Capítulo 54: O que as águas guardam (parte II)
Iarima bateu a cabeça e sentiu seus sentidos turvarem. Seu peito ardia e os músculos dos braços e pernas doíam pela intensidade e rapidez com que se contraíram ao receber o ataque. Jogada de costas ao chão, ela piscou algumas vezes com força, encarando o céu de nuvens escuras, sem se lembrar de onde estava. Se apoiando nos braços que formigavam, ela se sentou fazendo uma careta. Seu cenho se franziu quando uma figura alta, magra e de nariz aquilino caminhou de dentro da névoa em sua direção. Mesmo que sujas, as roupas de fino corte não faziam sentido em um cenário como aquele. Quem era aquele velho?
— Patético — resmungou os lábios finos.
A jovem estreitou os olhos tentando encaixar as peças da cena que assistia. Um idoso que parecia flutuar, mal pisando o chão, uma bola vermelha brilhante voando à frente dele, uma terra batida e estranha por toda a volta, lama e névoa mais a frente... Seus ouvidos captaram um urro animal misturado a gritos destemidos e lamentosos à distância. Ela fez menção de levantar-se, mas uma nova descarga de energia atravessou seu corpo, fazendo-a se contorcer e gritar. Encolhida, ela sentiu o gosto do sangue no lábio que havia mordido. Seus olhos lacrimejaram.
Lakatos parou onde estava e suspirou. Ele fitou a moça encolhida ao chão e torceu a boca, voltando seus olhos ao grupo atrás e ao cenário redor. Ele distinguiu a espada largada ao chão e a tomou, avaliando os entalhes que adornavam a empunhadura e a lâmina.
— Eu esperava mais, amigo Iarim... É uma pena que ela não tenha se tornado a arma que prometeu levantar — disse admirando a espada. Ele assistiu a garota levantar-se cambaleante. — Se assim fosse, eliminá-la seria menos pesaroso.
O tempo seguia um ritmo diferente na confusa mente da guerreira. Iarima assistiu o homem entretido com a espada e algo lhe disse que aquilo a pertencia. Por que o velho estava com algo que era seu? Os rugidos haviam desaparecido e ela ouviu um nome sendo gritado ao longe: "Iarima!". Ela conhecia aquela voz. Ela conhecia aquele nome. Aquele era seu nome. O grito chamou mais uma vez. O homem fincou a espada ao chão e a jovem buscou de onde vinha o chamado.
Não foi difícil de encontrar o clarão em chamas. À frente da explosão, um espadachim banhado em vermelho desferia espadadas em inimigos que se multiplicavam contra ele, enquanto uma criança loira e ferida esquivava e estocava seres cadavéricos. As labaredas retrocederam e Iarima enxergou um monte daquelas coisas aglomeradas sobre um homem que tentava arrancá-las de si. Um pontinho verde flutuava acima de tudo e bolas de fogo giravam em torno de um rapaz que poderia jurar já ter visto antes. Ela assistiu quando uma das criaturas se agarrou às costas do menino e o grito familiar saiu de sua boca: "Iarima!"
'Camus!', ela lembrou. Os nomes de cada um deles surgiram em sua mente e seu coração disparou. A cena era aterradora. Seus amigos estavam feridos e cercados por um número de inimigos muito maior do que poderiam enfrentar. Em um milésimo de tempo, a mente de Iarima se iluminou no calor da urgência que dominou seus sentidos. A única família que já teve estava em perigo e ela precisava ajudá-los.
Iarima abaixou a cabeça e correu, ignorando o seu redor. Nem tinha dado a segunda passada quando sentiu um impacto contra seu peito, travando seus movimentos e queimando seu interior. A dor lhe fez soltar um brado entredentes, mas ela travou os pés ao chão, se recusando a cair. Tornando o rosto em luta contra os espasmos que sentia pelo corpo, a guerreira encarou o seu agressor. Aquele velho. Ela sabia quem ele era. Por culpa dela, ele havia matado o mestre de Dário e de Camus. Ela havia prometido matá-lo.
Einar Lakatos franziu o cenho ao ver a garota curvada, mas de pé. Ela havia acabado de receber o terceiro de seus ataques e, ao invés de perder os sentidos ao chão, mostrava os dentes, enrugando o nariz e lhe encarando com olhos obstinados. Aquilo não fazia sentido. Ele fitou a espada fincada ao chão e estreitou os olhos, lembrando das últimas palavras de Lorde Iarim Tordefort. Não importava o que o antigo amigo tinha prometido, não havia treinamento no mundo que fizesse um humano manter-se de pé ao enfrentar aquele tipo de ataque.
Lakatos viu Iarima levantar os ombros e ajustar a postura, iniciando passadas pesadas em sua direção. A garota tinha cocô na cabeça, claramente. Fosse lá o fenômeno que a mantinha de pé, aquilo não era importante. Ele esperou vinte anos por isso e não precisava mais se delongar. A filha de Lorde Tordefort iria morrer. Agora.
O ancião girou as mãos a frente do peito com o orbe cor de sangue flutuando entre elas. Raios saíram de dentro da pedra alcançando cada um dos dedos do homem. Estalidos e zunidos se ouviram à medida que a espessura e quantidade dos raios se acumulavam. Olhando por baixo das sobrancelhas a jovem que diminuía a distância entre os dois, ele conjurou a magia que daria fim àquela saga:
— Få det överstökat!
Um raio da largura do espaço entre as mãos de Lakatos venceu a distância entre mago e guerreira em um micro espaço de tempo. O peito dela foi acertado precisamente e, como se fosse o mais leve dos seres, seu corpo foi arremessado a boa distância. Caída, de cara ao chão, o som dos gritos de seus amigos soou mais fortes. Antes, ecoando como brados de ataque, agora refletiam desespero e lamento. Ela apertou o solo com as mãos que ardiam e mordeu a boca engolindo o gemido que lhe queria correr pelos lábios. Tornando o rosto ao lado, levantou a cabeça de forma vacilante e viu um vulto tombando sob a montanha de corpos. Seu coração quis arrebentar seu peito. Ela puxou o corpo débil tentando ver seus amigos, sentindo sua cabeça latejar e seus olhos arderem. O sangue lhe correu gelado e sua respiração não trouxe ar algum.
Lakatos aproximou-se com olhos estreitos e lábios tortos.
— Morra de uma vez e poupe a todos nós! Ian Matela Ashdurf!
De dentro do orbe, um novo raio se materializou rasgando a curta distância entre o mago e a garota.
Um brado de dor abandonou a boca de Iarima. Lakatos não recolheu seu ataque, queria ter certeza de que aquele seria o fim definitivo daquela história absurda. Ela sentiu todo o seu corpo contrair e as forças lhe falharam. O ar não veio. Sua existência estava presa por um último fio e este se rompia. A escuridão tomou seus olhos. Um profundo silêncio a abraçou... E nada mais existia. Nem a dor. Não havia nada mais a ser feito.
Na mente vazia, a imagem de Camus surgiu. O corpo do rapaz estava sem vida aos seus pés e seu rosto a fitava com olhos estáticos. Ao lado dele, Edriên, Dário, Artus, Luna... Ela já tinha visto aquela cena antes. O sonho de dias atrás. Fazia sentido. Agora que nada mais sentia, ela entendeu. Desistir. Era tão mais fácil. Era quase... reconfortante.
"Quando se tornar incapaz de sentir a dor dos outros ou a sua, Iarima, você deixará de ser alguém por quem eu lutaria".
A voz de Camus se fez real em sua mente e uma profunda tristeza tomou seu ser. Como ela poderia aceitar a derrota e abandonar aqueles que dariam a vida por ela? Não. Ainda que fosse mais confortável. Ainda que doesse. Ela não aceitava ser capaz de algo tão covarde.
Iarima abriu os olhos e lágrimas acumularam-se pelo arder que lhe tomava o corpo. Ela enfiou as unhas na terra enquanto tentava se colocar de pé. A garota fez uma careta, gemendo o mastigar de seu corpo, mas ela não desistiu. Quando levantou o rosto, Lakatos perdeu a cor ao ver os olhos inumanos da garota, tomados completamente pelo verde e as pupilas substituídas por linhas verticais negras. Lakatos tomou o orbe nas mãos e, esticando o braço em direção a guerreira, aumentou a potência de seu ataque. Ela não se mexeu. Seus olhos bizarros buscaram seus amigos e em seu lugar encontraram nada além de uma pilha de seres monstruosos. A visão lhe arrebatou os sentidos. Cega de fúria, incapaz de se controlar, uma explosão de energia dourada aconteceu.
Sendo o primeiro a receber o impacto, Lakatos foi arremessado para trás enquanto se tomava em chamas. A esfera dourada de energia se expandiu correndo o pântano em uma velocidade absurda, transformando os mortos vivos em partículas flamejantes. Quando Iarima viu os corpos dos quatro amigos caídos ao chão, seus joelhos fraquejaram. Sem nada que aliviasse o impacto, ela tombou de forma seca no chão duro.
Não havia ninguém ali para assistir uma luzinha verde e fraca se afastando cambaleante do cenário de guerra.
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