6
NÁDIA
O episódio do banheiro
(Passado)
Disparei pela porta, mas algo me deteve. A mão de alguém. Olhei para trás e vi Dessand. Meu querido primo nunca se afastava muito de mim.
Sorrindo, hesitante, perguntou-me:
-Você está bem?
Fiz que sim, com a cabeça.
-De verdade? – insistiu.
-Sim, eu só... Estou cansada - sacudi os ombros, não querendo entrar no assunto das alucinações auditivas, que me apavoravam cada vez mais. Era uma covardia, eu sabia disso, mas talvez se eu a ignorasse, a voz desaparecesse.
Mas, não importava o quanto eu quisesse, a alucinação foi crescendo, em termos de frequência e intensidade.
- Preciso ir ao banheiro - avisei. - A gente se vê no refeitório.
O sorriso dele entortou – concentrado no próprio prank-12.
Revirei os olhos ao constatar que Dessand já estava com a cabeça no mundo da lua; ou dos quadrinhos, para ser mais exata. Meu priminho vivia sonhando acordado. Especialmente nos dias em que tínhamos educação artística. As aulas de pintura e música eram as suas prediletas.
Dessand estava vivendo um conflito interior... Seu pai, um homem inflexível, pressionava-o para que ingressasse no Internato do Comando. O General Raabnt queria que o filho seguisse os seus passos. Mas Dessand era um rapaz sensível demais para viver os rigores do Internato. O treinamento era pesado. Coisas aconteciam aos cadetes. Eles entravam de um jeito e saíam de outro... Mas o seu pai, que era um dos nossos generais mais graduados e estudara na Academia como todos os militares, parecia irredutível quanto a isso. Dessand provavelmente deixaria a torre no final do ano, a fim de cumprir os próximos dois anos de Educação Formal no Internato, no extremo oposto de Gehenna, Antusaca. A Sede das Forças Especiais e do Comando Militar.
Quando isso acontecesse, nós dois ficaríamos afastados um do outro pela primeira vez em nossas vidas. Eu estava tentando me preparar para esse momento, mas não conseguia sequer imaginá-lo. Torcia para que alguma coisa acontecesse de última hora, e fizesse o General Raabnt mudar de opinião.
Eu sabia, porém, que nos afastar era um dos seus principais objetivos. O General não gostava de mim, ou melhor, ele não gostava do meu pai. Os dois tinham ideias políticas divergentes. Papai era um liberal progressista e Raabnt, por sua vez, um conservador tradicionalista. Por causa disso, ele afastou a esposa, Kadaa - que por sinal é minha tia, irmã de minha mãe - do convívio com a nossa família. Agora, ele planejava fazer o mesmo com o filho. Para começar, Dessand estava proibido de vir a nossa casa, antes ou depois da aula. Mesmo assim, ele vinha escondido... O pai desconfiava, mas não dizia nada, não podia provar. Sabia que eu era o ponto nevrálgico que poderia desencadear a rebelião de Dessand. Ele não iria se arriscar a que o filho passivo se rebelasse contra as suas ordens. E por isso, estava decidido a enviá-lo ao Internato - que eu apelidei de "Lugar da Lavagem Cerebral" (devido a programação mental a que os cadetes ficavam sujeitos).
Mas quem olhasse para Dessand, assim, mergulhado em seu mundo de quadrinhos, não perceberia ou acreditaria o sofrimento que ele tem enfrentado nos últimos meses, resultado da pressão exercida por seu pai. Observando-o disfarçadamente, talvez, nem eu acreditasse...
Dessand acenou para mim e se afastou, apontando para a porta de saída da sala de aula.
---
No corredor, os estudantes dos períodos intermediários se acotovelavam e corriam para as próximas aulas... Caminhei na direção oposta - rumo ao corredor dos banheiros coletivos. A área estava vazia, em comparação ao agito das salas de aula e da área de convivência dos alunos. Estranhei, pois era para estar lotado de garotas apuradas para irem ao banheiro (aproveitando o intervalo entre os períodos).
Eu não gostava de andar por corredores desertos. Como que corroborando os meus receios, avistei o garoto medonho, junto aos bebedouros.
Akil, o babaca que me perseguia desde... Desde sempre. Um valentão de marca maior, inconformado com o chute na virilha e o nariz quebrado que eu lhe proporcionei na quinta série. Puxa, isso foi há alguns anos, mas ele ainda não superou.
Dê meia volta, agora! - disse a voz em minha cabeça.
Não tenho medo dele! – rebati, em pensamento. Tive aulas de kretá-heon e pretendia fazer bom uso delas. Caminhei, determinada, e de repente, vi que Akil não estava sozinho. Havia mais três garotos com ele, que saíram do banheiro masculino.
A voz em minha mente se tornou um grunhido - misto de desafio e aborrecimento. As luzes sobre nós começaram a oscilar. Isso distraiu os garotos, mas não tive tempo de fugir. As lâmpadas se apagaram completamente e o corredor mergulhou na escuridão e no silêncio.
-Que foi isso, cara? - um deles perguntou, baixinho.
Não houve resposta. O ar se agitou ao nosso redor, como se uma energia pulsante nos envolvesse. Tive um sobressalto ao ouvir o som de gritos sufocados. De repente, as luzes se reascenderam. E lá estavam os garotos caídos no chão, desacordados... Mas espere! Eles pareciam mortos.
Eu me aproximei devagar, engolindo convulsivamente a bile que subia à garganta. Eu me abaixei e toquei com relutância o pescoço de Akil. Encontrei a pulsação fraca. Levantei e mexi no meu headset com a intenção de pedir ajuda.
Se não quiser que eles morram, afaste-se agora, soou a voz em minha mente.
Arrepiada dos pés à cabeça, eu me virei e corri para a segurança do refeitório.
---
Os estranhos eventos do corredor suscitaram um alvoroço tardio. Demorou, mas finalmente aconteceu. Da mesa de refeições, observamos a correria de enfermeiros e seguranças da torre. Os estudantes pararam de comer e de conversar para assistir, atônitos, o corre-corre. Ninguém entendeu o que estava rolando, exceto eu.
Exceto você - soou a voz debochada, na minha mente.
-O que será que aconteceu? - indagou Dora, sentada a minha direita, relanceando o olhar. Orínea e Kayed chegaram naquele momento, segurando seus novos crachás de alunos-ouvintes.
Todos esticaram os pescoços na tentativa de ver alguma coisa.
-Acho que alguém passou mal no corredor dos banheiros, ou algo assim - especulou Dessand, num tom chocantemente desinteressado.
Suspirei, sentindo o frio me envolver. Quando fui pegar a jaqueta, porém, o frio passou e eu me senti aquecida. Como se um manto invisível tivesse me envolvido. Os meus colegas ao redor vestiram suas blusas.
-Não está com frio, Nádia? – perguntou Dora.
Dei de ombros.
Dora comentou: - O sistema de calefação deve estar com problemas de novo.
Eu suspeitava de que os controladores baixassem a temperatura de propósito, para obrigar os estudantes a partirem logo para os ambientes mais aquecidos - no caso, as salas de aula – sem precisar recorrer aos inspetores escolares. O pessoal começou a se levantar das mesas. Nós fizemos o mesmo, recolhendo nossas mochilas e passando de maneira ordeira pelo corredor principal. De onde estávamos, tínhamos um vislumbre da confusão gerada no corredor dos banheiros, onde eu sabia que estariam Akil e os amiguinhos, ou parceiros de crime. Engoli em seco quando vi os paramédicos tentando acudir os garotos, colocando-os em macas, com tubos e suportes para soro.
-Ah, deve ter sido uma disputa de gangues - alguém comentou. Dessand concordou com a pessoa. Eu nem me dei ao trabalho de responder, tinha meus olhos pregados na cena que se desenrolava a minha frente.
Um policial tomava o depoimento do reitor do complexo educacional. Caramba! O sujeito mal descia do Olimpo para saber o que acontecia entre os meros mortais. A coisa deveria estar sendo levada muito a sério, para que se dignasse a fazer uma aparição.
-Não sei o que aconteceu com as imagens - dizia ele, inconformado. - As câmeras simplesmente não registraram nada no local, nesse horário que o senhor está me perguntando.
-São três câmeras - contestou o policial. - Como explica que todas as três entraram em curto? Todas ao mesmo tempo...
-Eu não explico - disse o reitor, abrindo os braços, demonstrando exasperação. - É isto que estou lhe dizendo. Não faço ideia do que aconteceu.
Engoli em seco. E me veio um pensamento que eu não sabia se era meu, ou da estranha voz que habitava a minha mente. Desta vez foi muito suave para distinguir. Talvez por causa da gritaria dos estudantes, empolgados com a novidade. Eu mal conseguia me concentrar, mas o pensamento foi espontâneo.
Vocês não sabem da missa, a metade.
Em meio ao alarido, avistei uma jovem mulher olhando-me fixo. Tinha o porte atlético e devia ser um pouco mais velha do que eu. Ao captar minha atenção, a afrodescendente sorriu de maneira impessoal. Desviou os olhos despreocupadamente, afastando-se sem pressa para longe do aglomerado de pessoas.
Eu não a reconheci do nosso círculo de convivência. Mas ela parecia me conhecer. Tinha todo o jeito de ser uma biogênica - pelo formato dos olhos, do crânio ligeiramente triangular, e a atitude passivo-confiante. Além do mais, usava um uniforme que poderia ser comum ao dos biogênicos, isto é, a cor era a mesma – laranja berrante. Mas não seguia o mesmo padrão. O macacão tinha listas laterais azul-marinho e o caimento era perfeito. Elegante, com um quê de sofisticação. Como se essa biogênica em particular exercesse atividades especiais ou diferenciadas da maioria¹.
Minha atenção se desviou do ponto em que a garota desapareceu para os professores agitados, na base da cúpula, orientando a nossa saída para os três pátios de convivência, em diferentes níveis. Eu me esqueci da garota, preocupada em não tropeçar nos meus colegas. Seguimos pelas escadas, além dos pátios, para o ponto mais alto da cúpula, onde teríamos nossas aulas do período vespertino.
De repente, meu praki-12 deu sinal de vida. E o retirei da mochila sob o olhar curioso de Dessand, e liguei a tela.
Era o meu pai, com o rosto carrancudo.
-Onde você está?
-E-eu estou na torre - respondi, confusa.
Ele pareceu aliviado.
-Quero que venha direto para casa, depois da aula - fez uma pausa tensa. - Entendido?
-Sim, claro... Relaxa pai!
Ele não respondeu.
-Eu te amo, Nádia - disse, de repente. E eu sabia que ele estava sendo sincero, porque seu amor era manifestado a cada dia, a cada instante, e eu me sentia a garota mais sortuda do mundo.
-Por favor, venha direto para casa – repetiu ele, desligando em seguida.
Fiquei um pouco espantada com o pedido e por ver meu pai - normalmente tranquilo e alegre - com uma expressão tão carregada. Ele estava transtornado. Deve ter sabido o que aconteceu ao Akil e ficou preocupado com a minha segurança.
-Você esteve lá, no banheiro - mencionou Dessand baixinho.
-Estive, e daí? - perguntei, num tom de "não tô entendendo".
Pensei que ele iria me perguntar se não vi nada de estranho. Mas ao invés disso, ele argumentou:
-Algo de muito ruim aconteceu lá... Poderia ter acontecido a você.
Fiquei surpresa com a percepção dele, mas eu não deveria esperar outra coisa. Troquei os livros de mão e esfreguei o seu ombro, num gesto desastrado de carinho.
-Não deve ter sido nada - eu disse, oferecendo uma desculpa: - Vai ver o cara passou mal.
-O cara? - Dessand fez uma careta cômica. - Foi a gangue toda! Finalmente, alguém deu uma lição naquele idiota do Akil e seus seguidores.
Alguém que não foi você - soou a voz do além, agora menos debochada e mais séria do que o normal.
A vontade de mandar a voz se calar tornou-se quase incontrolável. Mas se eu o fizesse, todo mundo ao redor iria me considerar uma louca de pedra.
-Ah, vai ver foi a loira do banheiro – argumentou Dora, empolgando-se com a própria imaginação.
-Pode ser... Ou o Zé do Caixão - retrucou Orínea, voltando-se para o irmão. - Lembra quando nosso pai nos falou das lendas antigas?
Kayed assentiu com a cabeça. – Tenho pavor dele!
Ele estava se referindo ao Zé do Caixão, cuja imagem estilizada dominava os memes e ferramentas sociais da usbnet.
-Haha - eu ri, mas sem achar graça.
Chegamos à cúpula, meu lugar preferido, onde eu tinha a vista de toda a cidade, seus muros de contenção e um pedaço do deserto causticante, mais além. Ali também tinha banheiro, mas decidi esperar até chegar em casa. Orínea não tinha a mesma preocupação que eu, lógico, pois se encaminhou ao banheiro feminino, dizendo que nos alcançaria depois. Encaminhou-se ao banheiro feminino.
Mal consegui disfarçar o nervosismo, enquanto ela se afastava. Não ousei dizer nada para impedi-la. Não podia. Afinal, o que eu iria alegar? "Não vá ao banheiro porque há uma voz flutuando por aí".
Ah, sim, isso seria... muito interessante, soou a voz.
---
Nota de rodapé:
1 - As roupas estavam sempre associadas às funções exercidas em nossa sociedade.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro