Capítulo nove
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- Como assim a Beca está em perigo, vovó? - Questionou Lucas, assustado.
- Aconteceu alguma coisa que a gente não saiba? - Guto também estava assustado.
Dona Edwirges estava pensativa, como se estivesse escolhendo as palavras certas para dizer. Após um tempo calada, finalmente se pronunciou.
- Vocês têm acompanhado as coisas que vêm acontecendo com a irmã de vocês, não é? Concordam que ela anda meio perturbada? Temos que fazer alguma coisa para ajudar a irmã de vocês, se não ela enlouquece.
- Perturbada? - Lucas pareceu ainda mais assustado. - O que a senhora está querendo dizer, vovó?
- É vovó, está nos assustando, o que a Beca tem?
- Vou contar a vocês uma história que, por mais extraordinária que possa parecer, é muito real... Nossa família tem um segredo... Um segredo que nos persegue há anos e, até onde eu sei, ficará na família até a última geração.
Lucas e Guto puderam sentir a seriedade na voz da avó. Estavam assustados com tudo aquilo, ao mesmo tempo em que sentiam curiosidade em saber o que a avó tinha para lhes contar. Após um fundo suspiro, dona Edwirges prosseguiu.
- Meu bisavô, Raimundo Euzébio Malter, era um homem muito pobre, vivia aqui nessa fazenda com a família. A casa foi reformada várias vezes, por isso, ainda hoje, se encontra em boas condições. Minha bisavó, Amália Malter, já tinha dois filhos e, aos quarenta e sete anos, engravidou pela terceira vez. Foi um momento feliz o da descoberta da gravidez, afinal de contas a chegada de uma criança traria ainda mais alegria para a família. A alegria, no entanto, também veio acompanhada das preocupações. A família era bem pobre, passavam dificuldades e, por vezes, não tinham o que comer. Sem contar essas preocupações, minha bisavó já tinha uma idade avançada, por isso teve uma gravidez de risco. Passou a maior parte do tempo doente, deitada em sua rede. As doenças ficaram cada vez piores e ela já não tinha esperanças de sobreviver ao parto, mas sempre pedia que salvassem o filho, a criança merecia viver. Meu bisavô não suportou, sequer, a ideia de viver sem a mulher. Também não queria imaginar perder um filho que já amava, mesmo antes de conhecer. Contudo, ele estava ciente que um dos dois, ou, pior, os dois, não sobreviveria ao parto. Desesperado com a piora da mulher, meu bisavô decidiu recorrer a algo que, há muito tempo, vinha evitando. Conhecia uma mulher que morava afastada da civilização, em uma cabana, no meio da mata. A cabana ficava acerca de oitocentos metros da fazenda. Muitas eram as histórias a respeito da mulher. Ela mexia com magia negra, fazia feitiços, bruxarias e afins. Meu bisavô não sabia se aquelas histórias eram verdadeiras, mas, ainda assim, foi ao encontro da mulher misteriosa. Chegando à cabana, ele descobriu que tudo o que falaram a respeito da mulher era verdade. No entanto, as coisas não eram tão simples o quanto pareciam. A mulher propôs um acordo. Disse ao meu bisavô que poderia salvar a mulher e o filho, mas isso teria um preço alto, um preço que ia além do dinheiro. A mulher queria a alma da criança. O acordo foi aceito, meu bisavô estava desesperado, não pensou nas complicações futuras que aquilo traria.
Dona Edwirges fez uma pequena pausa. Guto e Lucas estavam visivelmente amedrontados. Após beber um pouco de água, ela continuou seu relato.
- Os dias passaram-se, os últimos dias da gravidez foram bem tranquilos e, quando meu tio avô nasceu, veio com uma saúde de ferro. Minha bisavô sofreu no parto, mas recuperou-se em poucos dias. Tudo estava indo bem. Com algumas dificuldades, sobretudo por conta da condição econômica da família, conseguiram criar o filho caçula e ele foi crescendo saudável. Aos onze anos, no entanto, ele passou a se portar de maneira diferente, estranha. Passou a ouvir vozes, ver coisas, acordava gritando alto no meio da noite, andava pela casa e conversava com alguém que só existia na cabeça dele... Ao menos era o que a família pensava. Em uma noite, enquanto todos dormiam, ele se levantou. Dizia que alguém o chamava e foi ao encontro. Saiu da casa e dirigiu-se até uma pequena casinha que ficava no lugar que hoje se encontra a garagem. Meu bisavô, seus pais, ouviu uns barulhos estranhos e foi verificar do que se tratava. Ao encontrar a porta aberta, preocupou-se. Seguiu as pegadas quase apagadas do filho e chegou onde ele estava. O avistou com um pedaço de vidro na mão. Seus braços estavam levantados, deixando em evidência aqueles símbolos que, aparentemente, tinham sido feitos momentos antes, pois ainda estavam ensanguentados. Depois disso, as coisas só pioraram. O caçula ficou cada vez mais violento. Toda aquela situação foi demais para o meu bisavô, ele estava prestes a enlouquecer. Já não sabendo o que fazer, enforcou-se na barraca que outrora presenciou a cena grotesca do filho. A família, que já estava desnorteada, ficou ainda mais em choque. Começaram a achar-se vítimas de alguma maldição. Ninguém sabia o que estava acontecendo, nem faziam ideia do acordo feito antes do filho caçula nascer. Os feitos do menino continuavam e, cada vez mais, ele piorava. Por vezes ele machucou os irmãos, que tentavam o acalmar durante as crises. Bateu na mãe, pois já não a reconhecia. Estava totalmente sem controle. As coisas pareciam que nunca iam mudar, até que a filha do meio, minha avó, assim como o pai, resolveu recorrer à mulher que vivia na mata, pois também tinha ouvido falar de sua fama. Quando chegou na cabana, ficou sabendo do acordo que o pai tinha feito e, só então, entendeu as ações do irmão. Queria encontrar um jeito de colocar um fim naquilo, pois já não aguentava ver o sofrimento da família. A mulher que vivia na mata, que também era considerada uma bruxa, disse que a maldição da família os perseguiria até a última geração. A única forma de acabar com o tormento atual seria a morte do irmão caçula. Foi entregue à minha avó um frasco contendo veneno, explicou que essa era a única coisa que ela podia fazer. E fez. Aos onze anos de idade, meu tio avô morreu e, só então, a família teve paz. Minha bisavó e os dois filhos demoraram, mas superaram os dias tenebrosos. O irmão mais velho, após a morte da mãe, mudou-se para a cidade, mas faleceu dois anos depois. Minha avó permaneceu na fazenda, juntou-se com um caminhoneiro e tiveram três filhos. A história se repetiu com o filho mais novo daquela geração. Meu pai, o filho do meio, foi quem permaneceu na fazenda, após a morte dos familiares. Só teve dois filhos, meu irmão Caruso e eu. A história se repetiu mais uma vez, só que, dessa vez, foi um pouco diferente. Eu sou a caçula, mas foi meu irmão quem viveu a maldição da herança Malter. Meu pai interviu para que isso acontecesse e eu, sem querer, presenciei toda a cena, quando ainda era muito nova. Meu irmão Caruso morreu aos onze anos, meus pais disseram que foi doença, mas eu sei a verdadeira história.
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Na garagem, Rebeca finalmente tinha acordado. Ainda estava tonta, amarrada em uma cadeira. Em sua frente, estava sua avó, em pé, encarando-a seriamente. A caçula dos Malter não viu os irmãos, então se preocupou, sem contar o medo que estava sentindo.
- O que está fazendo, vovó? Por que está fazendo isso comigo? - Questionou Rebeca, assustada.
Dona Edwirges ainda encarou a neta por um tempo, ate responder-lhe.
- Estou fazendo o certo, Rebeca... Só estou fazendo o certo. - Disse, dando as costas em seguida e saindo da garagem.
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