Capítulo 55: Varandas e Vitrais (parte I)
A claridade finalmente encontrou seu caminho através das pálidas pálpebras fechadas de Iarima. Murmurando palavras desconexas provenientes de um sonho de que não se lembrava mais, ela apertou os olhos com força e jogou o antebraço direito por cima do rosto na missão de se proteger do despertar indesejado. Uma fisgada a saudou arrancando-lhe um gemido fino. Sem pensar, arremeteu o outro braço em socorro do primeiro e uma nova pontada lhe deu as boas-vindas. Sua boca encheu-se de uma saliva amarga e o arrependimento quanto a existir a fez morder os lábios. Todo o seu ser doía, chegou, finalmente, à infeliz conclusão. Ajeitando o corpo da forma mais lenta que conseguiu, deitou-se de lado puxando os alvos lençóis para lhe cobrirem não só o corpo, mas também a cabeça.
Demorou alguns segundos até que, num arfar, ignorando o protesto de todos os seus músculos, a moça se pôs sentada de supetão. O lamento saiu mais alto desta vez e sua boca, ao invés de ser mordida, pendeu-se aberta. Seus olhos arregalados ofuscaram-se na recepção da luz do ambiente e não foi de imediato que pode distinguir o enorme vitral que cobria a parede a sua frente.
Iarima conseguiu ouvir o bater do próprio peito. A falta de conexão com aquela realidade a fez ficar imóvel absorvendo em descrédito seus arredores, tentando avaliar a incoerente miragem que se apresentava diante de si. Não foi fácil captar as alvas paredes ao seu redor, a escrivaninha e penteadeira à direita, o gaveteiro a esquerda e um grande baú no sopé da espaçosa cama. Quem daria uma cama daquela para alguém sozinho dormir? A cor do cômodo pouco contrastava com os móveis de madeira clara. De cima a baixo, a vidraça transparente a sua frente denunciava um céu cinza e nenhum sinal de chão.
Desvencilhando-se dos infinitos lençóis, ela desceu de seu leito com o rosto em uma careta e seu coração pulou uma batida ao notar suas vestimentas. Calor lhe tomou a face ao se dar conta de que alguém havia lhe colocado uma túnica de um tecido muito ralo para o seu gosto. Indignada com o excesso de roupa da cama e a falta das suas, puxou um dos tecidos extras e tomou-lhe como capa para remediar a situação. Andando desconfiada, ainda reparou a inexistência de uma lareira no local e se perguntou como a temperatura se mantinha agradável. Notando uma maçaneta no vitral a frente, torceu-a, descobrindo que parte da janela se abria dando acesso a uma espaçosa varanda externa.
A brisa leve e fresca saudou-a com um familiar cheiro cítrico no lado de fora da construção e, ali, bancos de madeira e vasos de plantas espalhavam-se graciosamente. Caminhando até o parapeito de pedra de desenhos estranhos, ela perdeu o fôlego ao olhar para baixo e se dar conta da altura em que estava. No chão, à distância, um mar de folhas vermelhas se estendia até onde seus olhos alcançavam. Se não fosse o suficiente para reconhecer o lugar, o brilho colorido vindo da parede mais abaixo fez a jovem tornar o corpo em direção ao seu quarto e mirar acima do vitral que havia atravessado. O majestoso edifício de pedras brancas e runas flamejantes se erguia numa altura que nunca conseguiria calcular. Meio idiota, ela ficou olhando aquelas paredes sem muita noção do tempo até que constatou que a varanda se estendia tanto para a esquerda quanto para a direita, alcançando pelo menos outros dois vitrais. Concluindo que aqueles deveriam se tratar de quartos de outras pessoas, ela sentiu o suor brotando-lhe nas têmporas ao lembrar do quão pouco estava vestida e tratou de voltar para seus aposentos tendo certeza de ajustar o lençol que lhe cobria para mais perto do corpo.
De alguma forma havia chegado à Torre de Ignis, nunca esqueceria a visão daquelas runas coloridas à distância. Como, ela não fazia ideia. A surpresa de sua acomodação deu lugar à lembrança de seus amigos e um aperto lhe alcançou o peito. O pântano, os gritos de Camus, o ataque dos seres que saíam das águas... ainda forçou a confusão das memórias numa sequência lógica, mas nada mais veio. Precisava encontrá-los, disso tinha certeza. Antes, porém, precisava se vestir. Iarima revirou todas as gavetas e o baú, mas não encontrou nada além de espartilhos e vestidos. Como iria vestir aquelas coisas sozinha? Por fim, pegou as maiores peças que encontrou, o traje mais fechado e, sem sequer tentar espartilho algum, vestiu-se como quis.
A pesada porta de madeira clara reclamou em um ranger fino ao ser aberta, demonstrando que não era usada com muita frequência. O corredor de pedras muito límpidas que se apresentou a sua frente lhe causou admiração e ansiedade, vendo-o vazio e comprido. A jovem inspirou fundo e iniciou suas passadas lentas e doridas sob os liós que flutuavam abaixo dos belos suportes de madeira trabalhada que pendiam do teto. No chão, um tapete estreito seguia por toda extensão daquele caminho. Sua cor era creme e ornado com arabescos em tom vinho, a única cor contrastante naquele cenário. As poucas portas que viu ali eram cópias exatas da de seu quarto, fazendo-a imaginar que se tratava de dormitórios similares. Apesar da vontade de abri-las, o medo de dar de cara com alguém que não fosse um dos seus em um aposento tão pessoal conteve seu ímpeto.
O corredor não terminava nunca. Os sapatos de couro mole que havia calçado não faziam mais que um sussurro ao tocar na tapeçaria ao chão e ela imaginou se esse seria o motivo de não ouvir sons que denunciassem a presença de outras pessoas naquele lugar. Ela sentiu as mãos suarem e nem o reconfortante cheiro de canela lhe acalmou o coração. O caminho prometia acabar em um "T", já trazendo a inquietação de qual direção escolher. Ao alcançar o fim de seu trajeto, olhando à direita, um corredor similar ao que tinha percorrido se oferecia. Antes de tornar para o lado oposto em avaliação, ouviu um arfar surpreso e o barulho de um objeto cair em um som seco sobre o carpete. Iarima flexionou os joelhos em reflexo e tornou o rosto arisco em recepção ao que quer que fosse aquilo.
Uma senhora baixinha a olhava com olhos bem abertos e a mão enrugada lhe recobria a boca. A caneca ao chão e o líquido amarronzado que lavou o tapete responderam quanto ao barulho que ouviu. De cabelos cacheados e mesclados em fios brancos e negros, ela tornou as sobrancelhas em arcos para cima e a mão à frente do rosto foi alcançada pela outra mão, juntando as duas palmas em um aplauso interrompido.
— Acordou! — Sorriu a mulher em uma voz madura e emocionada. — Me perdoe, milady. Você parecia abandonada em seus sonhos, não esperava que fosse despertar agora.
Iarima ergueu o corpo com olhos estreitos, assistindo a senhorinha de vestidos trabalhados recolhendo seu copo e seguindo animada em sua direção. A mulher manteve uma mão colada à uma das redondas bochechas enquanto olhava a jovem com os lábios curvados para cima. Ela estendeu o braço e tocou-a no cotovelo direito e a guerreira sentiu seu corpo tencionar. A dona percebeu sua postura e seus pequenos olhos pareceram tristes.
— Ah, criança... — suspirou, abaixando a mão ornada em inúmeros anéis. — Eu entendo. Tome seu tempo. Imagino sua jornada até aqui e não é justo esperar que se sinta entre os seus — falou revelando os olhos húmidos.
— Onde estão meus amigos? — retrucou Iarima.
— Oh, sim! Devem estar almoçando, a maioria ainda está. Vamos — deu tapinhas no braço da moça, tornando o corpo para o corredor do quarto —, antes precisamos ajustar essas roupas, não podemos nos apresentar assim, não é?
— Me leve até eles agora. — O cenho se estreitou.
A mulher torceu a boca e suspirou. Tornando o corpo na direção de onde havia vindo, ela gesticulou convidando-a a acompanhá-la. Andando devagar, limpou a garganta e manteve o olhar adiante.
— Aqui usamos a expressão "por favor", milady. Que tal experimentar?
— Por favor — respondeu entredentes.
A senhorinha sorriu e acelerou os passos. A jovem teimosa, ainda que com todo o protesto de seu corpo, se forçou a acompanhar.
O corredor que seguiram deu em uma escada de madeira com desenhos interessantes, que deu em um outro corredor, que deu em uma outra escada. A decoração mantinha os padrões claros, as paredes eram em pedra na sua grande maioria, mas madeira também era vista. Por vezes, enormes vitrais surgiam cobrindo uma parede inteira e por outra apenas os brilhantes liós faziam a iluminação. Iarima já havia se perdido e, sem dúvida, se fosse deixada ali sozinha, nunca mais conseguiria chegar ao quarto em que dormiu. Por fim, cruzaram uma das janelas que deu em um corredor externo, seus pilares rústicos supostamente segurando a estrutura e o mar vermelho se via na paisagem abaixo um pouco mais próxima. Dando em um outro grande vitral, as duas adentraram um amplo ambiente e pela primeira vez, Iarima viu outras pessoas além da senhorinha naquele lugar.
As paredes à direita e à frente eram completamente de vidro com suas pecinhas transparentes encaixando-se e formando nenhuma imagem que pudesse distinguir. Várias mesas compridas de madeira grossa e amarelada espalhavam-se pelo salão e liós flutuavam em pontos paralelos, mas sua luz se resumia a pontos dourados intimidados pela claridade vinda do exterior. Nas paredes de pedra, tapeçarias de belos padrões ocupavam um ou outro espaço e o teto exibia-se em uma versão grandiosa do que Iarima havia visto na casa de mestre Hynkel: um imenso madeiramento abobadado com arabescos dourados desenhados entre as junções da madeira. Não fazia sentido como aquilo se sustentava sem nenhuma coluna visível no amplo cômodo.
A maioria das mesas estavam vazias. Mais ao fundo do salão, três delas mostravam talheres reunidos, utensílios e copos espalhados. Diferentes pessoas, sentadas em pares ou em trios, silenciaram suas conversas ao perceber as duas mulheres que adentraram o local. Seus biotipos eram de diversos tamanhos e aparências. Uma mulher exibindo grandes chifres retorcidos como galhos saindo do alto de sua testa e orelhas como as de um cervo, vestida em um vestido verde e de bordados marrons, segurou os olhos de Iarima por um momento, seria difícil não registrar a visão. Na última mesa ao centro, diversos pratos ainda mostravam abundância, com frutas coloridas, jarras de cabos em formatos curiosos, aves assadas com mais ossos visíveis do que carne e cumbucas com sopas ou travessas com grãos.
Uma quarta mesa, preenchida pela metade, superou qualquer das distrações que tomavam os pensamentos da jovem. Uma criança loira gargalhava sonoramente, batendo os pequenos pulsos contra a madeira espessa. Ao seu lado, um grande e robusto homem branco, de barba e cabelos castanhos sorria despreocupado. As duas cabeças de costas e de cabelos negros que viu, uma mais alta e de fios lisos, a outra mais baixa, de madeixas bagunçadas e com um globinho amarelo nos ombros, fez a moça sentir as pernas vacilarem. Ela deteu seus passos para retomar o ar e encarou a mulher ao seu lado sentindo seus olhos arderem.
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