Capítulo 33: O pender da balança
"A natureza é uma sábia senhora. A vida nela surge e nela se esvai. Ela mede a força do opressor, a fraqueza do oprimido e determina o pender da balança. Nela, a fragilidade do mais fraco é apenas uma ilusão e a imponência do mais forte é tão-somente uma concessão temporária.
Se o lobo acaba com os coelhos, fica sem alimento e seu 'poder' é o responsável pelo fim dos seus dias. Se ele renegar seu dom e se recusar a caçá-los, serão as raízes que deixarão de existir, sendo devoradas pelos antes 'pobres indefesos'. Pelo bem de todos, a natureza julga, pesa, avalia, equilibra. Ela é a resposta final em todo o tempo. Suas linhas invisíveis regem a vida e tudo que existe. O poder do druida consiste em compreender essas linhas, respeitá-las e protegê-las. Se a natureza encontrar em você um defensor digno, ela lhe confiará seus segredos. Não há limites para aqueles que tem a força da existência como escudo."
Dário sentiu seu corpo aquecer. A afronta que ouvira, não contra si, mas contra alguém que prezava mais que sua própria vida, o submergiu em fúria. Sua razão se perdeu em meio ao seu instinto de proteção. Como uma fera pressionada em sua ferida, ele desejava ferozmente atacar, ferir... matar. Até que ele viu.
Ele viu aquilo e sua primeira reação foi a desacreditar. Simplesmente não fazia sentido. Mas, conforme admitia aquela possibilidade, a fúria que sentia deu lugar a algo novo... Como um cego encontrando a luz pela primeira vez, ele enxergou o que nunca imaginou existir:
Riscos cor de jade surgiam subindo do solo, percorrendo os troncos retorcidos que formavam as paredes da casa de Mestre Noirebe e sumiam onde o alto teto os bloqueava. Outros rabiscos faziam o caminho inverso, descendo do teto, passeando pela madeira viva e mergulhando ao chão. O mesmo acontecia nas grandes raízes no solo que serviam de assento ou nas plantinhas e folhas que revestiam parte das paredes. Os fios brilhantes resplandeciam e pulsavam incandescentes. Quanto mais os percebia, mais nítidos e fulgentes pareciam se fazer, exibindo-se nos mais vivos e exóticos tons de verde.
Dário abriu a boca e suas sobrancelhas levantaram-se à medida que absorvia o espetáculo ao seu redor. Aplicado druida que era, ele entendia os procedimentos, os rituais, o que pensar e como deveria agir, mas ao assistir a cena arrebatadora e assimilá-la, as lições de seu tempo de aprendiz tomaram um novo nível de compreensão. Não precisava racionalizar ordens ou rastrear fontes de energia para manipulá-las. Ali, diante do que via, ele simplesmente era. As linhas que regiam a vida haviam se revelado a ele. A natureza havia julgado sua causa e o considerado digno. Sua missão não era tola. Esta certeza não deixava espaço para uma fúria impensada, pelo contrário, ele nunca teve tanta tranquilidade quanto ao que precisava ser feito.
Sentindo a vida ao seu redor como se fosse extensões de seu próprio corpo, Dário conduziu as ramificações nas paredes até as cordas que lhe imobilizavam as mãos. Um ramilho se apoiou no maior nó e ao circundá-lo, se dividiu em uma séria de minúsculas raízes que se embrenharam em meio às fibras da corda. Assim que as raízes se aprofundaram suficientemente, elas se desenvolveram, se fortalecendo e avolumando contra os fios ao seu redor. Se uma das raízes se partia, outras duas tomavam seu lugar, se firmando e expandindo. Parte das fibras da corda se arrebentaram outra parte cedeu para dar espaço às raízes que cresciam em seu meio. Num rápido agir, a planta se recolheu e Dário tinha agora os nós que o prendiam fracos e frouxos o suficiente para se ver livre deles. Enquanto soltava suas mãos, a mesma luta se iniciava contra as cordas que lhe prendiam os pés.
Os ganidos de reclamação de Luna se aproximaram. Nas costas de Mestre Noirebe, ela apareceu no topo da escada sendo segurada pelas patas, seu tronco apoiado nos ombros do tigre, seu corpo passando por trás do pescoço felino. De seu focinho amarrado ecoava um choro irritado misturado a um rosnar impaciente. Descendo as escadas numa postura pesarosa, mestre Noirebe aterrissou pesadamente contra os degraus de madeira, reclamando algo sobre a teimosia dos jovens. Chegando ao meio da sala, porém, o velho mestre se deteve, suas pupilas se tornaram pequenos pontos em meio aos olhos amarelos e Luna se calou.
— Você não quer fazer isso, criança. — Noirebe colocou Luna no chão devagar, seus olhos fixos no alvo a sua frente.
Dário estava em pé, a cabeça reclinada, seu olhar estreito por baixo das sobrancelhas. Seus ombros se projetavam ainda mais largos, sua respiração era lenta e profunda. As manchas escuras em torno de seus pulsos, onde antes as cordas pressionavam, começavam a atenuar.
— Solte Luna, mestre.
— Vocês não vão sobreviver se forem atrás deles... — Um rugido baixo e rouco continuou a frase.
— Deixe-nos ir. Eu e Luna ficaremos bem.
—... e se sobreviverem, todos nós sofreremos as consequências da sua insensatez. — Noirebe erigiu o corpo curvado. Sua altura real era meio homem mais alto que Dário. Com a cabeça baixa e olhos fixos como um felino prestes a pular sobre sua presa, conclui: — Não posso permitir isso.
Dário soube que era o momento. Ele trouxe o corpo para o lado enquanto uma das raízes se projetaram do solo e se tornaram em um tronco a tempo de receber a patada que mirava o jovem druida. Lascas de madeira foram em todas as direções quando a força do golpe de Noirebe repartiu o tronco em pedaços.
— Você evolui — reconheceu o tigre contornando o novo obstáculo, agora apoiado em quatro patas.
— Não quero feri-lo, mestre.
— Não evoluiu tanto assim.
Noirebe saltou contra Dário, mas antes de se suspender completamente do chão suas patas traseiras foram retidas por raízes, fazendo-o cair de mal jeito. Irritado, ele lançou as garras contra as amarras, mas elas continuavam brotando e se prendendo ao tigre. Dário aproveitou a distração do mestre para garantir a liberdade de Luna.
Noirebe bufou impaciente. Há tanto tempo não lutava que por pouco havia esquecido sua própria capacidade. Ele assistiu as raízes abraçarem suas quatro patas e quando a última pareceu concluir seu contorno, bastou levantar as patas do chão com pouco esforço para arrancar as raízes do solo, arrebentando-as com tudo que traziam. Sem mais desatenções, investiu contra Dário que, agachado, se preocupava em soltar a loba.
O jovem druida virou o corpo a tempo de ser jogado ao chão pelo felino. Com os braços pressionados pelas patas dianteiras do enorme animal, não havia força que levantasse aquele bicho, seu corpo vezes maior que o seu. O hálito do gato lhe preenchia as narinas e os olhos selvagens lhe encaravam ferozes, prontos para arrancar-lhe o pescoço facilmente com as enormes presas. Mas no segundo em que Noirebe hesitou por algum motivo, Luna lhe atacou a pata traseira, fazendo a fera voltar-se contra a loba num rugido enfurecido.
Dário levantou-se para testemunhar Luna jogando-se por baixo da mesa, a altura do móvel atrapalhando o tigre e dando a loba ínfimos momentos de vantagem. Quando ela chegou àquela extremidade da casa, os troncos na parede se afastaram e se fecharam num período curto o suficiente apenas para galhos abraçarem Luna e a sugarem para fora da casa.
Noirebe rugiu para a parede de madeira a sua frente. Levando um instante para assimilar o que havia acontecido, ele tornou em direção a Dário enfurecido. Em em dois saltos alcaçaria o jovem druida se ele não tivesse se valido da mesma tática. Ainda com o corpo no ar, Noirebe viu as árvores da parede da casa abrirem espaço enquanto galhos enroscaram-se em Dário e o puxaram rapidamente para fora. Infelizmente não veloz o suficiente, pois um segundo antes de estar em segurança, Noirebe conseguiu afundar suas garras no braço direito de Dário que vociferou ao sentir sua carne ser rasgada.
Luna veio correndo ao encontro do homem e viu seu amo ajoelhado ao chão com a mão encolhida, segurando as partes de seu antebraço ferido numa tentativa de mantê-las juntas. Do lado de fora era possível ouvir o mestre investir contra as paredes, seus rugidos coléricos ecoando abafados.
— Você sabe que não vai conseguir fechar essa ferida! Você sabe!
Dário mordeu o próprio lábio com força, tentando distrair sua mente com um outro foco de dor, mas sendo muito incompetente nisso. Ele sabia que não havia forma de curar um ferimento feito por um druida em forma bestial, a menos que o próprio agressor o curasse. Luna chorava movimentando-se apressadamente ao redor do druida, pisoteando a mancha vermelha que se espalhava ao redor do grande homem.
Decidindo-se em ignorar os berros obstinados de seu antigo mestre, Dário afastou o braço do corpo abrindo caminho para que ramos lhe subissem pelas coxas e lhe envolvessem os braços. Ele gemeu quando, ao cobrir completamente seu braço direito, a planta se ajustou lhe pressionando o ferimento. Levantando-se com esforço, ainda precisava honrar a missão que lhe havia sido confiada.
— Vamos, Luna.
Em frente a casa de mestre Noirebe, não foi difícil encontrar os inúmeros rastros daqueles que haviam levado os outros viajantes. Enquanto druida e loba apertavam o passo em busca de seus amigos, novas raízes e galhos se estendiam pela casa de Noirebe fortalecendo o invólucro da fera. Sua morada seria uma fortaleza de madeira trancada por fora, pelo menos até o nascer de um novo dia.
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Dário ao resgate! (musiquinha de corneta)
Tomara que ele consiga chegar, né? ...
Tay :*
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