A foto
Na manhã ensolarada de aniversário dos meus trinta e cinco anos de casamento, eu encontrei a foto que deu início a tudo.
***
Senti a primeira gota densa de chuva cair bem no meio do meu couro cabeludo quando pisei no primeiro degrau da escadaria da biblioteca pública. Instintivamente olhei para cima admirando a cor acinzentada do céu. Aquela nuvem carregada me perseguiu por todo o trajeto até ali e, finalmente, estava se derramando.
Subi o restante dos degraus correndo para fugir dos pingos e me abrigar dentro do prédio, que não estaria muito mais agradável, mas pelo menos, estaria seco. A antiga construção, de pé direito extremamente alto, deixava o lugar gelado quando o tempo lá fora também estava.
Lá dentro, senti de longe o cheiro de café que vinha da cozinha e corri para garantir uma xícara. Maria Alice já estava lá quando entrei ajeitando o crachá no pescoço.
Junto com ela estava seu habitual mau humor. Maria Alice sorrindo era algo tão raro quanto um diamante. Valioso da mesma forma.
- Olá - saudei pegando minha xícara com bolinhas coloridas enquanto ela mexia mecanicamente uma colher dentro de uma xícara preta.
- Oi - respondeu da forma seca de sempre. - Como vai a donzela saltitante hoje?
Não se engane, Maria Alice gosta de mim, esse é seu jeito simpático. Somos amigas desde que passei no concurso e comecei a trabalhar na biblioteca. Estranhamente, meu bom humor se deu bem com o mau humor dela e, desde então, somos muito amigas.
- É... - suspirei jogando a colher prateada na pia - dias de chuva não são meus favoritos, mas o céu hoje está com uma cor absurdamente linda.
- Aff - revirou os olhos. Eu tinha certeza de que essa seria sua reação.
Passou por mim e deu uma piscadinha e um esboço do que parecia ser um sorriso.
- Nos vemos por esses corredores radiantes e coloridos - ironizou sumindo sem que eu pudesse responder.
O som do temporal que caía lá fora podia ser ouvido do subsolo, onde se encontrava nossa cozinha. Carreguei meu café para a contagiante sessão de geografia e história no terceiro andar; meu único pesar em trabalhar na biblioteca. Sempre ficava namorando o setor de romance e poesia, mas quando entrei, só tinha essa setor sobrando, não tive escolha.
O dia seguia cinza enquanto eu já havia guardado uns quinze Atlas diferentes. As pessoas queriam mesmo saber sobre os recôncavos do mundo.
Eu empurrava o carrinho com alguns títulos sobre a segunda guerra quando encontrei um livro estranho na prateleira onde estavam os títulos sobre história do Brasil.
- Estranho... - sussurrei freando o passo e voltando para trás.
Pude ler na lombada que o título era Os Irmãos Karamázov. Estava definitivamente no lugar errado.
- Como foi que você veio parar aqui? - falei mais uma vez sozinha, retirando o livro da estante.
A capa estava um pouco desgastada, empoeirada até, mas como, se estava na estante? Por onde teria andado antes de ser colocado ali?
Olhei com curiosidade para o exemplar de Dostoiévski enquanto o folheava. Mais pó saiu de dentro dele quando algo caiu no chão se enfiando quase que totalmente debaixo da estante.
Fechei o livro com tudo, curiosa para ver do que se tratava. Tive que ajoelhar e tatear um pouco para sentir o papel misterioso. O material colou na minha mão, uma textura que eu conhecia. Uma fotografia se revelou quando puxei minha mão.
- Uau - sussurrei olhando estática para foto.
Um rapaz de aproximadamente 25 anos estampava a foto de um colorido hipnotizante. Estava de pé num mirante alaranjado, usando uma blusa verde de lã. Os cabelos pareciam flutuar por causa do vento e o céu atrás dele era de um azul perfeito, tornando a foto uma obra de arte.
Ainda estava encantada com a beleza da pessoa da foto quando Maria Alice surgiu do nada me perguntando o que raio eu estava fazendo.
Levantei tão rápido que quase me desequilibrei. Minhas bochechas ficaram quentes, eu sabia, consequência da cor vermelha que elas deveriam estar.
- Então? - continuou depois de não receber nada em resposta.
- Achei um livro na sessão errada - peguei o livro do carrinho e estiquei para ela. - Está estranho. Desgastado e empoeirado.
- Ué, como tudo aqui. Dê uma olhadinha à sua volta.
- Sim, - sacudi a cabeça negativamente apesar do sim - mas olha isso - passei o dedo na capa enquanto ela ainda segurava o exemplar, e um rastro limpo ficou desenhado.
- Estranho - ela finalmente admitiu.
- E tinha isso aqui dentro dele - estiquei a foto.
Uns cinco segundos de silêncio se seguiram até que ela concluísse:
- Bonito - confessou inclinando o rosto como se fosse algo extremamente raro de se ver.
- Não é? - falei tirando a foto da mão dela.
- Tanto faz... - deu de ombros - nunca vamos saber de quem se trata. Não tem nada na parte de trás.
- Pois é - respondi triste.
- É. Só não vá chorar - pediu virando as costas.
Dessa vez quem revirou os olhos fui eu. Olhei para a chuva lá fora através das grandes janelas e depois novamente para o livro. Folheei novamente até chegar nos carimbos com as datas de empréstimo na contracapa e fiquei um pouco decepcionada de ver que o último empréstimo tinha sido três anos antes. O mais curioso era o fato de que a data era exatamente a data do dia de hoje.
Peguei o celular no bolso traseiro da minha calça e tirei uma foto da lombada do livro, com o código numérico. Talvez tivesse como descobrir quem foi a última pessoa a emprestar. Muito provavelmente, aquela foto tenha sido colocada ali por essa mesma pessoa. Assim eu esperava.
Faltava menos de vinte minutos para a biblioteca fechar quando encontrei Maria Alice organizando algumas fichas no meu setor invejado.
- Quero ajuda - pedi quando me aproximei.
- Para? - quis saber sem nem mesmo desviar os olhos dos papeis que mexia.
- Para descobrir quem foi que emprestou esse livro por último.
- Sofia. Sério? - finalmente me olhou com uma cara nada feliz. Normal.
- Sim - respondi irredutível.
- E como você espera conseguir isso? E em que parte entra minha ajuda?
Eu tinha certeza que ela já suspeitava qual era a resposta para essas perguntas.
- Karina - disse sem muito rodeio.
- Não - rebateu imediatamente.
- Por favor! - implorei dando a volta na mesa dela para ficar mais perto. - Eu sei que ela tem uma queda por você e sei também - esperei que me olhasse novamente - que você tem uma queda por ela.
Aguardei a reação de Maria Alice, estreitando meus olhos enquanto um semi sorrido ameaçou surgir em seu rosto.
- Se eu pedir, ela não vai me dar os dados do usuário, já se você pedir... - continuei com as mãos juntas como em oração.
- Tá bom! - se deu por vencida.
Bati as palmas que já estavam juntas em sinal de alegria.
Seguimos de forma apressada para o setor de T.I.. A porta estava entreaberta quando paramos bem em frente. Maria Alice se ajeitou e fez cara feia para mim quando a peguei no flagra. Virei para a porta rapidamente fingindo que não tinha visto nada. Deu duas batidinhas leves e depois abriu a porta.
- Oi - falou tímida.
Estava bem ali na minha frente uma Maria Alice que eu nunca tinha visto.
- Oi! - Karina pareceu entusiasmada, mas de forma sutil.
Acenei quando ela notou que eu estava presente.
- Queria um favorzinho, se não for atrapalhar ou te colocar em alguma situação desconfortável - Maria Alice começou.
- Caramba, fiquei extremamente curiosa - admitiu Karina tirando os fones imensos do pescoço.
- Não é nada demais, acho... você consegue acessar o registro de usuários que emprestaram os livros? - definitivamente estava nervosa.
- Claro que sim - sorriu diante do que era pedido, com certo alívio, como se fosse algo simples.
- O grande detalhe - Maria Alice suspirou - é que o livro em questão foi emprestado há três anos.
- Sem problemas - Karina respondeu empurrando a cadeira de rodinhas em direção ao seu computador. - Nosso programa de empréstimos registra cada exemplar por cerca de cinco anos, então é bem provável que encontre.
A tela do programa já estava aberta em sua frente quando ela perguntou os dados que precisava, código do livro em questão e data de empréstimo.
Quando ela terminou de digitar de forma extremamente rápida todos os dados fornecidos e apertou o enter, senti um pouco de frio na barriga.
O sistema pensou por cerca de quinze segundos que pareceram uma eternidade, então outra tela menor pulou na frente da principal com os dados que eu tanto queria.
- Aqui - pegou um papel para anotar. - Filipe Niepsuj - se enrolou um pouco para falar o sobrenome.
- Como é? - Maria Alice se aproximou, ficando com a cabeça bem acima do ombro de Karina, muito próxima a seu rosto.
- Não tenho certeza da pronuncia, parece algo eslavo. Arrisco polonês - falava quando notou a proximidade de Maria Alice.
Quando Maria Alice notou a tensão se formando, quebrou o encanto um pouco nervosa.
- Ótimo - pegou o papel das mãos de Karina que piscou algumas vezes para se refazer. - Muito obrigada - Maria Alice agradeceu genuinamente. - Te devo uma - sorriu.
Karina devolveu o sorriso e, era evidente, as duas estavam caidinhas uma pela outra.
- Até logo - finalmente falei sorrindo, tentando fingir que não sabia sobre o segredinho delas, falhando miseravelmente.
Andamos até o final do corredor quando Maria Alice desacelerou e me estendeu o papel.
- O que foi aquilo? - cochichei.
- Não foi nada! - desconversou, mas aquele sorriso que nunca se abria teimava em ficar ali, escondido em sua carranca. - Está aqui o que tanto queria.
- A janta é por minha conta - contei olhando com um sorriso besta para o papel.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro