Capítulos 8, 9 e 10
[Manuela]
8 - A garota do tempo
e a rainha fugitiva (e vice-versa)
Pois é... Eu mordi o dedo de Helena de Troia. Atenção, Brasil, que este é um momento histórico! Primeiro, porque descobri que sou parecida com a mulher mais linda do Mundo Antigo. (Se bem que eu ganhava de dez a zero! – Helena tinha tantos pelos na cara e nos sovacos, que estava mais para Frida Kalo). Segundo, porque eu mordi o dedo da lenda.
Tá... Concordo que não foi higiênico... Mas acho que é mais fácil que eu passe patogênicos para ela, do que o contrário.
Emerson estava furioso comigo até o momento em que fomos levados sabe-se lá para onde.
Eu não entendia uma palavra do que estavam falando, não sabia o que estava pegando, nem porque fui arrastada para aquele lugar. Fomos capturados e levados juntos, mas assim que chegamos ao palácio, os guardas nos separaram. Eles obedeciam às ordens de um cara bonitão, musculosão, todo gostosão, que Emerson apostou ser o tal do Heitor.
Hector, o galã mexicano.
-Ele vai te matar – eu disse para a cara feia que Hector estava fazendo para mim. – Aguarde e confie que o Aquiles vai te colocar no devido lugar. Que é: espetado numa lança e pronto para virar um churrasquinho.
Obviamente, ele não entendeu uma vírgula do que eu estava dizendo. Apontou dramaticamente para nós, e os homens me levaram, quer dizer, me arrastaram para uma espécie de harém. Devia ser, porque me deparei com um bando de mulheres cacarejando para cima e para baixo.
A mulherada pulou em cima de mim e arrancou as minhas roupas.
Eu só sabia gritar.
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Não fazia ideia de onde Emerson estava naquele momento. O palácio ocupava uns dois ou três andares na ala norte daquele labirinto vertical. Tive que reconhecer que estava apavorada, sem entender nada do que eles diziam ao meu redor. Emerson é que tinha o tradutor automático, não eu. Ah, mas o tradutor nem servia para o jeito que as pessoas falavam por ali. Eu diria que era algo tipo neanderthalês. Como se o ar saísse dos pulmões aos borbotões, assim como a voz.
Agora entendo porque abriram os portões de Troia pra gente. Não foi porque Emerson acertou no pedido, mas porque eles me viram e acharam espantosa a semelhança entre mim e a rainha fugitiva de Esparta.
Quer saber, eu não entendo... A gente era parecida, mas... Era só... Quer dizer... Sei lá. Podíamos passar por irmãs, no máximo. A quem eles queriam enganar? Engoli em seco... E como viram a semelhança à noite? Eles tinham olhos de raio-x, por acaso?
Quando as mulheres me levaram para uma piscina gigante e fumegante, até que gostei da ideia de tomar um banho pra tirar a inhaca. Mas depois que as servas começaram a me esfregar com óleos perfumados, a ficha começou a cair. E eu me dei conta de que iriam me servir como um porco recheado no ano novo.
Não, essa comparação não foi nada lisonjeira.
De repente, eu me lembrei do que Sandra falou sobre Helena de Troia... Se praga de irmã pega, eis a prova! Mas, e por falar na Helena... Aonde ela tava?
As servas continuaram passando a mão em mim, apesar de eu estapeá-las e gritar adoidado. De repente, fui içada da água por braços fortes. Olhei para cima, e o guarda do harém me encarou de volta, com uma carranca! Como quem diz: "Colabora ou vou te encher de porrada!"
Será que era um eunuco de verdade? Se eu o chutasse naquela parte da anatomia, ele iria sentir, ou algo assim? Engoli em seco.
Quando dei por mim, Helena surgiu triunfante, subiu no alto de um pedestal, completamente nua, e deixou-se ser besuntada como eu. Ela parecia tão calma. Alguém deu uma bebida a ela, que tomou tudo de bom grado. Outra garota se aproximou de mim e ofereceu uma taça, cujo conteúdo, eu derramei com um safanão. O eunuco me esbofeteou. Ato contínuo, eu me virei e acertei o saco dele com um chute.
As mulheres me olharam, horrorizadas.
Foi aí que descobri que o eunuco era mesmo um eunuco. Pois ele não demonstrou sentir absolutamente nada. Agarrou-me pelos cabelos e me obrigou a beber uma nova taça servida pela garota. Eu me engasguei toda. Passado alguns minutos, fui ficando tonta...
Tontinha da Silva...
Porque a Helena não tava tonta como eu? Estaria acostumada aquilo que nem mais fazia efeito? Então, ainda nua, Helena se aproximou de mim a fim de supervisionar a escolha de roupas. Pelo visto as dela e as minhas. Escolheu roupas iguais – quer dizer, os véus eram da mesma cor. De repente, ela me olhou com ódio e desprezo, como se não tolerasse que existisse alguém parecido com ela.
Vestiu-se com a ajuda das mulheres e saiu, sem olhar para trás. As outras se juntaram ao meu redor, tentando enfiar as roupas em mim, mas eu apontava para as minhas próprias roupas, amontoadas num canto. Reparei que os guardas e o eunuco estavam me encarando. E como eu não queria ficar mais tempo pelada na frente de estranhos, aceitei que elas me vestissem.
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Outro eunuco apareceu para me conduzir. Ele me empurrou pelo corredor e eu tropecei nos véus. Teria caído se ele não estivesse segurando o meu braço. Eu estava tonta por causa da beberagem; e senti o piso gelado sob os meus pés nus.
O eunuco me empurrou de novo, para me fazer acelerar o passo.
-Se você continuar me empurrando, vai se arrepender.
O longo corredor estendia-se a nossa frente. As piras acesas emprestavam um brilho especial às cerâmicas coloridas e esmaltadas, que recobriam delicadamente o piso e metade da parede.
Ao final, pude ouvir o som de cítaras e o canto dos aedos¹.
O eunuco me empurrou pela terceira vez. Eu praguejei.
Quando o corredor abriu para um grande salão - que por sinal estava lotado de gente, o silêncio dominou o lugar. Até a música e o canto cessaram por completo, quando as pessoas me viram entrar.
Todo mundo pareceu chocado com a semelhança entre mim e Helena. Uma semelhança maximizada pelos trajes idênticos que estávamos usando.
Ao me deparar com a cara de limão azedo da Helena, eu lhe disse: - Olha que o teu destino tá traçado e vai ser bem cruel, minha filha! – avisei. – E não estou nem aí se estou dando spoiler.
Olhei ao redor, ainda meio zonza, e avistei um rei sentado no trono, com sua rainha ao lado. Eu deduzi que fossem os donos da bodega, porque, apesar de estarem sujos e sinceramente, parecerem bem decadentes... Eles tinham uma coisa trançada na cabeça e todo mundo demonstrava respeitá-los...
Agora, acho que meus colegas da aula de História iriam ficar chocados em como um trono mais parecia com uma privada.
Acho que o rei estava cagando nele, nesse exato momento. Ui!!!!
Hector, eu reconheci de cara... E acho que aquele ao seu lado era o famoso Paris. Os dois estavam acompanhados de uma mulher que eu não fazia ideia de quem fosse... E lógico, a Helena. Cada um tinha um olhar entre especulativo e recriminador. Era como se eles me reprovassem, e ao mesmo tempo, me considerassem a solução de seus problemas.
Mas quê problemas?
De repente, eu avistei Emerson preso a uma grade de madeira, sentado no chão. O pescoço e os pulsos estavam enfiados em algemas escuras e largas, que o mantinham imobilizado junto à grade. O capacete e o H tinham desaparecido.
Ele fora obrigado a mudar de roupa, como eu. Estava usando uma daquelas fantasias que vi em filmes tipo "Ali-babá e os 40 ladrões".
(Agora estávamos precisando dos 40 ladrões!)
Ao lado do Emerson, havia um guarda que não tirava os olhos do seu cabelo espetado. Ele ficava passando a mão, e dando risadinhas com outro guarda, que estava observando de longe.
O eunuco então me empurrou pela quarta e última vez. Isso, porque eu me virei e acertei o meu melhor chute no meio das suas pernas. Desta vez, o cara se dobrou em dois, urrando de dor.
-A-há! – eu gritei, apontando para ele. – Eunuco fake! Ele tem bolas!!!
Ninguém piscou. Eles me encaravam e cochichavam.
-Aposto que ele come todas as mulheres daquele harém. - Procurei o rei de Troia com os olhos e disse: - Você é o maior corno da história.
-M-manuuu!!! – Emerson me chamou, com a voz cansada. Dava pra ver que seus lábios estavam secos; tadinho... devia estar com sede. Mas o que ele disse a seguir foi num tom carregado de ironia: - E-eles não entendem a-a nossa língua.
Eu murchei feito um balão de festa. Seu estraga-prazeres.
-Ah, é... – Concluí que ele tinha razão. – Que sem graça!
O eunuco ferido se inclinou para mim, agarrou o meu braço e me empurrou para perto do nerd.
Eu me sentei ao lado de Emerson e agarrei o seu braço, apavorada. Ele gemeu, devido a sua posição difícil e incômoda.
-Cadê o H? – perguntei, baixinho.
-E-eu engoli! – ele me lançou um olhar atravessado. – Olha p-pra mim!
Ele tava amarrado como um boi numa parelha e tinham trocado a sua roupa todinha... Coitado. Fiz uma careta.
-Tá, tá, tá! Eu já entendi que eles levaram, mas não precisa ficar "nervudinho". A sua gagueira só piora quando você fica assim, histérico.
Ele me olhou cada vez mais indignado. Se é que isso era possível.
-Não diga nada que possa se arrepender depois – eu o avisei.
-P-por quê? Vai chutar as minhas b-bolas também?
Eu o encarei de volta. – Olha... Que não é má ideia!? Não esqueça que sou boa de chute. Vai que acaba curando essa sua gagueira de vez!
Ele ficou vermelho de tão furioso.
De repente, um cara todo sarado, musculoso, bronzeado, lindo, com cara de mau e que me deixou abalada até a alma com tanta masculinidade (Afinal, sou filha de Deus!), começou a falar com raiva olhando para mim.
-Olha, se for pra dar bronca, eu não estou em casa... Só se for pra você me jogar na parede e me chamar de lagartixa, meu bem.
-Inacreditável – murmurou Emerson.
-Cala a boca – eu murmurei de volta. - Lembre-se dos meus chutes.
O sujeito lindão de viver começou a discursar e apontar para mim. O rei balançou a cabeça, em dúvida. Mas daí, a safada da Helena disse alguma coisa, apontou aquele dedão para mim de novo (só que a uma distância segura, claro) e o rei acabou concordando com um aceno de cabeça.
-O que será que eles querem da gente? – eu sussurrei.
-Da ge-gente, não... – Emerson negou com a cabeça, como se soubesse de algo que eu não sabia. – De v-você.
Epa.
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[Manuela]
9 – Vender gato por lebre
-E-eu os observei, enquanto eles lidavam c-com a gente – Emerson fez uma careta, quando tentou mover o pescoço e não conseguiu. – Acho q-que a sua se-semelhança espantosa com Helena é algo que eles q-querem usar.
-Usar para quê?
-Para a-apaziguar o rei Me-menelau. Assim, eles conseguem ajudar o ca-casal de amantes Paris e Helena, e e-enganam o marido traído e v-vingativo. Acho que a f-frota de Menelau e dos outros d-dois reis, devem estar a caminho de Troia a-agora, e eles já sabem disso. D-devem ter recebido notícias de batedores, ou mensageiros. Havia uma movimentação de e-estrangeiros na corte, agora p-pouco.
-Eu? Apaziguar Menelau? – fiz uma careta. – Como?
Emerson apenas olhou para mim.
A ficha caiu.
-Não. De jeito nenhum.
Será que eu fui a origem da histórica expressão: "Comprar gato por lebre?" Eu estava quase surtando. Emerson simplesmente disse:
-T-temos que dar o fora daqui.
Algumas trombetas soaram lá fora, além da amurada. Todo mundo correu para as portas janelas do palácio. Estavam tão ocupados observando o que quer que estivesse acontecendo na praia, que se esqueceram da gente. Eu me levantei rapidamente, a fim de pegar uma faca, ou qualquer coisa que cortasse. Havia uma adaga perto de uma janela.
Eu me aproximei com cuidado, pois o objeto estava perto de um dos guardas. Ele estava de costas para mim, entretido com alguma coisa. Olhei de relance e o que eu vi foi estarrecedor. A praia que antes estava deserta, agora estava tomada de soldados; tendas armadas; tochas acesas fincadas no chão. E no mar, navios a perder de vista.
A frota inimiga.
Aquela gente devia estar me considerando um presente dos deuses. Eu que não iria bancar o cordeiro de sacrifício! Além do mais, se eles conseguissem fazer Menelau acreditar que eu era Helena, pelo menos por algum tempo, e Troia não fosse destruída naquela guerra, o curso da humanidade seria modificado radicalmente. Que catástrofe!
Mas se querem saber, eu estava mais preocupada em mofar na cama de um velho déspota e tarado. Deus me livre, perder a minha virgindade desse jeito!
Eu não tinha tempo para divagações, simplesmente corri para junto de Emerson e procurei uma forma de libertá-lo. As algemas, apesar de serem de metal, estavam presas por meio de cordas, com nós nos ganchos de cada encaixe. Eu usei a adaga para cortar a corta e as algemas se abriram; fiz o mesmo com o pescoço e o ajudei a se levantar.
-Não sinto minhas pernas – ele disse baixinho, apoiando-se pesadamente na grade.
-Não temos tempo pra isso – eu coloquei seu braço por sobre o meu ombro e meio que o arrastei em direção ao corredor por onde vim mais cedo. Atrás de nós, ouvimos mais trombetas. Alguém berrava lá da praia.
À medida que avançamos pelo corredor, Emerson começou a colaborar mais. Sua circulação voltou e ele correu junto comigo.
-Eu tenho que pegar o H – ele disse pra mim, aflito.
-Sabe onde está?
-Sei, sim – ele apontou na direção das escadas.
Eu, por meu turno, apontei para a porta do harém. Nós dois acenamos e prosseguimos separados. Acelerei o passo, correndo para o harém. Estava sem nenhum guarda, ou eunuco – provavelmente, estavam todos entretidos com a chegada do rei Menelau. Um grupo de mulheres agitadas se aglomerava na entrada, loucas para saber o que estava acontecendo lá fora, mas sem coragem de desobedecer e sair da habitação onde deviam permanecer confinadas.
Eu as empurrei e entrei como um raio, ignorando sua agitação e pânico. O grupo meio que ficou ao meu redor. Algumas delas estavam nas janelas, guinchando e apontando lá para fora. De modo que as outras não sabiam se prestavam atenção em mim, ou se corriam para ver o que estava acontecendo.
Eu as ignorei. Todas. Precisava achar as minhas roupas.
Antes que as mulheres conseguissem entender o que tava rolando, eu me mandei pelo corredor e fui me juntar ao Emerson nas escadas. Ele vinha de outra direção, trazendo o capacete e o H, graças a Deus.
Deixamos o palácio de um jeito fácil demais.
Mas eu suspeitava que sair daquela ratoeira de cidade vertical não iria ser tão fácil assim. Atravessamos o pátio e alcançamos os portões que davam para o lado sul – as montanhas. Os guardas não perceberam a gente, pois estavam entretidos com o que estava acontecendo do outro lado, na praia.
Assim sendo, Menelau e seu exército, mais o manto protetor da noite, nos ajudaram a seguir sem problemas. No entanto, não podíamos chamar os vigias e dizer: "Pessoal, abram pra gente sair!" Os portões eram pesados e estavam muito bem trancados. Isso eu comprovei.
-P-precisamos nos esconder – constatou Emerson, olhando ao nosso redor.
De repente, começou um berreiro dentro do palácio. Os bocós finalmente perceberam que a gente deu no pé. Emerson apontou para um cercado com um amontoado de feno, ao lado da saída sul. Provavelmente, o ponto era estratégico para a entrada e saída dos animais, sem que se misturasse com o a parte interna da cidade.
Nós entramos no cercado, redistribuímos o feno, e nos cobrimos até a cabeça.
Foi quando a ovelhinha rebolativa que foi atrás de mim, mais cedo, se destacou do seu grupo e começou a fuçar no feno, para me encontrar. Eu sabia que era ela, por causa da coleira de couro.
-X-xo-xô! – Emerson repetia, baixinho. – O q-que é que tem v-você com essa ovelha?
Ele estava indignado. A ovelha foi fuçando mais fundo e eu comecei a temer que nos encontrassem.
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[Manuela]
10 – Como você se vê
O plano surgiu do nada!
Na verdade, não foi bem um plano. E também não foi bem do nada... Nós simplesmente seguimos o rebanho conforme a oportunidade se apresentou. Literalmente.
Os pastores começaram uma movimentação em torno do cercado e dos casebres emendados à muralha. Deduzimos que eles iriam partir, levando suas ovelhas – incluindo a ovelhinha maluca e saltitante que acabou com todas as minhas barras de cereais para não nos dedurar, em meio ao feno.
Os portões traseiros de Troia se abriram com a aurora, e nós dois acompanhamos o cortejo dos pastores, embrulhados em nossas mantas e véus. Ficamos protegidos pela penumbra do quase amanhecer.
Foi uma noite terrível. Não dormimos. Por um lado, por causa da batucada dos tambores que vinham lá da praia (e nesse particular, acredito que a maioria dos moradores da cidade também não dormiu). E por outro lado, por causa do frenesi com que fomos caçados. Os guardas do palácio vasculharam tudo... Estavam desesperados, com certeza, por causa do vacilo com que tiraram os olhos da gente, propiciando a nossa fuga espetacular. Bem debaixo do nariz de cada um deles!
Aquele pessoal da antiguidade não era tão previdente quanto os carcereiros do nosso tempo.
Em meio às frestas da palha, a gente assistiu enquanto eles entravam nos apartamentos, em cada andar, inclusive o subsolo; olhavam dentro de cada um daqueles vasos enormes; e reviravam cada planta do pátio... O único lugar em que não pensaram em procurar, foi nos montes de feno do cercado.
Eu nem respirava direito até estarmos distantes o suficiente para que eu virasse para trás e mostrasse o dedo do meio para as muralhas da cidade e a megera da Helena que estava lá dentro. Ela iria ter que encarar o seu destino, afinal. E eu não estava com pena, não. Afinal, era eu ou ela.
-A-ainda não entendo como v-viemos p-parar t-tão longe no t-tempo! – Emerson comentou inesperadamente, enquanto caminhávamos atrás do grupo.
Eu observei o grupo avançar, enquanto nós dois andávamos cada vez mais devagar para criar um distanciamento que nos permitisse nos separar sem alarde.
-Eu e Sandra falamos sobre Helena de Troia, certa vez – eu lhe contei. - Quer dizer, Sandra me ameaçou com um destino similar ao dela. Que estranha coincidência a gente estar aqui...
Emerson me olhou com cara de assombro, mas nada disse. De repente, sinalizou para um agrupamento de rochas e nós fomos deixando os pastores e seu rebanho se afastarem cada vez mais. Então, corremos e nos escondemos.
-P-pelos meus cálculos, G-gobeke Tepeke fica pra lá – Emerson apontou. – N-nós devemos continuar a viagem evitando a estrada p-principal.
A gente finalmente iria começar a nossa jornada – e a próxima etapa do plano delineado na gruta da praia; eu agora me sentia mais esperançosa de que pudéssemos escapar daquela embrulhada...
De repente, eu vi a ovelhinha saltitante atrás da gente. Emerson me encarou, com cara feia. Mais feia do que o normal, aliás.
-O que é que você tem que atrai gatos e ovelhas?
-Eu sou uma pessoa boa – respondi. – E os animais sentem isso.
-Sei. Boa e modesta.
-Eu sou muito modesta, acredite... Além de linda!
-Vamos torcer para que a gente não comprove a lenda do Minotauro e não veja uma criatura metade homem, metade touro seguindo você também.
-Hahaha – eu disse, sem rir de verdade. - Piadinha boa essa!
A ovelha nos acompanhou por todo o percurso, mesmo que tortuoso, não importando o quanto fizéssemos para ela desistir. Até nos protegeu, ajudando a evitar os ninhos de cobra escondidos entre as pedras.
Tivemos que improvisar uma fogueira, à noite. Os véus e a minha jaqueta não eram suficientes para nos aquecer naquele tipo de frio. Simplesmente gelava quando o sol se punha, em contraste do calor infernal do dia. A única coisa que refrescava era a proximidade com o mar e os ventos marítimos. Mas agora, estávamos nos distanciando do frescor para enfrentar duas metades de uma laranja: calor e frio. Sem direito a meio-termo.
Achei que acabaria me gripando, mas me lembrei de que não havia vírus como aqueles naquela época. Ou havia? Mas... poderia haver vírus piores? Eu fiquei preocupada... E se eu fosse um agente de transporte de vírus e bactérias de um tempo à frente, que acabaria com a humanidade aqui, no tempo de atrás?
Jesus... Eu mordi o dedo da coitada!!!
Eu estava tão arrependida daquela viagem no tempo! Agora, precisava resolver o imbróglio em que me meti. Em que meti a nós dois. Eu só não sabia como. Para começo de conversa, eu não entendia como viemos parar em Troia!?
Enquanto as chamas da fogueira queimavam e a gente traçava as nossas últimas balas de goma para enganar o estômago, eu olhei ao redor, desacostumada a todo aquele silêncio noturno. Claro que tinha o som uivante do vento, que as vezes vinha de surpresa e quase apagava o nosso mísero fogo, feito com os esparsos gravetos que encontramos e um providencial isqueiro, de Emerson... E claro que tinha o som das criaturas noturnas... As hienas e coiotes e lobos e tudo que... uivava e grunhia e fazia "uuuuhuuuu".
Estremeci igualmente de medo e de frio.
O céu noturno era inacreditavelmente estrelado. Nunca vi um céu como aquele. Saquei o celular, liguei e fotografei.
-Ah, q-que ótimo! – disse Emerson. - Vai fotografar n-nosso passeio turístico?
Eu o fotografei, cegando-o com o flash e fotografei a ovelha, que ao invés de correr, aproximou-se pra cheirar o dispositivo.
-Enquanto eu tiver bateria, vou sim – respondi. - Ainda bem que resgatamos nossas roupas – eu disse, mostrando o meu celular e apontando para o isqueiro na mão dele.
Se não fosse isso, agora não teríamos fogo.
-Minha p-preocupação não era perder a ch-chance de fazer fogo – disse ele, azedo. – Mas d-deixar eletrônicos m-modernos neste tempo. Já pensou o-o impacto que teria se, d-daqui há alguns m-milênios, considerando que a-alguns dos componentes s-sobrevivessem e fossem reconhecidos c-como tais, aparecessem no r-radar dos arqueólogos lá da n-nossa época?
-Igual àqueles que foram encontrados na Rússia? – eu perguntei.
O rosto dele expressou confusão, mas ele rapidamente assimilou a ideia. – Ah, tá, aqueles componentes p-pseudoeletrônicos que ni-ninguém sabe explicar, no sítio a-arqueológico de Arkaim...
Ele era rápido de raciocínio, tenho que reconhecer.
-Não sabia q-que você lia sobre e-essas coisas – ele comentou, erguendo a sobrancelha.
-Querido, você não sabe nada sobre mim. Tenha sempre em mente que as aparências enganam.
Ele balançou a cabeça. – Em a-algumas coisas sim, em o-outras não.
Intrigada, inclinei a cabeça.
-Como assim?
-A gente t-traduz em nossa aparência, ideias que q-queremos expor ao m-mundo. No seu caso, e-então, eu d-diria que você tem uma p-predileção em provocar c-confusão e surpreender as pessoas s-sobre si m-mesma.
-Hum... Desde quando nos tornamos tão profundos?
-Desde q-que você fez questão de acenar sobre as aparências, e como elas e-enganam.
-Não, eu quis acenar em relação ao preconceito que acalentamos como nossos bebês queridos, tendo por base a aparência das pessoas. E você, mais do que qualquer um, deveria entender isso. Já que sua aparência denota alguém extremamente tedioso.
-Sei... V-você quer dizer que a minha gagueira é extremamente t-tediosa. Com c-certeza, você não leria um r-romance em que o galã é g-gago. S-se estivesse numa cadeira de rodas, a-até toleraria, na e-esperança de que o c-cara t-tivesse braços f-fortes e a-a voz f-fosse s-sexy. Mas você n-não teria paciência para n-namorar um cara g-gago!
Eu senti o rancor naquele desabafo. Sim, foi um desabafo e aposto que ele estava se referindo não a mim, mas a todos os colegas da escola, em todos os tempos em que ele estudou. Imaginei que sua vida amorosa fosse um desastre, para que ele falasse assim.
-Olha, se eu já não tivesse um cara morando aqui – apontei para o meu coração, pensando em Steve. – Um cara que me pegou de jeito... Eu não veria problema nenhum em namorar um cara gago.
Ele riu, obviamente duvidando.
-Além do mais, não sei se você sabe – eu sorri, brincando com o papel da bala de goma, - mas os caras mais inteligentes do mundo eram gagos. Estou falando de Aristóteles, Demóstenes, Machado de Assis, Lewis Carroll, Isaac Newton, Charles Darwin... Bruce Willis.
-Bruce Willis? – ele olhou para mim, cético.
-Pois é...
-Mas ele é bonitão!
-E você também tem o seu charme... se der um jeito nesse cabelo horroroso.
Ele olhou para mim, a boca aberta como a de um peixe, piscando algumas vezes como se custasse a assimilar o que eu disse.
-A gagueira não é o problema – eu acrescentei. – Mas como você se vê. E você se vê como um cara chato, não eu.
Nós ficamos em silêncio por algum tempo. Decidi retomar o assunto anterior.
-Sobre o sítio arqueológico da Rússia... E se aqueles apetrechos encontrados foram deixados por algum viajante do tempo de verdade, como nós?
Ele comprimiu os lábios. Aposto que, em outros tempos, ele teria discordado. Mas agora que nós de fato viajamos no tempo, ele necessariamente teria que rever os seus conceitos.
-Os teóricos dos antigos astronautas explicam – eu o alfinetei, sabendo que ele era estudioso no assunto.
-Pois é... – a expressão dele e suavizou. - São artefatos em espiral, feitos de metais, que lembram bobinas, anéis de junção e molas. Podem ter sido deixados por alienígenas ou, pensando bem... viajantes do tempo.
-Ou os dois – eu acrescentei, rindo. -Então, o meu celular iria entrar para a categoria dos inexplicáveis.
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1 - Semelhantes aos trovadores e menestréis da Idade Média, só que muito mais antigos. Na Grécia, o aedo era um misto de poeta e cantor, que apresentava conteúdos religiosos, poesias e histórias de heróis. Um dos maiores aedos gregos foi Orfeu; mas, dir-se-ia que Homero também pode ter sido um aedo. O problema é provar sua existência, quem dirá, o seu papel em sociedade. Muitos dizem que Homero pode ter sido não apenas um, mas vários desses entertainers. (N. da A.)
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