Capítulos 3 e 4
"A profecia é tal, cumprir-se deve.
Eia, grevados sócios, persistamos,
Té sucumbir a soberana Tróia".
A Ilíada de Homero.
[Emerson]
3 – Um por do sol inesquecível
Eu não entendia o que tinha dado errado. Oh, a gente tinha viajado no tempo. Isso era um fato bastante óbvio. O problema é que não estávamos nem remotamente perto do período em que deveríamos estar. Nem no lugar remotamente próximo de onde deveríamos estar.
O que aconteceu?
Tive a presença de espírito de arrastar uma Manuela histérica para dentro de uma gruta, perto da praia. Ali, a gente podia ver parte do movimento dos viajantes que iam e vinham de uma cidadela no alto de um penhasco próximo, às margens do que me pareceu ser um braço de mar.
Do outro lado das águas escuras, havia outra faixa de terra – podia ser qualquer coisa: outro continente, uma ilha, ou a continuidade do penhasco. Talvez nem fosse um braço de mar, e sim, uma baía. Do nosso esconderijo, se a gente esticasse o pescoço, podia ter uma vaga ideia do cenário lá fora. E só. Eu não conseguia atinar que lugar era aquele... Ou a época... Todos aqueles véus nas mulheres que passavam, e os turbantes nos homens... Carroças com pessoas e víveres...
Não estávamos no Brasil... A julgar pelo cenário... Eu esperava ver Jesus Cristo passar a qualquer momento, seguido de seus doze apóstolos. Se é que eram doze...
Deus do céu... Será que tínhamos viajado tão longe assim no tempo? Mas como? Eu delimitei a data no meu capacete! O que deu errado?
Fiquei tão nervoso que tive certeza de que não conseguiria pronunciar uma palavra. Tratei de respirar fundo, para me acalmar.
Lá fora, no mar, alguns barquinhos circulavam. Identifiquei a engenharia das embarcações. Pareciam com as falucas egípcias. Provavelmente, eram barcos pesqueiros. Entretanto, eu vi de repente um único trirreme passar, e fiquei na dúvida se estávamos na Antiga Grécia. Fosse onde fosse, calculei que estávamos num tempo muito... Muito antigo.
O tradutor de idiomas não seria de grande valia, agora. Tentei digitar no celular algumas "vocalizações" que uns pastores gritaram uns para os outros, enquanto passavam ali perto. O tradutor off-line só acusou uma coisa - "grego". No entanto, mudava a cada digitação. O tradutor classificou ora como "indoeuropeu", ora como "semita"; e até "turco-antigo". Mas o tradutor não deu conta de nenhum deles. Não conseguiu traduzir. Simples assim.
Ousei esticar o pescoço para fora da abertura da minúscula gruta e espiei a cidadela no alto do penhasco.
-N-não pode ser – murmurei para mim mesmo.
-O que não pode ser? – Manuela, sentada ao meu lado, questionou.
Voltei a olhar para o H; o azul do objeto agora estava sem vida, apagado. Parecia chamuscado na ponta da haste. Enfim, agora era apenas um objeto inerte que não servia para nada. Pelo menos, enquanto não descobrisse como reativá-lo e nos levar de volta ao presente.
-O que não pode ser – lamuriou-se Manu, insistindo que eu falasse alguma coisa. Ela se levantou e começou a andar de um lado para o outro no espaço exíguo da gruta. Antes que ela surtasse de novo, eu resolvi tentar explicar a minha teoria.
-A-acho... que estamos em T-troia.
Ela parou de andar. – Troia, Troia... Está falando da Troia Antiga?
Eu levantei a sobrancelha, como quem pergunta: e existe outra? Bom, tecnicamente, existiram umas dezoito Troias, uma em cima da outra, mas eu não iria me ater a esses detalhes técnicos.
Confusa, Manuela começou a divagar com ela mesma, despejando perguntas retóricas.
-Tipo Troia do cavalo de Troia? Tipo Troia de Helena de Troia?
Eu ri. – Não e-exatamente. Mas é p-por aí...
-Como viemos parar aqui? – ela perguntou, olhando para o teto da gruta, como se ele fosse lhe dar uma explicação plausível.
Só então reparei no peso incômodo sobre a minha cabeça. Retirei o capacete, com um suspiro de alívio e me pus a verificar o display das horas. Estava apagado. Mas reparei que tinha marcado a hora e o dia, pouco antes do acidente de carro do pai de Manuela. O ano era inequivocamente 2018. Mas a gente não estava em 2018.
-Será q-que o dispositivo ashuriano n-não tem como c-condicionar a data e p-por isso, era t-tão perigoso?
-Mas você mesmo disse que os escritos davam conta de que os ashurianos usavam os portais para viajar. Então, como eles faziam para ir de um lugar a outro? Como faziam para ir ao lugar certo?
Boas perguntas. Será que era aí que entrava a R-Localizadora? Agora entendi a merda que eu fiz ao usar o reator da nave no lugar dela. Mesmo assim, havia uma terceira explicação a considerar, e eu dei voz a ela:
-Talvez p-porque não u-usassem para v-viajar no tempo, só para se lo-locomover de uma d-dimensão a outra. Acho que viajar no tempo é algo p-proibido. Acho que esse art-tefato não foi o-originalmente construído para isso. Embora p-possa ser usado com esse propósito.
-Agora que você me diz? – Ela berrou. - Depois que viajamos?
Encolhi os ombros, confuso. – E-eu n-não sabia... – De repente, eu me irritei também. – Foi você quem a-apressou as coisas. Você f-forçou a barra. Ficou me e-empurrando e e-empurrando para essa s-situação. E d-depois, teve a n-nave...
-Tá, tá, tá... – ela gesticulou. – Não adianta ficar procurando culpados agora!
-N-não diga! – arregalei os olhos e a encarei. Ela não teve nem a decência de ficar constrangida.
Respirando fundo, tentei dar voz aos meus pensamentos mais urgentes. - Acho q-que...
-O que você acha? – ela exigiu, impaciente.
-S-suspeito que o Haddien p-precisa de uma direção. Só não imagino o-o que possa fazer isso, já q-que a nave nos informou as funções do Há-haddien e da R-Lo-localizadora. Nós d-demos a direção. Mas n-não fomos para o lugar c-certo.
Os olhos de Manuela brilharam. - Então, foi isso que a IAI quis dizer com o uso da localizadora?
E agora?
-Precisamos c-conseguir uma fonte de energia para acionar o H novamente. Mas, aqui n-nesse mundo do passado, onde vamos encontrar?
-E as pirâmides do Egito? – Manuela se empolgou. - Elas não são concentradoras de energia?
-Sim, são, ma-mas não na proporção de uma b-bomba atômica, ou... do n-núcleo da nave que usamos, tipo, a-antigravidade.
Ficamos calados, por um instante.
-O pior é que ninguém sabe onde estamos – disse ela.
-Vamos deixar o lado negativo de fora, p-por enquanto. Não adianta a ge-gente se desesperar nem lamuriar.
-Não diga! – ela me imitou, toda inflamada. -E quem está se desesperando ou lamuriando?
Ignorei a pergunta.
-L-lembra da minha a-apresentação, quando fa-falei sobre a tecnologia de s-som, utilizada para mover p-pedras com propriedades especiais?
Ela ficou me encarando como se eu tivesse acabado de dizer que o Papai Noel iria fazer um strip-tease. Tentei novamente:
-Essas pedras especiais e-entram em vibração. Andesita é u-uma rocha muito especial, p-presente no P-portal do Sol, em Tihuanaco.
-Querido – ela se inclinou até que nossos olhos estivessem nivelados. – Tihuanaco fica na Bolívia. Estamos do lado de cá do oceano, se você estiver certo sobre estarmos diante de Troia. Não existem aviões...
-Eu s-sei disso! – eu a interrompi, impaciente. - M-mas podemos tentar alcançar Göbekli T-tepe. Não é muito lo-longe daqui.
Ela pareceu considerar a ideia.
-Você tem certeza de que vai dar certo?
-Claro que não! Mas temos que t-tentar alguma coisa.
Ela levou as mãos ao rosto, dando vazão ao desespero.
-Não quero morrer aqui! Sem água encanada, sem hospitais! Sem dentista! Sem... Micro-ondas! Sem a Roxy!!! – e desabou no choro.
Revirei os olhos.
Mas assim como ela começou a chorar, parou. Foi uma verdadeira transformação. Manu limpou as bochechas; encarou-me com olhar de tigresa; e acenou com a cabeça para cima e para baixo.
-Certo! Como dizem os Shadow Walker¹: "o único dia fácil foi ontem"! – ela ajeitou as roupas amarrotadas. - Vamos fazer isso! Vamos para lá!
Eu me levantei e apontei para o paredão de pedra. – A-antes, precisamos conseguir entrar em Troia e usar a saída pelas montanhas.
-Tá, e daí?
-Daí que é a ci-cidade mais inexpugnável do mundo.
-Do mundo antigo – ela levantou o dedo indicador. – Que fique bem dito.
Revirei os olhos.
-Uma vez lá d-dentro, precisamos estabelecer um e-esconderijo, ou nos misturarmos. O p-problema é que não falamos a língua. Podemos fingir que s-somos estrangeiros... Se esta é a Troia de v-verdade, era um posto de passagem para o comércio, abrigando gente de toda parte. Os comerciantes e vi-viajantes precisavam aguardar na cidade, até q-que os ventos f-fortes que varrem essa re-região com frequência, se acalmem, para só então a-atravessar o mar e prosseguir. N-nesse caso, se eu pedir a-abrigo, fazendo-me passar por um me-mercador, eles t-terão que nos receber. Uma vez lá d-dentro...
Eu olhei para ela.
-Então – ela completou: – Nós nos misturamos até sairmos do outro lado.
-E-exatamente! Mas temos um s-sério problema...
-Mais um?
-Quer me d-deixar terminar?
Manuela era um pesadelo para alguém na minha condição. Ela me deixava nervoso para terminar a explanação, pois ficava me cortando o tempo todo.
- A-além de não falarmos a língua, nós precisamos de ro-roupas, c-comida e água - consegui dizer.
-Certo, uma coisa de cada vez. Como vamos entrar na tal cidade inexpugnável, para começo de conversa?
-Bom, existe uma t-tradição dessa época, uma lei não escrita. Q-quando um viajante p-pede abrigo, ele re-recebe.
-Tá... E como vamos pedir abrigo?
-Estou te-tentando traduzir para três p-possíveis línguas que eles conheçam: aramaico, g-grego e la-latim. Mas estou q-quase certo que as d-duas últimas p-provavelmente não vão funcionar.
- E a primeira?
-Um ti-tiro no escuro.
-Certo. Acho que vamos ter que arriscar. Mas se vamos sobreviver... - ela avaliou a minha roupa e depois a sua própria. Olhamos ambos para as nossas roupas. Teríamos que cobrir as formas do corpo.
- Botas, calças de tecidos que nem foram inventados e óculos, não são uma boa ideia – Manuela deu vazão aos nossos pensamentos.
-E-exatamente – concordei. - Esse é o p-primeiro problema e não resolveremos os d-demais, se não co-conseguirmos as roupas.
Mas, onde conseguir as roupas? Manu olhou para fora e apontou discretamente. Eu me aproximei, acompanhando a direção do seu olhar. Mais adiante, havia um acampamento de pastores.
Eles não iriam ficar lá por muito tempo. Teríamos que tentar pegar as roupas, durante a noite.
Olhei para o horizonte onde um longo e demorado crepúsculo ainda festejava em tons de laranja e púrpura... A bola de fogo enorme e fantástica finalmente desapareceu, restando apenas uma linha incandescente. Agora, era só esperar o anoitecer, que não demoraria... Quando nós dois teríamos a oportunidade de assistir o por do sol em Troia, mais de mil e duzentos anos antes de Cristo?
Loucura.
---
[Emerson]
4 – Nas brumas do esquecimento
A paisagem além da gruta era maravilhosa. O mar, os penhascos, a faixa de areia larga a se estender... Cortada apenas pelas encostas escarpadas.
Manuela olhou para fora, mas estava nervosa demais para apreciar qualquer coisa. Seu olhar era preocupado, o que me trouxe de volta ao problema imediato. Não precisávamos expressar o que se passava em nossas mentes, ambos estávamos apavorados, diante da perspectiva de sermos flagrados.
E capturados como bichos raros que somos nesse tempo.
-Acho que você é o único que tem chance de se aproximar daquele acampamento – disse Manuela, de repente. - Veja como estou vestida.
Analisei-a de alto a baixo, tendo que concordar. A seguir, voltei os olhos para o alto, e localizei os vigias que ficavam zanzando pelos muros de Troia. O sol já tinha se posto, mas eu ainda conseguia ver os vultos se mexendo para cima e para baixo. Eram dois, até onde consegui ver... E andavam em direções diferentes, antes de voltarem e desaparecerem dentro de casinhas/postos feitos de algo que me pareceu palha.
-V-você vai ter que me e-emprestar a sua jaqueta – eu lhe disse.
Ela estremeceu.
-Por quê? Tô morta de frio aqui, nesse vento encanado!
-La-lamento, mas vou ter que e-enganar os vigias do muro, improvisando um turbante pra cobrir o meu cabelo espetado.
-Oh... – Ela finalmente entendeu onde eu queria chegar; ato contínuo, tirou a jaqueta e me passou.
Comecei a me preparar... Era difícil fazer um Murban – turbante masculino enrolado na cabeça; ainda mais com o tecido grosso de uma jaqueta jeans cheia de botões prateados, mas até que deu pro gasto...
-Você parece uma árvore de natal ambulante – disse Manuela, me encarando de um jeito crítico. – Só faltam as luzes coloridas.
-V-você faz melhor? – desafiei.
-Pode apostar que faço – ela disse, estendeu as mãos para o meu turbante. Eu recuei.
-Nem toca! Foi com muito sacrifício que consegui firmar essa coisa e deixar o mais parecido possível com o turbante deles.
Ela encolheu os ombros, como quem diz: "tanto faz".
Sentado, naquela gruta, eu não tive outra coisa pra fazer que não observar os viajantes ao longo do dia e ver como usavam seus turbantes. Cheguei à conclusão de que aquele era realmente um ponto de travessia bem movimentado. O "tráfego" só diminuiu até extinguir totalmente, com o cair da noite. Com um suspiro, esperei a oportunidade certa, vigiando o acampamento para saber quando sair.
Enquanto esperávamos, Manu me pediu para explicar como funcionava aquele tempo. Eu meneei a cabeça e tentei sintetizar, da melhor maneira possível, os eventos que desencadearam a queda de Troia, na guerra que mobilizou três dos mais importantes reinos da época: Esparta, Micenas e Troia.
Ou ao menos é o que diz a lenda.
Sobre Troia, não se tem certezas, apenas indícios.
-O importante é que, fato ou mito (p-provavelmente mais lenda do que fato), o d-destino do mundo teria sido decidido na guerra de Troia, contada e recontada p-por tradições orais até que um misterioso poeta chamado Homero imortalizasse o a-acontecido em sua o-obra.
-Quer dizer que a coisa toda pode ser invenção, não é mesmo?
-Olha... M-mesmo que o Cavalo de T-troia seja uma lenda...
-Toda lenda tem um fundo de verdade – ela completou. – É, já ouvi dizer. A professora Pórtia disse exatamente a mesma coisa, em nossa última aula.
- Um fundo de ve-verdade, apoiado por indícios a-arqu-queológicos.
-Ela disse também que só com uma máquina do tempo para saber se os relatos contidos nos livros de história, são cem por cento verdadeiros – comentou Manuela, com expressão melancólica. – Pois é...
-Na época d-dos supostos e-eventos de Troia, – eu lhe expliquei – há mais de três mil anos, o m-mundo estava no fim da Idade do Bronze. Os gregos não eram e-exatamente os gregos como os conhecemos pelos livros de hi-história e filmes. S-sabe... Clássicos, ch-chiques, o berço d-da nossa c-civilização, e- etc e tal... Havia agrupamentos por aqui, alguns meio bárbaros, rústicos e vi-violentos, como os a-aqueus; outros p-poderosos, como os micenas; ou guerreiros t-treinados, c-como os espartanos. E havia a invejada e cobiçada Troia... L-localizada numa área estratégica de p-passagem para o comércio. N-no futuro, esta região ficaria conhecida como Turquia. N-na real, não estamos m-muito longe de Istambul.
A direção tomada pela civilização seria radicalmente alterada pela guerra de Troia. Se os personagens envolvidos existiram ou não, a guerra foi o marco do nascimento da Idade do Ferro, pois as armas usadas eram feitas desse metal.
De acordo com a lenda, heróis famosos, semideuses e deuses teriam se envolvido na Guerra de Troia - direta ou indiretamente. O Príncipe Paris (ou Alexandre), Menelau, Agamenon, Helena, Aquiles, Heitor, Ulisses/Odisseu, Enéias... As crianças daqueles tempos, mesmo 400 anos após a verdadeira guerra supostamente ter acontecido, iriam se lembrar desses nomes como as crianças de nosso tempo se lembrariam do Super-Homem, do Homem-Aranha, da Mulher Maravilha e do Batman. Claro que não existem provas de que os personagens de Troia existiram de verdade.
-Como disse a p-professora Pórtia, seria preciso uma máquina d-do tempo p-para descobrir.
Trocamos um olhar de entendimento e caímos na risada. Um pouco mais descontraído, eu continuei:
-A única c-certeza é q-que algo grande e violento a-aconteceu nessa região. Tão g-grande e tão violento que alterou a vi-vida em sociedade em d-diferentes cidades de todo o mundo conhecido. E não foi so-somente Troia a cair. Há indício d-de invasões em d-diferentes reinos importantes na-naquele período. Os egípcios fizeram re-referência aos p-povos invasores do norte, que vieram pelo mar. Eles descreveram um co-comportamento de pi-piratas e saqueadores, p-para esses povos.
Alguns historiadores suspeitavam que ocorreram grandes movimentos migratórios.
-As pessoas estavam f-fugindo... Da fo-fome, da seca, da miséria e da gue-guerra. Fenômeno que t-também seria a ruína de Roma, num fu-futuro distante (mas na-não tão distante assim).
-Eu sei – ela disse, gesticulando. - Quando os bárbaros ocuparam a cidade que representou o apogeu de uma época. E blá, blá, blá, blá!
- Roma e-expandiu demais e ficou corrupta demais... O império e-enfraqueceu e se tornou um a-alvo fácil para as invasões – decidi colocar os pingos nos "is". - Mas Troia, ao contrário, estava no auge. Sua queda representou um efeito cascata.
-Como assim?
-Não muito te-tempo depois que caiu, outras cidades da co-costa mediterrânea oriental e do Mar Negro caíram. Provavelmente nas mãos desses rústicos grupos migratórios, que vieram p-pelo mar.
-Ninguém sabe quem eles eram?
-Existem suspeitas... D-desde vikings, até os g-gregos mais próximos. Os aqueus por exemplo. Os gregos p-primitivos não lutavam como os n-nobres das elites de Troia. Não usavam os ca-carros de guerra para atirar flechas, nem as armas de bronze c-convencionais. Eles c-cortavam e fatiavam com armas longas, feitas de f-ferro. E foram tomando as cidades e-estratégicas da costa.
Manuela meneou a cabeça.
-Sabia que você gagueja bem menos quando está falando de um assunto que gosta? – ela me lançou um olhar de esguelha.
-E-e-e-eu... E-e-e-eu...
Manuela suspirou e disse:
-Quer dizer que Helena teve pouco a ver com tudo isso, exceto por ter sido possivelmente o estopim, ou a gota d'água que fez o copo transbordar?
-Se é que ela e-existiu! O-o-ou se é q-que algum deles existiu. Às v-vezes os escritores mais bem su-sucedidos são aqueles que narram um evento de m-maneira tão b-bem elaborada, que o produto da s-sua elaboração p-passa a dominar o imaginário p-popular, no lugar da realidade dos fa-fatos. A-a verdade mergulha nas brumas do e-esquecimento. A lenda se p-propaga e ganha força de v-verdade.
Primeiro, será que Homero existiu? E se existiu, será que criou uma lenda? E se criou, foi do nada, ou extraiu as informações da realidade ao seu redor? A única certeza era que - verdade ou lenda - Helena foi considerada a mulher mais bela do mundo.
Eu preferia me apegar à realidade do busto de Nefertiti. Essa sim, foi uma mulher lindíssima.
-Pelo que você está dizendo, - Manu interrompeu os meus devaneios - Homero não assistiu à tomada de Troia.
-A-ap-parentemente, ele ne-nem era nascido. Mas ele conta, em s-suas obras – Ilíada e Odisseia, baseando-se na-nas narrações orais sobre a guerra.
Observei o horizonte escuro. O mar ainda cintilava em alguns trechos do veludo negro. O vento tornou-se mais gelado e intenso. Estava quase na hora de eu apostar as nossas fichas na minha habilidade de entrar e sair furtivamente de um acampamento de nômades. Se me capturassem, Manu ficaria sozinha e vulnerável na gruta. Eu estremeci só de pensar.
Para espantar os pensamentos pessimistas, eu comentei:
-D-dizem que Homero foi um hábil c-contador de histórias q-que andava por aí, encantando e entretendo. D-dizem que ele era cego. No-o entanto, os hist-toriadores encontraram descontinuidades em sua na-narrativa escrita. O q-que sugere que existiu mais de um co-contador de histórias, assumindo o seu nome.
Ela me lançou um sorriso meio de trêmulo, provavelmente de frio e de medo.
-Acho que teremos a chance de ver alguma coisa em primeira mão.
-Tomara... N-não! Q-quer dizer, t-tomara que não! – reconsiderei rapidamente. Se víssemos a guerra de Troia de perto, provavelmente, seríamos mortos ou escravizados. – T-tudo o que desejo é que a-a gente s-sobreviva à experiência.
-Eu também, nerd. Eu também.
---
1 -Do livro Lua de Fogo. N. da A.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro