cartão instintivamente no bolso do casaco e entrei em meu carro.
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Eu não entendo o que foi que aconteceu! O carro simplesmente... morreu! E tinha que fazer isso numa região erma, no meio da noite... Sem iluminação... Saquei o celular em busca de ajuda, mas estava sem sinal. Que beleza. Fiquei puta! Saltei do carro para a noite cálida, com um toque de ventania. Os grilos cantavam, os vagalumes esvoaçavam perto de uma cerca. Ao longe, ouvi um mugido... Se não bastasse tudo isso, o relincho de cavalos se fez presente na sinfonia. Definitivamente, eu estava perto de uma fazenda.
Será que a sede ficava perto? Resignada, fechei o carro e comecei a andar. Foi quando ouvi um rosnado que me gelou até a alma. Era algo... Fora deste mundo. Parecia uma fera. Eu me virei, tentando identificar a origem do som, mas não consegui. Daí, o rugido se repetiu - mais prolongado, metálico, contundente, aterrador. Vinha de toda a parte e de parte alguma, ecoando mais forte com o ir e vir das rajadas de vento.
As vacas pararam de mugir, os cavalos silenciaram, os vagalumes desapareceram e os grilos deixaram de cantar. Eles sabiam que havia algo perigoso no ar. E os pelos eriçados de meus braços também sabiam disso. Comecei a correr de volta para o meu carro. Foi quando avistei ao longe uma "coisa" enorme em quatro patas... Parecia ser um cão negro, com olhos luminosos. Mas tão rápido quanto apareceu, ele sumiu, cruzando a estrada. E eu fiquei ali, em estado de choque, congelada no mesmo lugar, sem conseguir comandar o próprio corpo.
-O carro pifou? - soou uma voz atrás de mim.
Pulei, com o coração na garganta. A pessoa me segurou para que eu não caísse. Virei a cabeça e meu rosto ficou muito perto do de Sebastian.
-Você viu? - forcei as palavras pelos lábios, com o maxilar travado. Minha voz saiu estrangulada.
Ele franziu o cenho, confuso.
-Viu, o quê?
-Aquele... Lobo, cachorro, fera...
Ele me olhou sem expressão por um longo segundo, então, disparou a rir.
-Ah, você deve estar falando do Baskerville?
-Como é que é?
-O nome do cachorro é Baskerville - ele explicou, entre risadas. - Basker para os íntimos. Ele pertence aos Wilson, que são donos dessas terras. É uma piadinha porque ele parece um cão dos infernos.
Eu deixei escapar uma risada trêmula.
-Bota dos infernos nisso.
-Vamos - ele sugeriu, apontando com o queixo para onde estacionei.
Eu me deixei conduzir de volta para o meu carro, já que as pernas não me sustentavam direito. Pareciam feitas de geleia. Ele abriu a porta e fez menção de entrar. Mas, antes, olhou para mim e indagou:
-O que aconteceu?
Sacudi a cabeça, sem saber como explicar.
-Ele simplesmente morreu no meio do asfalto.
Sebastian fez um teste e constatou que o motor realmente não ligava. Ótimo, pois a coisa que mais me deixava puta da vida era quando relatava o problema ao mecânico e ele chegava lá, girava a chave e voilá! O motor pegava na hora. E eu... Bem, eu ficava com cara de tacho.
Ele saiu do carro, levantou o capô, analisou o conjunto por alguns instantes, depois mexeu em alguma coisa.
Olhou para mim e disse: -Tenta agora.
Sentei diante da direção e girei a chave. O motor respondeu, ronronando como um gatinho. Caramba! Tão fácil assim?
-Pronto - disse ele, se aproximando com um sorriso satisfeito. - Agora você já pode voltar para casa. Digo, para o seu hotel.
Eu girei no banco do carro e o encarei.
-Que coincidência, você passando por aqui... - comecei a dizer lentamente.
-Coincidência nada, eu estava seguindo você.
Sebastian não demonstrou o menor constrangimento.
Abri e fechei a boca, chocada. Não com a informação, pois já desconfiava, mas pela desfaçatez.
-Se não for pedir demais, poderia me informar o motivo?
Ele me deu um sorriso lento, tranquilo, que eu já tinha aprendido a identificar como tipicamente texano.
-O motivo é a sua segurança. E agora, por favor, dirija com cuidado. Vou acompanhá-la até o seu hotel.
-Não precisa - respondi, num tom cortante.
Muito sério, ele retorquiu:
-Eu insisto.
Apenas dei de ombros e arranquei. Ele teve que correr para o próprio veículo para me alcançar. A estrada fez uma curva suave adiante e eu diminuí a marcha no trecho onde o cachorrão jurássico estivera a poucos instantes. Tive um calafrio. Senti olhos invisíveis me observando de algum lugar escuro. Muito escuro... Foi uma sensação estranha.
Logo os faróis da caminhonete monstro de Sebastian me alcançaram e eu respirei aliviada.
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Estacionei diante do motel. Era um prédio simples, com dois pisos, e uma decoração de tijolinhos vermelhos à vista, ladeando todas as portas. Os corredores eram abertos tanto no térreo quanto no primeiro e segundo pisos.
O estacionamento amplo se estendia por toda a extensão do edifício. Coloquei o meu carro na vaga - bem de frente à porta do meu quarto, então desliguei o motor. Sebastian estacionou atrás, meio atravessado, indicando que não pretendia ficar muito tempo. Saltou da caminhonete, deixando os faróis ligados, e veio até mim. Pelo jeito de andar, aparentava não ter pressa.
-Não quer deixar o carro aqui e me acompanhar num café?
Por essa, eu não esperava. Fiquei olhando para ele... Aquele jeito texano, de fala mansa e acanhamento fingido... Sebastian não teve pudor em me explicar:
-Eu estive de serviço o dia todo e só agora vou poder fazer uma refeição decente. Contudo...
-Contudo...?
-Não gosto de comer sozinho - A confissão me tocou... Além do mais, o sorriso dele era irresistível.
Concordei com a cabeça, começando a sair do carro. Para meu espanto, ele estendeu a mão para me ajudar. Fechei a porta, tranquei, e ele soltou meu cotovelo, dando dois passos atrás, enquanto aguardava pacientemente.
Eu me virei para ele.
-Onde...?
Ele abriu outro daqueles sorrisos lentos, preguiçosos, tipicamente texanos. Era algo que o tornava um pouco parecido com AJ Quint. Eu não sabia exatamente o que era, mas os homens texanos... Ah, os homens texanos!
-Como é trabalhar para o próprio tio? - perguntei, enquanto caminhávamos lado a lado.
Ele encolheu os ombros.
-Nada demais, eu acho. Ele é duro em casa, duro fora de casa. A gente já sabe o que esperar - respondeu evasivamente, enquanto me guiava para sua caminhonete.
Um monstro de caminhonete, isso sim. Mas creio que eu já disse isso.
-Nossa! - gesticulei para a caminhonete.
O sorriso dele entortou, como um menino orgulhoso de seu super brinquedo. Homens! Nunca crescem!
Ele abriu a porta do passageiro para mim de um jeito cavalheiresco, e eu ajeitei a saia para conseguir subir de maneira elegante (ou quase). Ele lançou um olhar de apreciação para minhas pernas. Não foi um olhar lascivo, nem vulgar, mas de admiração. Sem dúvida alguma, um olhar masculino, de um homem que sabe o que quer, mas tem classe o suficiente para conquistar.
E foi nesse momento que ele me conquistou.
Minha tia avó já tinha comentado que às vezes são os momentos fugidios que capturam corações, levando uma pessoa na direção de outra... E desses momentos, tão fugazes, uma sólida base se constrói para a vida inteira. Ou não... "É uma loteria", ela me disse, lembrando-se de um amor da juventude (um amor platônico). "As vezes, minha querida, a gente ama mais de uma vez e ama de diferentes maneiras ao longo da jornada".
Pois bem, eu estava no começo da jornada... No alto dos meus vinte e oito anos, colecionava três relacionamentos fracassados. Mas em nenhum deles, senti o "o tchan" que o Drácula de "Transilvânia" tanto mencionava. Parece que "o tchan" bateu agora e eu me senti abalada até os ossos.
Não pude evitar um estremecimento.
Alheio ao que se passava comigo, Sebastian contornou o veículo e entrou pelo lado do motorista. Lançou-me um olhar intrigado e imediatamente ligou o aquecedor. Fiquei grata por isso.
O veículo deslizou pelo asfalto do estacionamento de volta para a rua. Seguimos num silêncio confortável, que nenhum de nós tentou preencher com conversa fiada ou música. Eu apreciei isso. O silêncio com ele era agradável.
Ele parou no estacionamento de uma lanchonete, ao lado do Walmart. As luzes da loja e o movimento dos clientes eram distrações bem vindas. Fiquei olhando... Não prestei atenção ao meu companheiro de silêncio. Ele tinha desligado o motor e recostado a cabeça no espaldar do banco. Eu chequei com a visão periférica.
-Você me acalma - disse ele, um pouco espantado.
Virei a cabeça para encará-lo, mas Sebastian estava com os olhos fechados. Um meio sorriso no rosto.
-Verdade?
Ele apenas assentiu, então seus olhos abriram. Julguei ter visto um brilho diferente quando me encarou.
-Nunca acreditei nessas coisas - disse ele, revirando os olhos para o teto da caminhonete. -Vamos lá? - ele não esperou resposta, abriu a porta e saltou.
Eu fiz o mesmo, para que ele não viesse abrir a porta para mim. O fato era que eu tinha receio de demonstrar a minha inquietação, se ficássemos muito perto um do outro.
Ele esperou que eu desse a volta e então apontou para a porta da lanchonete. Nós caminhamos lado a lado, outra vez. Agora, o silêncio não me pareceu tão confortável, por isso, eu decidi preenchê-lo.
-Você costuma ficar longas horas sem comer? Como assim?
-Às vezes... - disse ele, olhando para o céu, para a lua. - Incrível como você me acalma.
Eu não entendi o que ele quis dizer... Então Sebastian voltou ao assunto original:
-As diligências às vezes levam tempo...
-Por isso mesmo, tem que manter a energia e não descuidar das refeições - protestei.
Ele pareceu pesaroso, de repente.
-Às vezes, tudo o que temos a mão são porcarias.
-Ah, claro - eu entendi o que ele quis dizer. - Besteiras, né? Tipo, Chips, Doritos...
O sorriso dele ficou um pouco mais triste.
-É... Algo assim...
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Nota de rodapé:
1 - De América: termo usado para definir e enfatizar as qualidades e os valores do povo Americano, tais como o patriotismo extremo, zelo pela propriedade e proteção de seu território. N. da A.
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