Capítulo 4: Mãos douradas
A viagem seguiu tranquila grande parte do tempo. A carroça coberta sem dúvida era um conforto vindo em boa hora, pensou Edriên. Ter cruzado com o druida não havia sido tão ruim, no fim das contas. Conseguiu alguns trocados, além da garantia de que agora seguiria descansado e bem alimentado. Sua sorte parecia mudar.
Iarima mantinha seus olhos perdidos no branco da paisagem. Sua mente se ocupava em imaginar como recuperaria tudo o que havia perdido. Agon era sua única pista. Depois do alvoroço do último dia, lembrava-se bem de quando o viu pela primeira vez, há seis anos.
Em pequenos vilarejos, duas coisas eram sempre iguais: Todos se conheciam e notícias nunca demoravam a se espalhar.
Era uma daquelas improváveis visitas à vila. Naquele dia, por todos os lados se ouvia sobre o estranho de Tenbrenan que estava nas proximidades. A história pouco a interessou. Ela mesma costumava ser motivo de cochichos e cultivava pouquíssima pretensão em gastar seu tempo com conversas. Como sempre, faria o que precisava e tomaria o caminho de casa.
Ao cruzar a vila, porém, percebeu um senhor com trajes bem diferentes dos locais. Era um homem mediano, barbado e com uma enorme cicatriz que lhe cortava toda a face esquerda. Ele a encarou de forma estranha. Desconfortável com a atenção, Iarima seguiu em passos rápidos para a casa de seus pais adotivos. Poucas horas depois, qual não foi sua surpresa ao encontrar aquele homem em sua casa?! Argmud estava muito nervoso e Lyah, sem perder tempo, tratou de trancar a menina no cômodo mais distante da sala possível. Iarima ouviu uma grande discussão, mas não conseguiu entender sobre o que falaram. Quando Lyah finalmente destrancou o quarto, o homem já havia partido.
Desde aquele encontro, as brigas de Lyah e Argmud se tornaram mais frequentes. As frases: "É tudo sua culpa", "estamos perdidos" e "será o fim!" se tornaram corriqueiras nos dias que se seguiram.
Vez ou outra o estranho homem retornou. Suas visitas eram rápidas, Argmud o recebia sempre com uma bolsa de moedas e dali mesmo ele partia.
Há pouco menos de três anos, Iarima caminhava num dos bosques próximos a casa quando percebeu o estranho ali. Antes de pensar qual seria sua atitude em relação a ele, ele a surpreendeu com sua aproximação.
"Iarima! É este seu nome, não? Como vai?"
"Diz meu nome, não deveria antes apresentar-se?"
"Que pecado o meu! Me chame de Agon. Mas... meu nome é medíocre perto do seu. Tem uma história muito interessante, sabia?"
Argmud surgiu de algum lugar e o estranho se calou tornando seus lábios para cima. Seu pai adotivo estreitou seus olhos para Iarima e ela entendeu que havia feito algo errado. Agon tornou sem cerimônia e Argmud o levou até em casa. Iarima nunca esqueceu aquele sorriso sarcástico que o estranho deixou.
Apesar de tudo, ela não deu importância ao diálogo, pouco lhe interessava qual história teria seu nome. Viu o estranho uma ou duas vezes no ano seguinte, até que nunca mais retornou.
Como estava arrependida agora! Tudo fazia sentido! Esteve tão perto da verdade e a tinha ignorado! Era-lhe claro que Agon a havia reconhecido. Provavelmente conhecera seu pai ou sua mãe e ao vê-la no vilarejo a ligou a eles imediatamente. Sabendo do rapto, chantageou Argmud para manter seu segredo! Sim! Encontrando Agon, ele lhe diria onde estão seus pais!
— Então a senhorita segue para a cidade fortaleza, ahn? Me pergunto o que uma jovem donzela sem bagagem faz indo para estas bandas... — Edriên interrompeu os pensamentos de Iarima.
— Eu tenho bagagem.
— Ah, sim... Essa espada. — O pequeno fez uma pequena pausa pensando. — É um bom plano... Onde vender uma espada senão numa cidade militar?
— Não vou vendê-la — respondeu a jovem indiferente.
— Hum... Bom, armas são complicadas, sabe? Se gosta delas, deveria começar com algo mais leve. Vê este arco ao seu lado? Então, ele é do elfo. Aposto que ele não se negaria a dar algumas aulas.
Artus, que não escondeu que ouvia o diálogo, mal deu chance para que a dama respondesse:
— Não precisa se preocupar em usar arma alguma, milady! Deixe que eu me preocupe com isso. Mantenha seus pensamentos em coisas alegres e nós ocupamos os nossos com sua segurança.
— Oh sim! — Edriên mal continha o riso — O elfo nunca lhe negará seus braços fortes caso precise deles!
Dário suspirou. Aquela prometia ser uma longa viagem.
Iarima não respondeu. Continuava olhando a estrada, observando as linhas que as rodas marcavam na neve, entretida em seus pensamentos. Luna dormia despreocupada.
Edriên tentou conversar um ou dois assuntos, mas Iarima não demonstrou nenhum interesse. Com o chacoalhar da carroça, o pequeno não percebeu quando caiu no sono. Luna aproveitou a deixa do pequeno e se aconchegou no calor de Edriên. Pouco tempo depois uma irônica cena foi formada, Edriên dormindo abraçado com a loba que tanto desgostava.
A viagem continuou sem grandes novidades. Dário estava muito mais satisfeito agora no silêncio, mas começava a sentir o cansaço da viagem e o resquício do veneno em seu corpo. Olhando para trás, podia ver o pequeno abraçado à loba e Iarima sentada no outro canto da carroça de costas para a cocheira. Difícil era distinguir se não estava apenas dormindo sentada. Artus mirava a floresta, imaginando como teria sido o casamento de uma tal Camile...
Se tudo continuasse como estava, não levaria muito mais de três horas para chegarem à casa do mercador. Artus, mais uma vez, insistiu com o druida em guiar os cavalos.
— Tua feição não nega teu cansaço, Dário. Se queres estar atento em um possível imprevisto, tens de convir que descansado serás muito mais útil. Dê-me a guia, druida.
Irritado, mas não tendo como negar a verdade dita por Artus, Dário entregou as rédeas ao elfo, grunhindo uma ou duas palavras. O druida se levantou equilibrando-se pelo balanço da carruagem e virou-se para adentrar na parte coberta do veículo. Artus prestou atenção no druida, buscando certificar-se que ele estava apenas cansado e não tendo uma recaída pelo mal que havia enfrentado. Atravessavam uma curva no trajeto. Nos poucos momentos que a troca levou, um grito seco e rouco cortou o silêncio da viagem.
Os cavalos se assustaram, guinando. O solavanco derrubou Dário em cima de Luna e Edriên. Artus acalmou os cavalos, tentando enxergar por entre as árvores de onde vinha tal som. Antes que pudesse avistar algo, o fim da curva guardava uma terrível surpresa: uma fera, talvez maior do que a carroça, vinha em sua direção: Um lobo atroz!
Artus, em um salto, já estava de pé na cocheira, Dário surgiu para retomar as rédeas e dominar os cavalos. Antes do elfo decidir seu segundo movimento, flechas flamejantes cruzaram o ar.
— Góblins! — Gritou o elfo em alerta, pulando da carroça e desembainhando seu sabre. Antes de entrar na floresta, porém, saltou acrobaticamente para trás, desviando por um triz de uma adaga que lhe mirava as costelas.
Os pequenos monstrinhos eram inconfundíveis, com sua estatura ultrapassando pouco mais que a altura dos joelhos de um humano. Famosos por sua esquiva e seus ataques muito rápidos, eram assassinos por natureza, abatendo facilmente qualquer tipo de oponente. Estes especificamente, eram claramente de um clã em comum, pois suas vestes eram cobertas pela pintura de palmas de mãos douradas.
Mais góblins surgiram de trás do lobo atroz. Artus calculou mentalmente quantos oponentes teria de enfrentar. Por fim, decidiu enfrentar os do chão, já que não lhe davam outra opção ao atacá-lo já corpo-a-corpo.
Uma das flechas iniciou a destruição da carroça que começou a arder em chamas. Dário ainda persistia em controlar os animais, pois se os cavalos disparassem poderiam ser atacados pelo lobo e a jovem donzela ficaria a mercê de um destino terrível.
Edriên olhou através da abertura frontal da carroça e não se animou com as possibilidades. A loba havia sumido, não conseguia enxergar o elfo, o druida só se preocupava com os benditos cavalos e a estúpida dama tateava as beiradas do veículo enquanto a lona acima de sua cabeça ardia em chamas.
Sem pensar uma segunda vez, sorrateiramente o pequeno ladino escapou pela abertura traseira da carroça. As chamas ali o entristeceram, infelizmente a carroça não lhe daria mais seu conforto por conta de seu provável trágico fim. Mais furtivo na luz que começava a deixar o céu pelo fim da tarde, o rapazinho sumiu na floresta.
Iarima continuava sua empreitada. Mais um nó e... Pronto! A lona da carroça, agora solta, foi rapidamente enrolada pela jovem. No movimento, as chamas foram abafadas e sem ar elas se exauriram.
O elfo defendia-se de dois góblins e suas rápidas investidas. Mal teve tempo para se desviar da bocarra do enorme lobo que por pouco não engoliu sua cabeça. Não hábil o suficiente, o chapéu de Artus virou refeição para o monstruoso animal.
Dário, ainda em seu intento, manteve-se na defensiva, desviando das flechas que lhe tinham como mira. Apesar de bem-sucedido até ali, uma flecha quase lhe arrancou a orelha esquerda vindo de uma direção totalmente diferente das demais. Não veio da floresta, veio de suas costas!
A flecha cruzou o campo de batalha. O lobo atroz iniciava uma nova investida contra o elfo quando a flecha atingiu em cheio as rédeas que lhe repuxavam a boca. As rédeas arrebentaram, o lobo ganiu e recuou com a dor. Em seu desespero, encolheu-se e apoiou a enorme cabeça no chão enquanto tentava retirar a flecha com uma de suas patas. No movimento, o diminuto góblin que o montava ficou à mostra. Perdendo o equilíbrio, tratou de segurar as rédeas, mas com seu apoio arrebentado, o monstrinho caiu de cima do lobo com rédeas em mãos. O lobo, percebendo que estava livre, correu floresta adentro ignorando os protestos de seu antigo amo.
Dário, que assistiu tudo de sua posição privilegiada, olhou para trás. Daria seu apoio à Edriên pela bela manobra, porém o que vislumbrou foi bem diferente: Iarima com o corpo ajoelhado e inclinado para trás, com o arco e flecha em riste, aproveitando-se da proteção da baixa parede de madeira da carroça. Antes de pronunciar qualquer palavra, uma nova flecha foi solta, quase acertando o nariz do druida que dessa vez se encolheu em reflexo. Esbravejando maldições, assistiu perplexo o góblin montador ser lançado para trás, a flecha acertando-o em seu peito.
Artus não prestava atenção ao que ocorria, entretido com os pequenos de adagas. Num golpe de mestre, saltou esquivando de uma investida brutal de um de seus oponentes, que acabou acertando precisamente o pescoço do segundo. Por fim, com toda a elegância que sua luta permitia, desferiu um golpe mortal no pequeno que sobrara, atravessando-lhe o pescoço e parte das costas num ataque em diagonal.
As flechas ofensivas diminuíam seus ataques, provavelmente pela fuga de seus arqueiros. Antes de se comemorar a vitória, porém, o urro surdo ecoou novamente na floresta.
— Mas que raios será...? — gritou o druida, mas a resposta não lhe agradou.
Um monstro horrendo, duas vezes o tamanho do lobo surgiu em meio à estrada. Sua cabeça era deformada, o nariz com correntes que alcançavam seu peito e suas costas, as mãos tão grandes quanto o tronco de uma árvore adulta. Pinturas de palmas de mãos douradas ornavam toda a parte superior de seu corpo.
— Troll!!! — assustou-se Artus, puxando seu sabre do corpo imóvel de sua vítima.
Iarima não se abateu e uma terceira flecha foi arremessada. Sua mira acertou apenas o ombro de seu alvo que não pareceu se sentir abalado. Em resposta, gritou mais uma vez seu urro ensurdecedor.
— O que estás pensando, dama? Não vês que vai atrair a fera para si? — Artus não pretendia se preocupar com uma donzela sendo um alvo de um troll, seja lá se ela, incrivelmente para uma dama, tinha força ou não para disparar uma flecha há mais de cinco metros.
O elfo avançou contra seu oponente, pronto para seu mais potente golpe espadachim. Ao se aproximar a uma distância segura para desferir o seu golpe, a mão fechada do troll arremessou o elfo há vários metros de distância até ser parado pelo tronco de uma árvore. Mais uma vez o grito rouco do troll foi ouvido.
Dário não entendia aquela situação. Não se lembrava de ver raças caóticas juntas, nunca! Nem em contos, nem em seus ensinamentos, nenhum tipo de encontro desse tipo. Eram raças egoístas e sem qualquer tipo de relacionamento, eles simplesmente matavam qualquer raça que encontrassem diferente da sua se seus números lhes permitissem. Trolls e góblins? Que sentido fazia aquilo?
O elfo levantou-se. 'Finalmente um oponente à minha altura!'. Animado pelo combate, seguiu novamente para a batalha.
Vendo a insensatez de Artus, o druida não podia mais abster-se do combate:
— Senhorita, por favor, segure os cavalos! Preciso ajudar o elfo!
— Segure você, parece que leva jeito. — Iarima saltou da carruagem abandonando o druida. Desamarrando sua capa, deixou-a cair ao chão, mostrando a singela armadura de couro que vestia. Ouvindo Dário chamando-a de insana, num dos mais gentis termos que usou, a dama sorriu ao desembainhar a espada larga que carregava às costas.
Artus já havia recebido novos dois golpes do monstro e finalmente desviou de um. Terminando seu giro, assustou-se ao dar de cara com a dama de repente a seu lado.
— Estás louca?
— Segundo seu amigo... — respondeu despreocupadamente ao evitar uma marretada da mão do monstro —, sim. — E aproveitando a abertura de guarda de seu oponente, Iarima desferiu um golpe certeiro em seu tornozelo direito.
A fera urrou de dor e ao levantar a perna em reflexo, perdeu o equilíbrio e caiu. Sem perder tempo, a dama subiu em cima do corpanzil do monstro e enfiou sua espada garganta do troll adentro. Num gemido, a fera desfaleceu.
Artus assistiu atônito à cena. Havia acontecido tão rápido. Provavelmente havia ficado tonto com os golpes na cabeça que recebeu e aquilo era apenas uma alucinação.
Dário também estava boquiaberto. Mas ao contrário do elfo, que parecia se ofender pela atitude da dama, o druida estava admirado. Nunca achou que pudesse ver uma cena daquela na vida. A dama chata que teria de escoltar... Não parecia tão desinteressante agora.
Iarima, ignorando as reações à sua volta, esfregou a espada no chão tentando limpá-la do sangue do monstro. Voltando em direção à carroça, não conseguiu segurar um meio sorriso ao passar pelo elfo.
Luna finalmente surgiu de dentro da floresta. Arrastando dois góblins, os soltou no meio do campo de batalha. Animada, correu em volta de sua caça, jubilando-se.
— Onde está Edriên? Não o vejo! — gritou Dário para o elfo, lembrando de quão bom guardião havia se tornado...
— Estou aqui, salvei todos vocês! — anunciou o pequeno debochado, arrastando três góblins arqueiros. Parou do lado da loba, sorrindo em desafio à peluda por ter abatido mais vítimas que ela.
A loba fungou e voltou para a floresta. Meio minuto depois voltou com mais dois góblins arqueiros inanimados, somando quatro vitórias.
O pequeno voltou para a carroça emburrado e agora não tinha mais dúvidas: A loba era estranhamente inteligente demais. Outra certeza: ela era mortal. Melhor não a ter como inimiga.
Iarima, no trajeto para a carroça, percebeu uma pequena bolsa no góblin caído, o que tinha o lobo como montaria. Abaixando-se, pegou a bolsa e a guardou discretamente onde os outros não poderiam ver. Edriên, porém, não tinha despercebido o movimento.
Todos de volta na carroça, lona, ou o que restou dela, sendo montada novamente pela dama e o ladino, elfo e druida no coche. Com a loba dormindo despreocupadamente entre os dois homens, a viagem até Tenbrenan continuou e milhões de pensamentos novos surgiram nas mentes dos viajantes...
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Oie!
Tá todo mundo vivo? Se não foi pisoteado pelo troll e ainda está respirando, não esquece de votar no capítulo, tá bom?
Até!
Tay. ;)
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