Capítulos 11 e 12
[Manuela]
11 - Travesseiro e guarda-costas
A ovelhinha deitou ao meu lado e eu me aconcheguei em sua lã fofa e quente. Emerson nos observou entre cético e aborrecido.
-Vou chamá-la de Sheila – eu lhe disse.
-M-mas você já não chamou o co-computador da nave de She-sheila?
Pensei por alguns segundos.
-Bem... Aquela é a Sheila 1 e esta, a Sheila 2.
-Como sa-sabe que é menina?
-Eu já verifiquei... –Virei-me de lado e falei, com a boca escondida sob a manta que eu estiquei ao máximo para me cobrir. - Deixa de ser chato, Emerson.
Ele riu e eu também.
Um lobo ou coiote ou sei lá o que uivou ao longe, e eu estremeci de novo.
-Sabia que a su-sua ovelhinha Sheila pode atrair os p-predadores para nós? – Emerson perguntou, de repente.
-Escuta aqui, ô, seu negativista! – comecei a dizer; ele riu, diante do termo. – Ninguém toca na Sheila! Eu tenho uma faca que roubei lá do palácio.
Ele olhou para a faca que eu mostrei. – É d-de bronze.
-E daí?
-Acho q-que você não consegue c-cortar nem manteiga com isso da-daí.
-Ah, eu posso fazer uma experiência aqui e agora, com você – eu disse, maligna. – O que acha?
-O-ok, o-ok! Você v-venceu! Batata Frita!
Era a letra da música, mas me causou uma tristeza profunda e eu comecei a chorar feito um bezerro desmamado.
-O que fo-foi? – disse Emerson, desconfortável. - Me d-desculpe!
-Não é você – eu fechei os punhos para ele e a cara também. – Eu estou chorando por causa da Batata frita que deixamos para trás... – eu abri as guelas: - E QUE EU NUNCA MAIS VOU COMER!
-Ah... – disse ele, reticente. – Eu d-devia ter imaginado.
Emerson mudou de posição, fazendo uma careta porque a bunda devia estar doendo, no chão duro e gelado. Eu pelo menos tinha a Sheila 2.
-Béééé – fez ela baixinho, como se lesse os meus pensamentos. Eu afaguei o seu pelo, ouvindo as batidas de seu coração.
-Quanto tempo levaremos para chegar até Goteco Teco.
- Göbekli Tepe– ele me corrigiu, sem gaguejar.
-Isso aí que você falou...
-C-considerando que estamos a pé, a-acho que uns d-dez a quinze dias.
Eu sentei de repente, com os olhos esbugalhados. – Tá brincando!
-Não e-estou, n-não.
-E não podemos pegar uma condução?
-Ah, sei, – disse ele, sem se alterar. – v-você deve estar falando de pegar uma c-carroça, né? Boa i-ideia! Acho q-que economizamos uns d-dois dias. Então, e-entre 10 e 13 dias.
-Não é possível... – eu quase levei a mão à boca. Só não o fiz, porque me lembrei que fazia dois dias que eu não a lavava. E acho que a água dos cochos dos cavalos, em Troia, não conta!
-Além d-disso, não se e-esqueça do que aconteceu d-da última vez que t-tentamos nos aproximar dos n-nossos ancestrais... Deu ruim!
É, ele tava certo. Como eu queria que o Steve me aparecesse agora! O meu Anjo da Guarda!
-Agora t-tente dormir! – resmungou ele.
Ouvimos o coiote de novo.
-Assim não dá! – eu berrei, fazendo com que a ovelha e Emerson se sobressaltassem. Acho que vi alguns olhos brilhantes na escuridão também saírem correndo. – Vê se pára de encher o saco, lobinho, que eu quero dormir!
Meus berros ecoaram na escuridão.
Depois de extravasar a tensão, eu me aconcheguei, puxando Sheila para junto de mim e dormi feito uma pedra.
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Emerson improvisou uma vara de pescar, usando um galho, fio dental e minhocas. O espírito do McGyver está nele!
Sério, agora... Tinha que dar certo! Porque não comíamos nada, desde ontem. E eu tinha dado todas as minhas barras de cereal para a Sheila não ficar em cima da gente, no palácio.
Eu me sentei, exercitando a paciência, o que não era exatamente o meu forte. Eu estava a ponto de me atirar naquele riacho e agarrar os peixes com os dentes. Não, o meu estômago estava, porque minha mente não queria comer outro ser vivo.
Depois de uma hora, ele não tinha conseguido nem um peixinho... A gente se preparou para fazer outro fogo e chupar halls. A ovelha tinha um mar de mato para pastar, então, ela estava na boa.
-Béééé!
Olhei para ela atravessado. – Cuidado que a gente te come!
Claro que eu era capaz de comer o meu cabelo, antes de comer a pobre Sheila.
A gente continuou nosso caminho, depois de um breve descanso.
-Pense positivo, Emerson! – disse eu, em tom de zombaria. - Que momento ideal para fazer uma dieta!
Ele deve ter me xingado, mas não entendi direito. Para sorte dele. A gente parou de andar ao avistarmos um aglomerado de casinhas de madeira e barro, com a fumaça saindo de algumas delas.
-Acho que estou sentindo cheiro de sopa – eu disse, salivando.
Emerson me encarou. – Dessa distância não dá para sentir nada.
-Dá sim! – disse eu, saindo de trás da pedra. Imediatamente peguei o rumo do povoado, com Sheila 2 atrás de mim.
-Manuela!!! – ele me chamou, mas eu nem me virei. - Não podemos nos aproximar!
Ah, mas o meu estômago dizia o contrário.
– Querido, se quisermos chegar a Goteco teco, temos que comer! Saco vazio não para em pé – gritei por sobre o ombro.
-Pior q-que você t-tem razão! – disse ele, correndo para nos alcançar.
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[Nana]
12 - Lulus forever
Parei diante da lojinha de conveniência, no posto de gasolina onde meu tio estava trabalhando. Olhei ao redor, pensando que era difícil de engolir que Javel aceitasse fazer trabalhos subalternos de bom grado. Ao que parece, ele aceitou...
-O que deseja, menina? – indagou o oriental. A atitude dele não demonstrava nenhum respeito para com a minha divina pessoa. Mas também... O meu disfarce holográfico não inspirava nenhuma deferência por parte dos lulus. Para eles, eu era apenas uma garota asiática. Como ele próprio.
Acontece que eu estava sem paciência, e sem tempo, para fazer aquele jogo. Além do mais... Shames não estava comigo para tentar me controlar. Eu marchei até o balcão, apoiando as duas mãos sobre o tampo do vidro.
-Quero ver as imagens das câmeras de segurança do dia em que o seu funcionário esteve aqui, pela última vez – ordenei, utilizando o meu tradutor quântico de voz.
Ele me encarou com desconfiança. – Você é do FBI?
-Isso mesmo – disse eu, sem sequer imaginar o que representava a sigla.
-Quero ver suas credenciais – exigiu ele.
Certo. Ele queria credenciais. Eu saltei sobre o balcão, que cedeu, diante do meu peso real e se partiu em duas partes. Mesmo assim, eu fiquei aboletada sobre elas, como uma aranha gigante e ameaçadora. O homem me encarou com os olhos esbugalhados, quando lhe apontei o dedo. Ele não tinha para onde correr, considerando que estava meio que prensado entre a parede e o balcão destruído.
-Quero ver as imagens, agora – sibilei.
E ele não exigiu mais nada de mim. Conduziu-me até uma salinha contígua, escura, malcheirosa, onde ficavam os aparelhos de gravação. Eu mandei que ele rodasse a tecnologia arcaica, que eu não tinha ideia de por onde começar. Eram botões analógicos, pelo amor da Consciência Cósmica!
Algum tempo se passou, até que eu conseguisse reconstituir o último dia de meu tio Javel naquele lugar.
-Você se parece com ela – disse o proprietário da loja, assustado. Desde que eu me sentei para assistir os vídeos, ele ficara calado, de pé, junto à parede.
Eu me virei para ele.
--Ela quem?
-A garota que conversou com ele.
Eu fiquei confusa, mas quando estava prestes a pedir explicações, eu avistei na gravação, a garota asiática a quem ele se referia. Mas não era parecida comigo... Era uma criatura que só parecia ser humana. Obviamente, não era. Eu já tinha ouvido falar disso, das mutações genéticas dos adapas. Estava no banco de dados dos transhumanos, o qual, tive acesso durante minha reabilitação e preparação.
Mutação espontânea... Uma espécie variante, extremamente aperfeiçoada, que se tornou diferente e maior, a fim de combater um parasita alienígena tão inteligente quanto nocivo.
Eles se autodenominavam imortais... Os adapas os chamavam de sombrios. Levei a mão discretamente à orelha e toquei o meu dispositivo, que me mantinha conectada à IA da nave de Adad.
-Preciso dos arquivos sobre a espécie variante dos adapas – disse eu, em ashuriano. – Triangule todas as características catalogadas e a tecnologia correspondente. Preciso estar preparada para neutralizar qualquer ataque potencial.
- Pois não, Princesa Nana. Processando...
Ainda bem que Adad deixou que eu acessasse a IA de sua nave, enquanto executava minha nova missão. Ele devia saber que para lidar com Javel, eu precisaria de toda a ajuda disponível. Mas quando poderíamos imaginar que os imortais entrariam na jogada?
Quando titio soubesse onde e com quem seu meio-irmão foi parar... Será que Javel estava buscando uma aliança para derrubar o controle dos transhumanos?
Melhor esperar para tecer hipóteses. Antes de relatar a Adad o que estava acontecendo, eu pretendia interrogar meu amado tio Javel.
Enquanto a IA processava a minha requisição, analisei as imagens para descobrir o caminho pelo qual Javel e a asiática seguiram. A variante desapareceu num piscar de olhos, os caras que estavam com ela, também, levando a lulu. Não deu para ver por qual rua eles saíram. Mas tio Javel saiu pelo oeste. E eu pretendia seguir a trinha. Passou a me preocupar, o fato de Javel estar visivelmente interessado no bem estar da lulu. Ele tornava-se, assim, fraco e vulnerável para os variantes manipulá-lo.
-Arquivo carregado – informou a IA em meu ouvido.
-Procure a localização dos sombrios, na atualidade.
-Processando, aguarde...
Eu me levantei, assim que ouvi o sino da porta lá fora. O dono da lojinha se agitou, entre correr e pedir ajuda ou ficar no lugar.
-Nem tente – disse eu, com ajuda do tradutor ativado.
Ele congelou, no lugar.
Eu devia confiscar um meio de locomoção, além de comida e moeda para troca.
-Venha comigo – ordenei. - E venha calado.
Um cliente estava parado no meio da loja, olhando assustado para o balcão partido em dois. Ele tinha acabado de fotografar, provavelmente pensando em postar na rede. Eu agarrei o seu celular e cancelei o envio da foto. Guardei o dispositivo em meu bolso, ignorando os seus protestos.
- Cala a boca, lulu! – eu rugi, e teria rido em seguida, porque acho que ele se urinou. Será que meu holograma tinha caído? Olhei rapidamente para o vidro espelhado e encontrei o olhar da garotinha de dezessete anos, asiática, que me olhava de volta com tranquilidade.
De certo foi o rugido que o assustou. Paciência.
Abri a caixa registradora, arrebentando algumas das travas, e tirei o dinheiro.
-Princesa Nana – soou a IA. – O que está fazendo? Não pode...
-Estou confiscando, sim, para o bem da missão. Se titio achar ruim, ele que mande devolver depois.
Eu saí pela porta, vasculhando a área para pegar algum veículo que me servisse. Alcancei a porta aberta de uma caminhonete. O dono olhou para mim e começou a protestar. Eu ia jogá-lo longe, mas daí, a IA se manifestou:
-O principal núcleo de sombrios, espécie variante da Terra, fica no sul da América do Sul, em um território chamado de Terra do Fogo. Pertence ao Brasil, fora dos contornos continentais do país.
-Oh, então, um carro não vai me servir – disse eu, mais para mim mesmo.
O dono da caminhonete ainda esperneava. Eu coloquei a mão na boca dele, calando-o.
Teria que desinfetar depois, pois a gente nunca sabe o que um Lulu pode trazer na boca, em termos de patogenias. Eu só confiava naqueles que eu mantinha no meu cercado, na Antiga Indoeuropa e...
Nana, você está divagando. Não esqueça de que para se criar nesses tempos modernos, você precisa pelo menos fingir que tolera os lulus. E não pode mais chamá-los de lulus, pois estaria incorrendo em preconceito. Os Adapas que criamos são humanos...
Para mim, lulus forever.
De repente, a IA descarregou os dois arquivos que eu precisava sobre os imortais e entendi que não tinha mais tempo a perder ali.
-Fica esperto, - eu avisei o humano. - Qualquer um pode roubar essa sua carroça. Mas não serei eu, desta vez. Que sortudo você é!
Eu larguei o lulu, digo, o adapa, e atravessei a calçada.
– IA, localize o próximo aeroporto e mostre o caminho mais rápido.
-Pois não, processando...
-Enquanto processa, passe-me o arquivo dos imortais, em áudio.
-Tarefa secundária, processando... Registro Intergaláctico 20394857, referente ao surgimento de espécie de característica fenotípica humana, em Nahash. De acordo com os viajantes intergalácticos, no período de...
Ela continuou falando pausadamente, enquanto eu caminhava pela calçada.
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