Capítulo 38: Suor de mula
Camus esticou o braço oferecendo a pele extra que havia recolhido antes de sair do acampamento. Não havia sido muito difícil alcançar os dois, mesmo tendo escolhido parar para escolher os agasalhos improvisados no emaranhado de coisas que havia sido a bagagem dos orcs. Iarima andava devagar, sendo sua falta de cor ou o caminhar arrastado sinais claros de que estava longe de seu melhor estado. Nenhum dos dois acompanhantes parecia interessado em reclamar a velocidade, já que os próprios não estavam em condições muito melhores.
Artus agradeceu em um sorriso mudo e um leve reclinar da cabeça a pele estendida em sua direção. O cheiro de suor de mula e carvão o fez sentir saudades da requintada capa de frio que havia comprado em Tenbrenan, mas o inverno que bufava seu clima sobre os viajantes o fez pouco exigente quanto ao perfume de sua nova peça de roupa. Ajustando o florete em sua cintura para não ficar roçando no rústico tecido, enrolou-se cobrindo o que conseguisse de seu corpo.
As marcas que guiavam o grupo seguiam em direção norte e, por sorte, a distância entre as passadas sugeriam que os caminhantes também não estavam em plena velocidade. A luz alaranjada do dia anunciava que a noite logo dominaria os céus e que as feras que fugiam da luz poderiam arriscar-se longe de suas tocas em pouco tempo. Seria bom que a audição e visão de Artus não tivessem sido afetadas pelas desventuras de mais cedo, pois nem Iarima nem Camus tinham qualquer talento em enxergar no escuro. De qualquer forma, teriam a oportunidade de testar a milagrosa recuperação do elfo a qualquer momento.
Artus tinha uma ruga entre as sobrancelhas enquanto fitava Iarima. A mancha nítida no pescoço da dama lhe fez o rosto quente, imaginando o covarde que teria se valido de tão cruel artimanha. Por sorte o elfo tinha os olhos na jovem quando, pisando de mal jeito em uma pedra escondida na neve, ela tropeçou e quase abraçou o solo. A queda só não foi completa graças a destreza do amigo em lhe segurar quando percebeu o desequilíbrio.
— Milady, seu cansaço já lhe penaliza os reflexos. Por que não paramos brevemente? Ninguém a julgará menos forte por descansar.
Iarima olhou para a mão em torno de seu braço e Artus a recolheu torcendo os lábios. A jovem demorou um pouco antes de levantar os olhos cansados e encarar Artus. A voz dela saiu quase num sussurro:
— Para quem está sozinha em meio a monstros, cada minuto é uma eternidade.
Artus assistiu Iarima endireitando a postura e retomando sua marcha. Os lábios do elfo fizeram uma sutil curva para cima e pela primeira vez ele admirou a teimosia da mulher. O mundo seria um lugar melhor se todos se preocupassem com seus amigos dessa forma.
Os céus se tingiam de vermelho quando Artus percebeu o som de água corrente. Apesar do alívio que seria beber água de fato ao invés de neve, ele mordeu o canto da boca imaginando se precisariam de um barco mais a frente. A preocupação tomou outro rumo quando o cheiro de fuligem alcançou seu nariz e de seus companheiros.
— Estamos perto de um acampamento — constatou Camus.
Iarima e Artus assentiram. Não havia nenhum sinal visível de fumaça, o que os fez acreditar que ainda havia alguma distância a ser percorrida antes de alcançá-lo. De toda forma, se resguardaram de causar qualquer ruído desnecessário.
O sol abandonou os céus, tornando o vento frio ainda mais cortante. Iarima se embrulhou encolhendo o corpo dentro das duas peles em seus ombros enquanto Camus tentava conter o maxilar que tremia involuntariamente. O cheiro de madeira queimada agora estava bem mais forte e lufadas de fumaça surgiam vez ou outra lhes arrancando lágrimas dos olhos irritados. O escuro mantinha o suposto acampamento oculto até mesmo de Artus que, mesmo com sua visão privilegiada, nada via além de neve e árvores mesmo na distância a frente. Eles caminhavam agora ainda mais lentamente tentando usar os pinheiros como esconderijo, evitando assim serem surpreendidos por possíveis batedores do acampamento que nunca chegava.
Artus levantou a mão em sinal de alerta. Iarima e Camus se detiveram tensos, mesmo não vendo nenhuma diferença na penumbra à frente. O elfo sussurrou:
— Ouço vozes. Não falta muito agora.
Os dois seguiram em fila atrás do elfo, Iarima com olhos arregalados e Camus forçando os beirais da capa de seu livro com os dedos. Os barulhos já eram ouvidos pelos humanos e aquele estranho som grave e de roncos e estalidos começava a ser distinguível. Artus agachou-se de repente, puxando o braço de Iarima com ele. Camus espelhou o movimento.
Os dois humanos olharam por trás de Artus engolindo em seco. O elfo tornou aos dois levando o indicador ao meio dos lábios exigindo silêncio. O que Iarima viu ali a fez esquecer de respirar por alguns momentos: Os três estavam à beira de um paredão de neve da altura de dez homens. Eles não conseguiam ver antes o que havia à sua frente porque não existia nada à altura de seus olhos distinguível a partir dali. Olhando para baixo, colunas negras levantavam-se em lugares diferentes, sendo elas responsáveis pela fumaça que lhe incomodavam os olhos. Na planície abaixo, pelo menos oito grandes fogueiras eram vistas espalhadas entre a escarpada que estavam até o rio que cortava o vale. Tendas de peles de animais estavam espalhadas próximas às fogueiras e, para o descontentamento maior do grupo, orcs andavam por todo o lado lá embaixo.
— Você consegue ver Edriên? — sussurrou Iarima olhando com grandes olhos verdes a face de Artus.
Artus apontou o dedo indicador e o dedo médio para os próprios olhos, depois apontou em direção à fogueira mais a frente, no centro do acampamento. Iarima não conseguiu distinguir muita coisa além do que parecia a sombra de grades e imaginou se aquilo seria uma jaula. Camus puxou uma das capas de Iarima e apontou para um ponto mais afastado na direção de onde haviam vindo.
Os três andaram cerca de cem passos até uma pedra pouco maior que a altura de um homem em pé e a largura de dois deitados. Poucos pinheiros a cercavam. O mago sussurrou de costas para um dos pinheiros e de frente para a pedra:
— Eu contei dez orcs próximos às fogueiras.
Iarima maneou a cabeça negativamente:
— De vigia, sim. Mas são cinco grandes tendas. Se eles gostam de espaço, cabem quatro orcs em cada. Se não, cabem mais.
— Todavia não distingui nenhum embrulho similar ao que carregavam junto a nós. Talvez alguma das tendas seja um depósito — esperançou-se Artus.
— Tomara. Você conseguiu ver Edriên? Não enxerguei nada onde me apontou.
— Ela está junto ao fogo, na gaiola com os cabritos. Ao menos está aquecida.
— Será que planejam comê-la? — O cenho de Iarima se elevou.
— Eles já tiveram tempo para isso. Não acho que seja esse o objetivo, mas se for, deixaram ela para o café da manhã — disse Camus numa voz monótona.
Iarima fitou o mago com os olhos em linha. Torcendo os lábios, ela virou para Artus:
— Você e eu descemos e abatemos alguns vigias antes que nos notem. Camus, você segue atrás e, quando os orcs se alarmarem, incendeie as tendas com sua magia...
— Amanhã de manhã, você diz? Porque hoje a única coisa em que terei sucesso será dormir.
E assim teve início um certo desentendimento em meio a sussurros malcriados. Artus tentava equilibrar as opiniões, Iarima defendia a urgência do resgate e Camus pouco se abatia, convicto de sua razão. Apesar de todos os argumentos, por mais lógicos e que fossem, a jovem se mantinha resoluta.
— Se investirmos perto do alvorecer estaremos não só descansados, como também os surpreenderemos desprevenidos — defendeu Artus.
— E se tentarem algo contra Edriên durante a noite? Eu já havia planejado ir sozinha, meia dúzia de orcs há mais não fazem diferença. Vocês não precisam ir se não quiserem.
Camus inspirou pesadamente e olhou Iarima com olhos frios. Ele apertou o livro com ambas as mãos e seu sussurro saiu compassado:
— Se você descer lá, eu, por juramento, terei de lhe seguir. Sabe o que acontece quando magos sem energia entram em uma batalha? Eles morrem, Iarima. Você deseja assistir à minha morte?
Iarima sentiu seu corpo travar ao som daquelas palavras e seu coração perdeu um compasso. A imagem de um Camus mais jovem, menor e mais franzino se tornou muito vívida em sua mente. Em sua lembrança, aqueles grandes olhos redondos não transmitiam nenhuma calma, pelo contrário, pareciam desesperados em reflexo a dor que lhe foi infligida. O pequeno corpo estava estirado ao chão e manchas rubras lhe tingiam os trapos que usava como roupas. Iarima franziu o cenho e de sua boca, pela primeira vez na discussão, não saiu resposta.
Artus notou quando a jovem perdeu a determinação nos olhos e seu rosto abandonou o que lhe sobrava de cor. Ela não parecia respirar. O elfo tomou as mãos geladas dela nas suas e puxou-a de forma a colocá-la de frente para ele.
— Iarima, olhe para mim. Iarima! — Ela piscou algumas vezes antes de levantar os olhos. — Dou-lhe minha palavra de que Edriên está em estado deveras melhor que o nosso. Se alguma alteração acontecer no acampamento, eu consigo ouvir daqui e agimos, está bem? Iarima? Iarima?
— O que? — respondeu ela finalmente voltando ao seu semblante irritado.
— Ficaremos todos bem.
A jovem torceu os lábios e puxou as mãos de volta. Ela virou as costas para os dois e caminhou chutando a neve na base da grande pedra.
— Se algo mudar, agiremos — disse a moça mais para si do que para qualquer um ali.
O lugar em que estavam tinha uma certa proteção do vento pela grande pedra ao lado. Os pinheiros eram uma boa camuflagem e o cheiro forte das peles não denunciaria a presença dos humanos ou do elfo. O bafo de fumaça que subia da escarpada incomodava o respirar, mas ajudava com o frio. Aquele não era o lugar perfeito para dormir, mas a situação não os permitia ser exigentes. Acalmados os ânimos, os três se enrolaram em suas peles formando rolinhos e se deitaram um ao lado dos outros. Em seu acordo, se nada acontecesse, despertariam antes do nascer do sol e colocariam o plano de resgate em ação.
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->Inventário:
----> Usar ítem:
------------> Tenda ☖
Bons sonhos :) ☾
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