3
NÁDIA
O combinado
(Passado)
Dessand me lançou um olhar de dúvida. Eu devia ter imaginado; meu primo era um covarde por natureza.
Suspirei, tentando não demonstrar minha exasperação.
-Eles não vão saber - repeti, acrescentando: - isto é, se você não contar...
Ele continuou calado e eu finalmente explodi: - Como é, está dentro ou fora?
Ele baixou o olhar, hesitante. O que me deixou mais irritada do que já estava. Nesse meio tempo, Dora adiantou-se um passo, captando a minha atenção. Sempre destemida e de uma arrogância cativante, minha outra prima gostava de estar em meio à aventura. E se você oferecesse encrenca, ela era a primeira a topar.
-Eu estou dentro – disse, daquele seu jeito tranquilo de sempre, sorrindo de orelha a orelha.
-Ótimo – respondi, pousando os olhos em Dessand.
Além do parentesco, éramos melhores amigos. Nós nos entendíamos a perfeição, mas... Em momentos decisivos, como este, ele conseguia me tirar do sério. No mínimo, me levava a questionar intimamente o que tínhamos em comum... Penso que Dora tinha mais a ver comigo... Por outro lado, Dessand e eu tínhamos uma rara empatia, nascida da cumplicidade que nós reafirmávamos diariamente. Algo que eu não encontrava em Dora. Dessand ouvia os meus problemas e eu, os dele. Nós nos apoiávamos e era tudo o que importava.
O resto dava para administrar... Momentos como este!
-Ah, está bem – concordou ele afinal, como se me concedesse um grande favor.
Engolindo um suspiro cansado, eu me virei para os outros.
-E vocês? – perguntei aos gêmeos Kayed e Orínea, filhos do dignitário da Antusaca, em visita oficial à cidade. Eles estavam hospedados em nossa casa.
Eu não ia muito com a cara de Kayed, pois era mimado e levava uma vida de playboy. Já sua irmã, Orínea, apesar de se comportar como uma líder de torcida (deslumbrante, deslumbrada e perfeitinha), quando você a conhecia melhor, via que se tratava de apenas uma fachada. Ela era uma garota sensível, entusiasmada, e de bom coração.
No entanto, eu vinha percebendo que a garota andava estranha nos últimos dias. Toda aquela alegria dela (que me dava nos nervos) havia se evaporado. Orínea parecia até meio perturbada. Penso que a nossa pequena aventura serviria para animá-la.
Esperei pacientemente que os dois tomassem uma decisão.
Eles olharam para mim e acenaram com entusiasmo contido.
-Então, será hoje "à noite" – decidi, esfregando as mãos. E como não tínhamos noites, apenas dias perpétuos com uma luz ligeiramente atenuada, o período utilizado para dormir seria ideal para iniciarmos a nossa jornada. Quando a maioria das pessoas estivesse recolhida para dormir.
Nós iríamos nos esgueirar pelas construções desativadas - lugares proibidos, fechados por ordem do Parlatório. Mas não o faríamos pelo simples prazer de nos esgueirar. Queríamos conhecer o que existe além da cicatriz... O que pretendíamos, se fôssemos apanhados, poderia resultar em pesadas punições para nós e nossas famílias.
Considerando as lendas e suposições, nós seríamos os primeiros a realmente ir e voltar. Pelo menos era o que pretendíamos.
Tendo acertado os detalhes, eu bati palmas de alegria para espantar a irritante névoa de preocupação que eu via no olhar de Dessand.
Levantei da cama. Precisava correr se não quisesse me atrasar para a aula de ciências. Kayed e Orínea estavam de férias, mas os pais queriam que eles frequentassem algumas de nossas aulas, na qualidade de alunos ouvintes, a fim de acumular mais créditos para sua petição final¹. Dora, Dessand e eu, não estávamos, portanto, não poderíamos nos dar ao luxo de escolher as nossas aulas.
Os gêmeos entenderam a deixa para saírem do meu quarto. Dora também se apressou. Eles saíram, com breves acenos, enquanto seguiam rumo a nossa ala de hóspedes, do outro lado da habitação. (Meu pai recebia muitos dignitários; desde criança, eu estava acostumada a conviver com diferentes culturas e formas de pensar.)
Assim que a porta se fechou, eu consultei o relógio. Estava atrasada. Mas ainda era muito cedo para meu pai e o embaixador irem ao Parlatório, portanto, eu tinha que agir como se tudo estivesse bem e não chamar a atenção para mim ou meus planos secretos.
Dessand e eu tínhamos horários diferentes. Ele estava fazendo o preparatório para a academia militar, portanto, só tinha algumas disciplinas em comum comigo, no Liceu. A grade de aula dele era picada – algumas aulas num andar, algumas aulas em outro. O Liceu começava antes, assim, eu tinha que estar no elevador comunitário antes que Dessand. Hoje, ele só teria Academia; mas iria se submeter de bom grado à aglomeração do elevador comunitário, só para me fazer companhia.
Quando o assunto era a Academia, Dessand ficava mais depressivo e pessimista do que o normal. Na verdade, ele ia arrastando os pés até lá. Não curtia o estudo preparatório para a vida militar. Não se sentia um guerreiro, nem um soldado, e não queria seguir a carreira que seu pai, o General Raabnt, preparou para ele. Entretanto, Dessand submetia-se, como em tudo na vida.
Mais uma coisa nele que me deixava exasperada... Eu andava me policiando quanto a isto, pois os amigos aceitam os defeitos uns dos outros, certo? Eu aceitava os de Dessand, como ele aceitava os meus incondicionalmente.
Apesar de estudarmos em entidades educacionais distintas, a etapa educacional que frequentávamos exigia que fizéssemos disciplinas comuns, oferecidas por um CDB². Quer dizer, cada TE continha em seu topo uma sucursal da Academia; mais abaixo, um CE; e sob as duas, um CDB. O conjunto era chamado por nós, estudantes, apenas de Torre.
Algumas torres eram públicas e outras, privadas.
Meu primo e eu frequentávamos a TE pública, porque tanto meu pai - o dignitário oficial de Gehenna e orador principal do Parlatório, quanto o pai de Dessand, o Comandante das Forças de Proteção, queriam dar o exemplo aos seus eleitores distritais e demais chefes e representantes de Estado.
Meu pai desempenhava um papel que não me agradava, mas que era necessário - o de figura pública. Em toda a sua trajetória no Parlatório, desde quando iniciou como representante distrital até quando se tornou o presidente, suas opiniões sempre foram ouvidas e respeitadas. O fato de ter exercido influência positiva nas questões mais decisivas e urgentes, conduziu-o ao topo da hierarquia. E consequentemente, ao topo do grande jogo; onde os participantes manobram e negociam com as cartas que têm. Poder, cobiça e armações podem destruir o mais ardiloso dos jogadores.
A única carta que meu pai possuía era a sua honestidade. Ou seja, a confiança que inspirava naqueles que depositaram nele o seu voto.
Como chefe do Parlatório, ele não se comportava como alguém superior aos demais representantes distritais, ou perante a sociedade como um todo. E isso era o que eu mais amava nele. Meu pai era um homem simples e desejava o que havia de melhor para as pessoas, independente de suas origens, credos e posses. Ele via a nossa sociedade como um pacote único, não como se determinadas castas merecessem mais coisas, ou coisas melhores, do que outras castas...
Era irônico como algo que ao mesmo tempo me desagradasse - o trabalho de meu pai - acabasse por cultivar o que eu mais amava nele.
Não me importava de estudar numa TE pública, para agradá-lo. Na verdade, eu atendia de bom grado a sua vontade, porque, no fundo, eu concordava com a premissa de que "o exemplo vem de cima". E, também, porque é uma das poucas construções que ficam acima da superfície. Bastante acima, diga-se de passagem. Do topo das TE, têm-se uma vista privilegiada dos cânions da cicatriz.
Sei que existem lugares exóticos, que a vista não alcança... Alguns eu conhecia das viagens diplomáticas em que acompanhei meu pai; outros, só ouvi falar... Mas ansiava conhecer!
Eu sabia que, independente de focal ou polo, todas as cidades eram protegidas por redomas de vidro triplo laminado e películas especiais contra a radiação. Víamos o mundo um pouco mais escuro que o normal, porque o mundo iluminado lá fora, além da fronteira, em realidade, era iluminado demais. Ficaríamos cegos com tanta luz e calor. Mas pelo menos, a gente podia ver alguma coisa do alto da torre, mesmo que protegidos pela redoma. Nós costumávamos imaginar que as cidades bolhas eram como aquários, em meio ao mar de fogo que cercava a zona intermediária, e que nós, éramos os frágeis peixinhos dentro dos aquários.
Todas as cidades bolhas existentes em ambas as bordas da cicatriz, eram interligadas por túneis de superfície, inseridos em tubos feitos do mesmo material transparente e escurecido das redomas.
Lancei um olhar triste para a janela do meu quarto, que exibia apenas a pintura em 3D de uma paisagem que existiu há milênios, quando a Terra era rotacional. Não havia uma janela de verdade em nossa casa. Ninguém possuía uma janela de verdade.
Bem, quando estivéssemos na torre, eu deixaria minha imaginação voar por sobre a proteção da redoma - para além da Cicatriz. Até onde minha vista alcançasse. Não via a hora de encontrar o que havia no lado mais recuado da fronteira. Entretanto, eu não tinha ilusões de ir muito além. Estávamos na dependência de os mapas que encontrei nos arquivos estarem corretos e que os veículos e equipamentos de imersão climática estivessem em bom funcionamento para seguirmos até o lado escuro. Eles eram utilizados pelos operários, inclusive os besouros, desde os tempos em que as bases de sustentação das cidades bolhas estavam sendo erguidas, a fim de receber o peso das cúpulas de proteção reforçadas, feitas de placas de vidro especial. E isso foi... Há mais de cem anos. De lá para cá, a tecnologia evoluiu a fim de que as lâminas não precisassem ser retiradas para receberem jateamentos e banhos de produtos químicos.
Se havia uma coisa que aprendemos sobre tecnologia, nas aulas de Conhecimento Aplicado, era como as coisas se constituíram em nossa sociedade.
Não era raro que os operários sofressem as consequências da exposição à radiação, mesmo que breve. A tecnologia precisou evoluir para garantir a segurança dos trajes utilizados nos trabalhos de risco. Com o passar do tempo, os operários humanos foram substituídos pelos biogênicos que, com sua resistência sobre-humana, revelaram-se capazes de suportar temperaturas inferiores e superiores às toleradas pelos humanos comuns, bem como a radiação, a fim de auxiliar na construção e reparo dos complexos subterrâneos das cidades.
Até um passado recente, as técnicas de confecção dos vidros variavam entre a produção de camadas de óxido metálico, o enchimento de material químico de teor transparente (o qual se expandia com o calor), e os filmes especiais. As películas e os filmes especiais protegiam contra a radiação, mas a manutenção era necessária para que mantivesse a passagem da luz na intensidade adequada - não causando danos aos órgãos dos sentidos humanos - e ao mesmo tempo, retendo o menor acúmulo de calor possível. Caso contrário, as cidades virariam estufas gigantes e todos seriam... defumados.
A manutenção das placas de vidro deixou de ser realizada com tanta frequência diante do aprimoramento do PVB em vidros laminados. Antigamente, era um transtorno, pois os operários tinham que retirar uma placa de cada vez e imediatamente substituí-la por outra, provisória, enquanto a anterior era baixada para jateamento e nova cobertura. A combinação das camadas do vidro era voltada para dissipar o calor e manter a luz branca.
Atualmente, os vidros já continham o material inerente em sua própria composição, de modo que a vida útil das placas de vidro tornou-se maior. Elas não precisavam de manutenção frequente. E o mesmo valia para as mini-cúpulas criadas para cobrir os túneis de transporte entre as cidades. Os materiais e equipamentos dos operários costumavam ficar guardados nas áreas de trânsito do subterrâneo, sob o concreto das cidades. Aquelas eram áreas de circulação destinadas apenas às pessoas autorizadas. A sua base de atuação continha uma ala de desinfecção e era por lá que nós, usando nossos trajes especiais, pretendíamos sair e retornar.
Ainda devaneando sobre as áreas proibidas, levei o maior susto quando Dessand desabou na cama, ao meu lado. Ele abriu sua prank-12 e a imagem de uma revista em quadrinhos, a sua preferida, apareceu na tela transparente e lisa, confeccionada em cristal. Ele se entreteve na leitura, enquanto eu me dirigia ao banheiro anexo para trocar de roupa.
Coloquei o primeiro conjunto que encontrei dentro do cesto de roupa suja. Quer dizer... Não estava assim, tão suja, só um pouco amarrotada. Alisei o tecido no próprio corpo e me olhei no espelho. A camiseta branca e a calça caqui do uniforme escolar me assentavam bem, só precisava de um cinto, já que andei emagrecendo um pouco nas últimas semanas. Não estava dormindo bem e andava inquieta e irritada por qualquer coisinha.
Dei uma última olhada crítica para mim mesma, pelo espelho. O cabelo castanho encaracolado estava dando tiro para todo lado. Ele era como uma esponja, quanto mais sujo, mais seco, e quanto mais seco, mais armado. Eu tinha que lavá-lo e hidratá-lo com frequência, a fim de manter a maciez e forma dos cachos...
O que não era o caso, agora. Eu não tinha tempo para todo esse ritual.
Voltei para o quarto, penteando os cachos emaranhados com os dedos. Dessand lançou-me um olhar de decepção e suspirou, antes de me chamar, flexionando o dedo indicador.
Franzindo o cenho, eu me aproximei.
-Que foi?
Ele não respondeu de imediato, simplesmente se levantou e começou a puxar a minha camiseta que tinha ficado presa no sutiã, na parte de trás - e eu nem percebi. Dessand me contornou para soltá-la. Não ligava para o fato de ele estar vendo o meu sutiã, porque éramos como irmãos, mais do que primos. Ele sabia tudo sobre mim e eu sabia tudo sobre ele. Quer dizer, ele sabia quase tudo sobre mim... Não sabia dos meus antigos sonhos. Nem do...
-Pronto! – disse ele, trazendo-me de volta à realidade.
-Estou mais apresentável? – indaguei, num tom sarcástico.
-Minha priminha relaxada – ele ralhou de um jeito brando e, ao mesmo tempo, condescendente.
Revirando os olhos, eu o puxei pela gola de seu uniforme da Academia Militar (que era uma versão suavizada do uniforme de um soldado) e nós saímos para o caos que era a minha casa àquela hora da manhã.
Papai estava servindo cereais para o chato do meu irmão Brume, com seus gritinhos estridentes, e mamãe mexia as panquecas na frigideira. Ela levantou os olhos do fogão, sorrindo para mim.
-Bom dia, querida! – saudou-me, servindo as panquecas na pilha enorme que já transbordava a travessa, no centro da mesa. – Feliz aniversário!
Mamãe me puxou para um abraço apertado, deixando-me ligeiramente constrangida; depois afastou-se, mas apenas o suficiente para me dar uma boa olhada. Tinha uma expressão carinhosa e, ao mesmo tempo, pensativa. Como quem diz: "meu bebê se tornou uma mulher".
-Meu bebê se tornou uma jovem mulher - disse, fazendo-me revirar os olhos. - Não podemos deixar a data passar em branco. Temos que fazer algo a respeito...
Ela estava se sentindo culpada. A atividade no Parlatório consumia todo o seu tempo, quase tanto quanto o do papai. (Mamãe era presidente das comissões de integridade humana, e levava muito a sério suas responsabilidades.)
Mas como eu também estava me sentindo culpada porque pretendia fazer algo expressamente proibido – passível de penalidades graves – resolvi que estávamos quites em termos de culpa. Minha mãe só não sabia disso. Pousei a mão em seu ombro de leve.
-Está tudo bem, mãe.
-A gente fará uma grande festa no sábado - ela prometeu.
Procurei manter a expressão neutra, embora a tentação de fazer uma careta tenha sido grande. Eu não queria uma festa, mas a culpa do que eu estava prestes a aprontar me fez calar e sorrir candidamente.
-Sábado está ótimo - concordei.
Ela acenou com a cabeça, ansiosa por uma solução adequada que encerrasse o assunto. Não era diferente dos pais que enchiam os filhos de presentes para compensar a ausência.
-Prometo que será inesquecível! - ela sorriu, fazendo surgir a covinha na lateral da bochecha que, por sinal, eu herdei. - Não é todo dia que nossa garotinha faz dezessete anos.
Revirei os olhos.
-Garotinha? Eu já sou uma mulher! – debochei de leve.
Agora foi a vez de minha mãe revirar os olhos, como quem diz: "Até parece!"
Agarrei minha mochila, abandonada no sofá da sala desde a noite anterior. Girei nos calcanhares e saí correndo em direção à saída. Dessand já me aguardava com a porta aberta. Ele manteve a expressão impassível e respeitosa. A mesma que sempre usava em presença de minha mãe. (Seu deboche perene nunca foi flagrado pelos meus pais. Eles o adoravam!)
Nós dois disparamos rumo ao elevador comunitário, torcendo para que o de sete e vinte não tivesse passado. Caso contrário, aí, sim, eu estaria encrencada. Dessand iria assistir a aula comigo para me dar apoio moral, pois já tinha cumprido os créditos obrigatórios da disciplina. Teoricamente estava livre de ter que aguentar Hélio.
Mas eu não estava. Cara, eu odiava aquele professor... Na verdade, eu tinha medo dele.
Se alguém me perguntasse, eu não saberia explicar o motivo. A mente de Hélio era brilhante, porém, ele tinha um jeito muito frio de encarar o mundo e as relações entre as pessoas... Como se elas fossem... Insetos em seu microscópio.
O elevador comunitário abriu as portas reforçadas. Como sempre, estava socado de tantos adolescentes – os quais foram embarcando nos andares inferiores desde o solo e o subsolo. Todo mundo rumo ao mesmo andar que eu e Dessand: a torre.
Nós nos esprememos alegremente porque, apesar do transtorno, os "últimos serão os primeiros".
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Nota de Rodapé:
1 - A petição final era um processo, no qual, o aluno do sistema educacional de Gehenna solicitava o seu ingresso no ensino superior. Tal processo consistia em demonstrar habilidades e currículo voltado para a área pretendida.
2-Nomenclaturas educacionais: CDB (Centro de Desenvolvimento Básico); TE (Torre Educacional); CE (Centro Escolar;
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