A Harpa Desafinada
ELDON MAL CONSEGUIA encarar o pomposo objeto postado diante dele, imóvel e silencioso, aguardando por suas mãos: a harpa de Pandora.
Era perfeita em todos os aspectos, desde as proporções aos entalhes, feitos em puro ouro. No mundo mortal, tal maravilha custaria uma fortuna absurda. Porém, Hades também carregava a alcunha de "deus das riquezas", possuidor de todos os metais preciosos. Não era estranho que algo de tamanho valor estivesse em posse daquela mulher.
Ah, sim... Aquela mulher.
Fechou os olhos e virou o rosto.
Ela está brincando comigo, pensou e, por muito pouco, não se desesperou quando uma imagem, há muito guardada no canto mais escuro de sua alma, veio à tona.
Respirou fundo e resistiu ao impulso de deixar os dedos deslizarem por sobre as cordas, engoliu a vontade de ouvi-las produzirem música.
Isso é tortura.
Queria sair dali, fingir que havia se esquecido da tarefa simples — e cruel — confiada a si, arrumar qualquer desculpa esfarrapada para continuar ignorando a mera existência da maldita coisa.
— Estou sem tempo hoje. Afine-a para mim, Benu. Você é músico, não é? Tenho certeza de que saberá o que fazer. — Foi o que Pandora lhe disse antes de sair, sem olhar para trás, sem encará-lo nos olhos, deixando-o a sós com o instrumento.
De fato, Eldon sabia o que fazer. Conhecia a harpa tão bem quanto o violino e o cello, embora não tivesse dedos suficientemente hábeis para a mesma; nunca praticara o bastante.
Não era para ele.
Não, ele não.
E, embora não se atrevesse a dizer em voz alta, nem para a própria Pandora.
O talento da menina nas lembranças que se embaralhavam em sua mente era sublime, inigualável, inalcançável. Ninguém jamais seria capaz de expressar tanta delicadeza e paixão, tanta graciosidade e expressão.
Talvez fosse apenas o orgulho cego de irmão falando mais alto, mas era esse o sentimento reprimido em seu coração.
Por causa da menina nessas memórias dispersas, Eldon não tinha forças para fitar a harpa. Por causa dela, se recusou a sequer encostar no ouro entalhado — se sentia mal só em estar tão perto do instrumento.
Seus olhos arderam.
Não deveria ser tão difícil. Era apenas uma maldita harpa precisando de afinação... Quais as possibilidades de Pandora ter feito de propósito? E com qual propósito?
Quase todos ali tinham consciência da existência de sua irmã, mas Eldon jamais dera detalhes sobre ela; sequer falava sobre ela. Nem mesmo com Radamanthys, de quem era mais próximo — até certo ponto — tinha compartilhado tais coisas. Os dois mal se falavam, pois aprendera a ficar mudo na maior parte do tempo, praticamente enterrando a própria voz no fundo da garganta.
Contudo, se não era para ser difícil, por que continuava de olhos fechados? Por que permanecia parado, como uma estátua, mantendo a mão erguida na direção da harpa?
Eldon não dependia de nenhum aparelho sonoro, seus ouvidos ficaram ótimos ao longo dos anos. A técnica que utilizava consistia em afinar oito cordas e, a partir destas, comparar os sons delas com suas respectivas correspondentes, sempre indo de duas em duas, subindo ou descendo as oitavas.
Meia-hora, seu tempo médio para terminar um trabalho como aquele.
— Mexa-se, idiota.
Franziu o cenho. Rosnou baixinho. Abriu os olhos e fechou a mão com força, girando sobre os próprios calcanhares em seguida.
Vasculhou o cômodo e foi atrás da primeira cadeira que encontrou. Agarrou-a pelo encosto, arrastou o móvel e posicionou-o junto da harpa, pois o banco que Pandora comumente utilizava era baixo demais para si.
Sentou-se e preparou as mãos. Respirou fundo mais uma vez e, finalmente, tirou a primeira nota. O som fez todo o seu corpo estremecer, mas ele não parou. Se parasse agora, não continuaria.
Embora Eldon dedilhasse as cordas com a indelicadeza de um não-praticante, tinha total noção do que fazer e de como fazer o que pretendia. Conhecia as sonoridades corretas e, uma vez tendo afinado a primeira oitava, partiu para as outras.
Procurou não se lembrar, não se perder em fragmentos de seu passado, mas era impossível não idealizar a imagem de sua irmã dominando o instrumento, fazendo música de verdade. Tal visão lhe causou sentimentos ambíguos.
Quis sorrir, mas também quis chorar e, sem se dar conta, acabou fazendo ambos. Foi assim até que todas as cordas da harpa estivessem perfeitamente afinadas.
Quando terminou, sentiu os olhos ardendo ainda mais; as mãos travadas e o coração miúdo dentro do peito.
A tortura pessoal acabou, mas as consequências gritavam em seus ouvidos.
Mordeu o lábio. Apoiou os cotovelos sobre as pernas e escondeu o rosto entre os dedos, se entregando ao turbilhão de tristeza, saudade e culpa.
Nunca se esqueceria de quem era o verdadeiro causador da separação, de quem destruíra a família deixada para trás.
Depois de tanto tempo no Submundo, Eldon tinha perdido a noção da passagem dos dias e meses. Parecia estar vivendo lá há uma eternidade, mas, ainda assim, todas essas memórias estavam frescas em sua mente, lhe causando pesadelos todos os dias.
Tanto peso, tanta dor, tanta escuridão em seu coração. Tudo isso trazido de volta a tona por um instrumento de ouro desafinado.
Cômico, no mínimo.
Talvez o problema estivesse nele, que se permitia pensar demais quando não deveria — quando não precisava. Bastava fazer o que lhe foi pedido e depois retornar à solidão de antes. Mas, não... Não era assim que ele funcionava.
Refletir fazia parte da natureza dele. Pensar em cada "sim" e "não" que já pronunciara ao longo da vida, recriando esses momentos mentalmente e fantasiando sobre outras escolhas, era o buraco no qual insistia em ficar.
E se tivesse fugido de casa antes? E se tivesse contado aos pais sobre o que acontecia consigo? Poderia evitar a tragédia? Tudo continuaria do mesmo jeito?
E se... E se... E se...
No fim, sempre se agarrava ao mesmo fato: terminaria sendo levado ao Mundo dos Mortos, com ou sem consentimento.
Mas, independentemente de ter sido arrastado para lá à força ou não, ele desceu com Radamanthys para os domínios de Hades com um objetivo: receber a chance de consertar o que foi destruído.
Não havia outro caminho, havia? Por mais que tentasse, não enxergava nenhum que o conduzisse por uma trilha iluminada. Lembrar-se do que tinha feito era necessário, reviver esses momentos em sua mente era essencial; sua principal motivação para seguir em frente.
Mas o fardo estava ficando cada vez mais pesado e chorar não o ajudou a aliviar a angústia.
Chorar nunca o ajudou em nenhum momento de sua vida, para início de conversa.
Somente uma coisa seria capaz de colocar todos aqueles sentimentos para fora, de fazê-lo se sentir leve outra vez. E essa coisa, infelizmente, era a mesma que vinha evitando fazer nos últimos anos: cantar.
Sua essência, sua alma, tudo o que ele era só poderia ser exposto através da música, do canto, da arte de utilizar o potencial máximo de sua voz. Esta que, depois de tanto tempo, acreditava ter perdido.
Quando mais novo, Eldon acompanhava o pai em quase todas as apresentações dele, com ou sem o acompanhamento de uma orquestra. Dentre suas aparições mais memoráveis, estava sua participação no musical que romantizou uma das figuras mais importantes da literatura: Drácula. Seu favorito.
Conhecia todas as músicas, as cantadas e os instrumentais. Se lhe dessem papel e caneta, poderia escrever os nomes delas em ordem.
Engoliu um soluço e jogou o corpo para trás, apoiando-se no encosto acolchoado da cadeira. Esfregou os olhos e passou a encarar o teto.
Eldon adorava pensar que, quando tirada de seu respectivo contexto, uma mesma música poderia adquirir dezenas de significados diferentes. Tudo dependia do momento, da ocasião, da pessoa, do sentimento em questão.
Precisava fazer isso. Tinha a impressão de que, se não o fizesse, morreria ali mesmo. Estava sufocando. Tudo por causa de uma harpa desafinada, por causa de lembranças.
Tudo isso por causa de culpa.
Engoliu seco.
Fechou os olhos com força.
Já faz tanto tempo...
Praticamente sussurrando, começou:
— I've seen so many sunsets in my life; I should know everything there is worth knowing. — Fez uma pausa. Endireitou-se e fitou o instrumento dourado como se o mesmo também o encarasse de volta. — But since I saw your face, I don't know where I am. There's no map that can show me where I'm going...
Engoliu um soluço.
Quis parar novamente.
Agarrou o tecido da camisa na região do estômago e apertou o tecido, praticamente o esmagando entre os dedos.
Estava chorando outra vez.
Preciso continuar...
— The longer I live the less I'm certain that I have all the answers right... — Botando força nas pernas, ficou de pé. Encheu os pulmões de ar. E, aumentando o volume da voz, prosseguiu:
— I'd give all my yesterdays for one more night!
Parou de novo, contudo, foi para buscar o ar que perdeu. Afastou-se e andou em círculos, ocultando a metade inferior do rosto com a mão destra.
Eldon sempre foi um barítono lírico, cuja voz era perfeita para o teatro musical. Se imaginara muitas vezes no papel principal de alguma peça clássica: Edmond em "O Conde de Monte Cristo", Erik em "O Fantasma da Ópera", ou o próprio Drácula, dono da canção que começara a entoar.
Naquele momento, porém, para ele, a letra não falava sobre vampiros e paixões atemporais, tampouco de tragédias românticas.
Não.
— It's hard to make each moment count when you're alone. Maybe that's all I need to know.
Naquele momento, retirada de seu contexto original, a canção de Drácula era a dor de um irmão e de um filho transformada em melodia.
— The longer I live without you near me, the longer the empty years will be!
Em lágrimas de fogo negro, ergueu a cabeça e as mãos como se clamasse aos céus inalcançáveis.
— The world will not turn until you turn to me!
Depois de seu último suspiro melancólico, tombou de joelhos. Então, o Benu completou:
— My world will not turn until you turn to me!...
Abraçou o corpo. Fraquejou e se entregou ao choro novamente, curvando o torso como uma criança amedrontada.
Estava quebrado, a música o despedaçou.
Tudo por causa de uma harpa desafinada.
No entanto, pela primeira vez desde que caíra no Submundo, suas lágrimas saíram límpidas.
Continuou sozinho por um bom tempo, de costas para o instrumento dourado, plateia de sua angústia extravasada.
Apesar de tudo, algo parecia estar mais leve, ainda que a dor insistisse em ficar.
Quando Pandora retornou, ele não estava mais lá.
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