Capítulos 17, 18 e 19
[Emerson]
17 – A chegada do Aedo
Eu revi os meus conceitos, em relação à garota "It, a coisa". Graças a ela, estávamos os dois à mesa de jantar daquela família humilde, numa vila de pescadores, comendo de sua comida e usufruindo de sua hospitalidade... E tudo porque Manuela conseguiu chegar até eles, apresentar-se sem dizer uma única palavra e fazê-los acreditar que era surda-muda. E deduzo que me fez passar por seu marido - convenientemente estrangeiro – apenas por meio de mímicas que, para mim, soaram estapafúrdias.
Ela sempre dizia que era perita em linguagem corporal. Agora, eu acreditava na sua palavra!
Eles também acreditaram e nos receberam. A nós e a ovelha destrambelhada, que agora estava no cercado com as outras - botando o papo em dia.
Após o jantar, percebendo que o patriarca não era dado a conversa mole (graças a Deus!), fui me sentar perto da rua. Eu estava agradavelmente satisfeito – considerando que passamos quase dois dias inteiros a base de água salobra e bala de goma...
Sem mais nada a fazer, eu observei a vida na vila. Não era muito diferente do nosso tempo. As pessoas tinham tarefas, as crianças brincavam e também tinham tarefas... Ali perto, algumas mulheres idosas teciam suas rendas. Homens tiravam água de poços artesianos e as mulheres carregavam em espécies de baldes feitos de juncos.
Mas, aos poucos as atividades externas foram se extinguindo com o avanço da noite. As luzes das velas e lucernas foram acesas, no interior dos casebres.
Eu observava a tudo, fascinado... De repente, um reboliço me chamou a atenção. Uma pessoa surgiu no final da ruazinha de areia. Era jovem e alto. Pelo visto, bem apessoado, já que Manuela parou de andar na minha direção para observar a sua chegada.
Ela o avaliou da cabeça aos pés, com cara de " Uau! Quem é este?"
Eu me pus a observar com mais atenção, quando as crianças correram para ele e o estranho continuou andando, sem muita firmeza, mas emanando a estranha segurança de quem estava entre amigos - ou, ao menos, conhecidos. As crianças o conduziram, apesar de ele ter um cajado longo para se apoiar e com o qual testava o terreno à frente.
Mais e mais crianças e jovens o rodeavam... Por que? Normalmente isso acontecia com os anciãos... Pelo menos, eu acreditava que os anciões eram mais respeitados na Antiguidade, do que no meu tempo.
O que esse rapaz tinha de diferente?
À medida que ele se aproximava, a luz da fogueira o iluminou em cheio. Reparei que ostentava um sorriso permanente, mas os olhos pareciam vagos... Ora, ele era cego! As crianças o conduziram para uma pedra larga e alta. O comportamento delas demonstrava que não só o conheciam, como o adoravam.
Ele tocou a pedra, tateante, virou-se e se sentou nela, apoiando o cajado ao lado. Então, inesperadamente, começou a cantar com uma voz excepcionalmente melodiosa.
Mas cantar, não era bem o verbo correto... Ele declamava e cantava a um só tempo. Parecido com opera, mas não era exatamente isso. É difícil descrever o que ele estava fazendo - falando em ritmo cantado. Eu me aproximei para assistir e analisá-lo melhor... As crianças e jovens sentaram ao seu redor, para escutá-lo atentamente.
Um contador de estórias?
Um menestrel?
Não...
Ah, acho que comecei a entender o que estava acontecendo. Então... Era assim que os aedos atuavam! Eu já tinha lido algo a respeito, em livros, mas nunca imaginei, ou sonhei que fosse daquele jeito! Ninguém descrevia nos livros como era a sociedade dos tempos remotos, em seus detalhes cotidianos. Nem poderiam, pois não estavam lá!
Peguei o celular e comecei a filmar a apresentação.
A voz dele era mágica! Sei que estou carregando nos advérbios e adjetivos, mas... Não havia palavras para descrever com precisão, a experiência que eu estava tendo, nesse exato momento. O que um historiador não daria para estar em meu lugar?
Uma das crianças correu para mim e me puxou para junto do grupo, gesticulando para Manuela também. A menina meio que nos apresentou ao jovem aedo, dando palmadinhas em seu braço para lhe chamar a atenção. Ele compreendeu imediatamente. Levantou de pronto ambas as mãos e esperou, como se sempre tivesse feito isso.
A menina fez um movimento com a cabeça, indicando o que deveríamos fazer. Meio desconcertado, coloquei o rosto entre as mãos do rapaz. Ele passou os dedos delicadamente pelos contornos da minha face. Depois de alguns segundos, baixou os braços e virou-se em busca do cajado que a menina prontamente lhe alcançou. O aedo, então, pôs-se a desenhar com a ponta na areia; a chegada do orvalho noturno deixou o chão úmido e endurecido - o que tornava a areia da rua tão lisa e propícia, quanto a lousa de uma sala de aula.
Ele escreveu alguma coisa, com caracteres meio rabiscados que se assemelhavam às letras gregas. Automaticamente, bati uma foto dos caracteres. O aedo parou de escrever, quando escutou o clique da câmera fotográfica. Eu devia ter previsto que a audição apurada de um cego fosse captar o som. Eu tinha desligado a função flash (para não assustar ou chamar a atenção); mesmo assim, tratei de guardar o dispositivo, antes que surgissem problemas.
O aedo largou o cajado e falou. A menina então apontou para o chão e depois, para mim. Entendi que aquele era o título ou o nome que o cego me deu, baseado no tato. Eu apontei para o escrito e para a garotinha. Ela encolheu os ombros, querendo me dizer que não sabia ler ou escrever. Eu apontei de novo, do chão para ela. A garotinha apontou para si mesma, entendendo que eu queria saber qual o nome que o cego lhe deu. Ela sorriu e disse.
Eu não entendi, obviamente, mas sorri de volta.
Alguns adultos se aproximaram da gente e as crianças falaram quase ao mesmo tempo. Entendi que estavam pedindo alguma coisa aos adultos. Possivelmente, ficar um pouco até mais tarde, ao invés de dormir.
Percebi que os pais aceitavam que elas participassem da roda do cego. Imaginei que os pescadores da vila fossem fascinados pelas estórias orais cantadas pelos aedos, porque eles próprios não sabiam escrever ou ler.
De repente, o cego gesticulou e a menina voltou-se para atendê-lo. Uma rápida conversa se seguiu e ele ergueu as mãos novamente, à espera. A menina foi até Manuela e puxou a ponta do seu véu para lhe chamar a atenção. Manuela olhou de volta para ela como quem diz: "Quem? Eu?"
A menina gesticulou - e os olhos de Manuela voaram na minha direção, como dardos envenenados. Como se eu tivesse culpa da situação! Pode?
Manuela se aproximou de mim, e se inclinou para falar junto a minha orelha: - Sem chance de colocar a minha cara no meio daqueles dedos sujos e...
-V-você não pode ofender essa g-gente – eu puxei a cabeça para longe dela, sussurrando de volta: - Não q-quando eles nos receberam e a-alimentaram! Além do m-mais, nenhum de nós está mais li-limpo que os dedos dele.
Ela fez uma careta de derrota e deu um passo a frente, inclinando-se para o cego tocá-la.
O jovem aedo passou habilmente os dedos pelo rosto da Manuela. À medida que o fazia, seus olhos, antes mortos e vagos, foram se arregalando e o sorriso morreu. Os lábios formaram um "oh" mudo. As crianças se agitaram.
E eu comecei a me preocupar...
Manuela era um buraco sem fundo de encrencas.
A gente nunca estava a salvo com ela por perto. Era a única conclusão a que pude chegar.
Quanto mais o cego se agitava, mais eu ficava apreensivo, pois não conseguia entender o que estava acontecendo com ele. Da mesma forma, Manuela se apavorou e afastou o rosto, dando alguns passos atrás.
O aedo ficou parado por um longo momento. Como que petrificado. Então, voltou-se para o cajado e escreveu, abaixo do meu nome/título, algo mais complexo. Eu peguei o celular novamente e fotografei, aproveitando que as crianças olhavam fixamente para o movimento do cajado na areia.
Repentinamente, ele começou a cantar - um canto puro, que chamou a atenção até dos adultos; dentro e fora das casinhas e choupanas. Alguns saíram à rua, deixando os afazeres, e se juntaram ao grupo reunido para ouvi-lo.
Pareciam embevecidos.
-Caramba! – Manuela murmurou.
-Cale a boca! – eu disse, acionando o gravador do celular.
Ela percebeu e comprimiu os lábios para não dizer mais nada. Mas acho que ela queria me dizer o que fazer com o meu "cale a boca".
O canto prosseguiu alto e cristalino e ganhou contornos, como se ele fosse chegando ao ápice de alguma cena importante que só ele pudesse ver, em sua mente. Mas pelo visto, a plateia também estava visualizando a cena, porque se sentiam impactados de emoção pura e verdadeira.
Então, ele parou. Ficamos parados, estáticos, absorvendo a sua performance. Eu me lembrei de desligar o gravador, e escondi o celular outra vez.
A menina que atuava como intermediária, deu um sorriso meio desdentado para o aedo, voltou-se para nós e pediu, por meio de gestos, para que a gente se abaixasse. Então, quando a gente se inclinou, a menina juntou nossas cabeças.
-Epa! – disse Manuela, girando os olhos para mim.
-Shi-shhi! – eu fiz para ela.
-Se fizer shishi de novo, ou se me mandar calar a boca de novo, sabe aonde eu vou enfiar o seu celular, não sabe? Eu...
Ela parou de falar e ficou imóvel, como eu próprio.
O cego tocou nossas cabeças, empolgou-se e voltou a cantar. Nós dois com as cabeças coladas uma na outra e a menininha segurando, parecia uma cena bizarra até para um filme de terror.
Todo mundo olhava para a gente, então, a gente nem ousava se mexer. Daí, quando o cego parou e a menininha soltou nossas cabeças, eu puxei Manuela para um canto.
O pessoal nem reparou muito, pois estavam prestando atenção ao que o aedo estava declamando, naquele instante.
-Tem a-algo aqui que n-não está me cheirando b-bem. – eu comentei, baixinho.
Ela cheirou o próprio sovaco. – Acho que os nossos desodorantes já venceram há dois dias. E eu posso mesmo estar bem fedida – ela disse, de um jeito desconfortável. – Mas não menos do que você.
-N-não é i-isso! – neguei, impaciente. Examinei novamente os escritos na areia. – V-vou usar as fotos que fiz desses textos p-para tentar adaptar os c-caracteres no meu t-tradutor o-off-line. Vou tentar ch-chegar a algum a-algoritmo por aproximação com o b-banco de dados que tenho, n-no que diz respeito à língua g-grega.
-Ah, tá, e sabendo que não entendo nada, você está me contando tudo isso por que...? – ela questionou, irritada.
-Tá, v-você quer o p-papo reto. Muito b-bem... E-enquanto n-não descubro o que o c-cego escreveu e c-cantou, ou seja lá o-o que eu conseguir traduzir, trate de n-não se meter em encrencas!
Ela colocou as mãos na cintura.
-E como sugere que eu faça isso?
-Use o véu p-para cobrir o rosto e não interaja c-com ninguém! Especialmente com o-os homens. Não s-se esqueça de que nesse tempo, as m-mulheres devem interagir apenas c-com as mulheres nos a-afazeres domésticos, com as c-crianças. Talvez você p-possa se oferecer como b-babá ou algo do ti-tipo.
Eu sabia que estava forçando a barra com ela. Mas a gente não podia dar mole ao azar. Eu teria que ser mais cuidadoso, depois do episódio do celular e Manuela teria que se comportar como uma garota daquele tempo.
Ela fez uma cara tão feia para mim, que achei que fosse me bater... Mas, ao invés disso, girou nos calcanhares e tomou a direção da choupana, onde estávamos hospedados.
Antes de sumir lá dentro, porém, ela disse: - Não se esqueça de que você deve a comida e a hospedagem a mim!
-E você não se esqueça de que é surda-muda.
Ela arregalou os olhos, pela no ato, olhou ao redor e entrou correndo.
Eu também girei nos calcanhares, querendo encontrar um canto isolado para acessar o app tradutor off-line do meu celular e trabalhar nas imagens e gravações que fiz até agora. Escolhi uma área perto do poço. Onde eu podia pegar água e molhar a areia para mantê-la coesa e assim, fazer as fórmulas. Olhei para as tochas bruxuleantes, imaginando que teria que começar amanhã, bem cedo. Sem a distração das crianças ou dos moradores. E eu precisava ser rápido. Tinha metade da bateria, agora.
-Amanhã – murmurei para mim mesmo. – Amanhã será um novo dia.
E eu esperava obter algumas respostas.
---
[Emerson]
18 - As chaves do tempo
Acordei antes de todo mundo. Eu arrumei a minha vestimenta, fiz minhas necessidades e peguei um pedaço de pão do cesto – parecia fermentado, mas nós estávamos numa época em que não se podia exigir demais da higiene que considerávamos padrão. Fui pé ante pé para a parte de trás das casas, perto do poço coletivo e comecei a trabalhar. Estava escuro ainda, de modo que precisei acender uma tocha, dessas de fincar no chão.
Programei em minha mente todas as etapas, em relação aos apps do celular. E todas as possibilidades também. Eu era bom nisso. Assim, fiz o meu esquema mental e coloquei a mão na massa. Eu estava correndo contra o tempo. Quer dizer, contra a minha bateria.
A primeira etapa foi escanear as imagens, decompondo ou recortando cada palavra em um novo arquivo de imagem. Separei todas e criei um novo vocabulário. Desliguei o celular, peguei um graveto e comecei a calcular algoritmos em que pudesse fazer comparações entre o grego moderno que o meu app continha (e reconhecia), com as letras recortadas das fotos. O problema era que também parecia com o aramaico. Então, eu precisava escolher com qual língua se parecia mais.
Fiz várias matrizes de comparação, utilizando o vasto campo de areia para desenhar. Basicamente o que fiz foi converter para uma linguagem universal: a matemática. E então, trouxe tudo de volta à linguagem conhecida. Assim como "a + b = c". Só que seria o "escrito antigo" = números e algarismos; números e algarismos = a grego.
Logo, escrito antigo = incógnita. Incógnita = X. E aí entrava a equação de regra de três.
Incógnita, porque eu teria que testar sua equivalência a X. E como não queria fazer isso no celular para não acabar com a bateria, eu estava fazendo na areia.
O sol foi mudando de posição, o vento passou a me preocupar. Se varresse as minhas fórmulas, eu teria que começar do zero. Eu continuei, sentindo que estava perto, só me faltava formular uma equação comparativa. Talvez uma regra de três ou... Comecei com um algoritmo simples de divisão e fui analisando onde isso iria me levar. Minha única certeza era de que eu precisava reduzir ao máximo, para encontrar um valor equitativo.
Eu estava certo de que a ideia era localizar por pontos de equivalência, pois igualdade seria inútil. Afinal, não havia igualdade entre as línguas. Mas, certamente, havia elementos chaves de aproximação. Ou seja, equivalência.
Bom, se eu estivesse certo, estaria revolucionando o campo da linguística e do estudo das línguas mortas. Seria possível ressuscitar o antigo egípcio falado, o sumério... Talvez até a língua falada à época em que os primeiros humanos surgiram.
-Queridinho – chamou Manuela, espiando-me da beira da areia; seu olhar recaiu horrorizado para os meus cálculos.
-Não pisa! – eu gritei.
-Eu não sou idiota. Dá pra entender o que você está tentando fazer. Acontece que esses matutos do tempo também percebem e interpretam como bem querem. Eles estão oscilando entre pensar que você é um profeta, ou um bruxo, ao invés de um comerciante estrangeiro, como eu tentei dar a impressão.
-Ah, e você interpretou tudo isso como, sabichona? – eu zombei.
Ela cruzou os braços, entediada. – Por que ao contrário de você, eu sei ler a linguagem corporal muito bem.
Eu fiquei chocado. Era esse o elemento que faltava. O elemento de equivalência que eu estava buscando, para testar as fórmulas. Ela olhou para mim, parecendo entender o que se passava em minha cabeça.
-Isso mesmo, sabichão. – ela devolveu a zombaria. – A língua é viva porque depende de um fator humano. Para ressuscitar uma língua, você precisa do elemento humano. Quando resolver isso, poderá aplicar uma fórmula para as duas línguas, e então, compará-las. Nem vai precisar do grego ou do aramaico. Poderá usar a nossa boa e velha língua portuguesa.
-Mas o Português é de origem latina.
-Acontece que você está usando a matemática. E a matemática é universal. Ela não precisa dessa compreensão, porque é objetiva. Ela cria os atalhos. Você só precisa dar a ela a direção.
Eu estava literalmente estarrecido. Manuela sorriu para mim.
-Feche a boca, gênio – ela zombou. Virou-se para voltar pela trilha, nos fundos da choupana. – Vou deixá-los compreender que você está passando mal do estômago, e por isso vai se atrasar para a refeição. Possivelmente nem vai jantar... Mas eu vou esconder um pedaço daquela broa pra você.
-Mas como irá comunicar tudo isso a eles? – eu indaguei, aturdido.
Ela parou de andar, virou-se de novo e fez uma cara de sofrimento, esfregando a barriga em gestos circulares. De fato, não precisou de palavras para dizer que alguém estava passando mal do estômago. Ela virou-se novamente e sumiu na trilha, rindo sozinha.
-Fica aí, gênio, que eu vou ouvir mais o cego.
-Você?
-Quem não tem spotyfy, se vira com o que dá – ela devolveu.
-Não esqueça que você é SURDA-MUDA!
-Ah, é, que bom que você me lembrou – disse ela, com sua habitual irreverência.
Eu me virei para a fórmula. O sol estava a pino, já... O tempo voa quando a gente está concentrado. Eu tinha passado literalmente metade do dia naquela imersão. Pense, Emerson, pense!
Eu me forcei a lembrar de cada expressão dos aldeões e do cego, e também, ouvi de novo a gravação de voz... Associando à memória que eu tinha dos momentos em que as palavras foram ditas. Eu queria tentar me lembrar se alguma expressão conhecida se repetia. E eis que encontrei algumas chaves.
Quando o sol já estava se encaminhando para o horizonte, eu já tinha colocado as informações para rodar em meus apps de conversão. Preciosidades que tão-somente um nerd teria em seu celular. Pois é, agora eu estava imbuído do "Orgulho Nerd".
Convencionei as letras do português, para o cálculo das vocalizações e também das letras que o cego escreveu. Enquanto o celular fazia isso, eu fazia meus cálculos de comparação e conferia os resultados.
As choupanas estavam começando a acender suas lucernas. A fogueira externa começou a ser alimentada com gravetos novos. As famílias deveriam estar se preparando para o anoitecer. De repente, comecei a ouvir novamente o canto do cego aedo, que deveria estar hospedado em alguma das casas, em troca de suas apresentações.
De súbito, encontrei uma luz no fim do túnel, figurativamente falando.
– É... Morram de inveja, linguistas. – Eu respirei fundo, só então sentindo a tensão na nuca e a exaustão me deixando tonto. Mesmo assim, eu estava feliz. – Imagine se os doutores de Bembridge soubessem que eu apenas reduzi as letras dos alfabetos de três línguas diferentes – o português, o aramaico e o grego – a uma equação matemática e depois, banquei o criptógrafo de final de semana... É, talvez, não tenha sido tão simples assim. Mas, confesso que a ideia da linguagem corporal passando a ideia ou conceito do que estava sendo dito, ajudou bastante. Na verdade, a linguagem corporal ligou algumas expressões de diferentes línguas. Talvez, ser gênio não fosse uma merda total, afinal de contas.
Agora, eu precisava programar o gravador para assimilar os sons. Selecionei a gravação da apresentação do aedo, e os elementos convertidos em algoritmo. O resultado, em português, me deixou chocado.
---
[Emerson]
19 – Identificação positiva
Corri em direção às choupanas. Cheguei a tempo de encontrar o pessoal todo aos pés do cego, que cantava incansavelmente. Eu já estava tomando um porre de pseudo-ópera para toda a vida. Olhei ao redor e vi Manuela próxima de uma garotinha. Ela também estava embevecida com o canto do rapaz.
Eu tratei de puxá-la para fora da casa.
-Ei, a gente não vai embora sem se despedir de todo mundo, né? – ela indagou, achando de certo que eu já queria continuar nossa viagem para Göbekli Tepe.
-Goteco-teco vai continuar no mesmo lugar – ela argumentou, como se estivéssemos de férias. Ela confirmou minha suposição, ao acrescentar: – E nós podemos passar mais um tempinho por aqui... Além do mais, aquela broa é muito gostosa e...
-M-manuela, por favor, fica qui-quieta um pouquinho... – Eu lhe pedi. – Estamos c-com um problema s-sério.
Ela piscou para mim, algumas vezes, paralisada.
-Ou m-melhor, nós provocamos um p-problema sério – corrigi, sentindo-me explodir de preocupação.
-Mas logo agora que fizemos amizade! – Manuela abriu os braços. - O cego quer viajar com a gente e...
- C-como é q-que é? Deus -mme livre!
-O que, mas por quê?
- P-porque ele se ch-chama Odisseu!
-E daí? Não gosta do nome, ou o quê?
Eu revirei os olhos.
-Ele c-cantou as viagens dele próprio, c-como Odisseu... Ele é-é... o que chamaremos n-no futuro, d-de Homero. O cara que v-vai criar estórias m-maravilhosas, contar as a-aventuras de heróis e-e reis.
-Opa, muita calma nessa hora – gesticulou a garota. – Você está deduzindo coisas, apenas porque o cara se chama Odisseu? Ele nem ao menos se chama Homero.
-Mais e-especificamente, Odysseus. E eu e-estudei as evidências his-históricas, antes de nos m-metermos neste e-embrólio. T-tenho minhas hi-hipóteses.
-E será que pode compartilhar essas hipóteses com euzinha? – ela perguntou, irritada. – Isto é, se não for dar muuuito trabalho...
Ignorei o tom irônico.
-Eu a-acho que Homero é u-um codinome para v-vários aedos que, ao longo do seu tempo, contaram e r-recontaram estórias c-como um modo de v-vida. Eu acho q-que um desses a-aedos foi o-o mais brilhante de t-todos. Dizem que Homero p-pode ter sido c-cego. Eu acho que este a-aedo cego é o H-homero da Ilíada. O cara que se c-consagrou com todas as estórias c-contadas antes d-dele, pois ele deu um toque p-pessoal...
-Um toque pessoal?
-S-sim, ele se inseriu na e-estória. Não como ele m-mesmo, mas na f-figura de Ulisses (c-conhecido como O-odisseu).
Ela digeriu o que eu disse, por um tempo.
-Como quando o autor de um livro quer viver uma grande aventura e usa de um subterfúgio, para participar da própria estória? – ela gesticulou, enquanto falava. - O pequeno segredinho!
-C-como Leonardo Da Vinci aparentemente a-agia, por meio de s-segredinhos. Alguns d-dizem que ele falava sobre si m-mesmo, em algumas de suas p-pinturas. Talvez traços de sua p-personalidade, talvez um suposto a-autorretrato, como foi o-o caso da Monalisa.
-Como foi que essa conversa foi parar no Leonardo Da Vinci? – ela mordeu o lábio e olhou para o céu.
-Eu estava a-apenas ilustrando c-como alguns gênios f-faziam, com suas o-obras primas.
-Certo... Então, está me dizendo que ele – ela apontou para dentro da choupana, onde se podia ver o cego cantarolando – usou a si mesmo, ou emprestou parte de si mesmo, a um personagem de sua obra. E que essa obra foi "A Ilíada".
-E que esse c-cego em questão n-não se chamava Homero, mas assim ficou c-conhecido.
-Ah, tá.. – ela olhou para o chão e depois, para mim. – Você percebe que é uma porção de hipóteses, né?
-Acontece que s-se eu estiver certo... E ele n-não for para Troia, a fim de c-contar a história do c-cerco, que é real, e-então, teremos u-um problema de o-ordem temporal.
-Em outras palavras?
-P-paradoxo temporal.
-Em outras palavras?
-D-desastre – eu traduzi, revirando os olhos.
-Se você estiver certo... - Ela então, cruzou os braços, refletiu e pareceu compreender. – Ai, nossa Senhora Querupita!
-É Santa Achiropita – eu a corrigi, automaticamente.
-Tanto faz! E agora?
-E agora? Ele não pode viajar com a gente! Ele precisa ir para Troia. Temos que garantir que ele vá!
E para isso acontecer, nós dois teríamos que conduzir o aedo até Troia e garantir que ele entre na cidade.
De repente, Manuela ficou branca, feito papel.
-Se "A Ilíada" não existir, meu pai não irá recitar seus versos para a minha mãe.
-Isso n-não é nada, c-comparado ao e-efeito cascata que v-vai desencadear – eu garanti.
-Você não entende! – ela segurou o meu braço com força. – Meu irmão foi concebido naquela noite em que ele recitou "A Ilíada".
-Bom... Isso não q-quer dizer que o seu irmão n-não irá ser c-concebido em qualquer o-outro momento - argumentei.
-Mas, e se não for?
-Esse é o p-problema do p-paradoxo. Muita c-coisa perde o n-nexo.
-Ah, tá, o senhor é especialista em paradoxos.
-Não, n-não sou. – reconheci, humildemente. - Mas a-acho que estamos e-experimentando agora, em primeira m-mão.
Manuela tremia visivelmente. Eu me senti compelido a confortá-la.
-Ainda n-não está perdido. Em p-primeiro lu-lugar, talvez n-nem seja ele, o Homero d-de "A Ilíada".
-Com a sorte que eu tenho... – ela resmungou.
-S-segundo – eu continuei, ignorando o comentário. – Se e-ele for para T-troia, tudo se r-resolve. Ele tem q-que transferir a-a fascinação que sentiu p-por você p-para Helena de Troia.
-Claro! – ela arregalou os olhos. – Somos tão parecidas. Se ele se interessar em torná-la sua musa, e não eu, então, teremos colocado a história de volta aos trilhos.
-É-é – eu concordei, mas, no fundo, eu achava que seria muita sorte se a gente conseguisse colocar a história de volta aos trilhos.
Manuela engoliu em seco. – E eu tenho que voltar pra lá e correr o risco de me capturarem e entregarem ao asqueroso do Menelau!
Ela estava nervosa, e com razão. Mas um paradoxo temporal era algo muito maior do que nosso medo, ou nosso risco pessoal. Envolvia a humanidade.
-Esse tal paradoxo... – ela começou a dizer, mas por algum motivo, não concluiu. As sobrancelhas se uniram, como se ela estivesse extremamente concentrada.
Tentei fazê-la descontrair um pouco.
-O-olha, talvez o M-menelau nem seja u-um velho. Como é e-espartano, talvez s-seja até saradão! Do jeito que você gosta e...
A cara de Manuela se fechou numa carranca pra mim... Ela abriu a boca, mas o meu celular emitiu um bipe. Salvo pelo gongo, literalmente. Ela olhou para o meu bolso, enquanto eu tirava o celular e verificava que a bateria simplesmente... foi pro pau.
-E agora?
-V-você me empresta a b-bateria do seu c-celular e e-eu vou continuar o u-usando o tradutor.
-Mas a bateria do meu também está baixa!
-Então, vamos guardar para uma emergência.
-Uma emergência linguística? – ela indagou, cética.
-É, p-por aí... – franzi o cenho. – Pode ser, quem sabe?
Olhei para o dispositivo "morto" em minhas mãos.
– V-vamos, que o tempo u-urge, como dizem p-por aí.
Ela não respondeu, apenas girou nos calcanhares e caminhou pela trilha, de volta para a vila. Eu a seguia, guardando o celular no bolso... Pensei nas possíveis emergências que um celular poderia se fazer útil, quando o celular nem foi inventado...
---
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro