Capítulo 40 - Lady Aisling
A sensação é como estar parado. A brisa leve e gelada arrepia cada centímetro do meu corpo. O corredor da casa de Leanan parece infinito, a porta rangendo me faz rilhar os dentes e vislumbrar papai e Brizo sentados em uma cama é o suficiente para fazer as minhas pernas colapsarem.
Os meus olhos doem, mas as lágrimas não saem. Estou tão devastada que sequer consigo chorar.
Minha família também vai ao chão, com os dois me levantando só o suficiente para me abraçarem. É quente. Eu não percebi que estava com tanto frio até instantes atrás.
Queria que esse único minuto fosse eterno.
― Meu amorzinho... ― Ouço a voz abafada do meu pai e sinto suas lágrimas percorrendo os meus ombros.
O cheiro deles é como me lembro, mofo e peixe, mas é exatamente disso que eu precisava para recuperar os sentidos, só o bastante para poder conversar.
― Vocês estão bem? ― eu indago, após nos separarmos e levantarmos devagarinho.
Brizo cruza os braços. Os seus cabelos estão crescendo de novo e há algo diferente nele, como um ar mais responsável e a postura menos retraída. Não sei o que aconteceu, mas eu gosto de vê-lo assim.
― É... já foi pior. ― O conformismo de Brizo não me engana, estou vendo as lágrimas que está segurando. Sua sensibilidade não mudou, e nem quero que mude. ― A gente só vai ter que morar em outro país para não acabar morto, não é? Não é tão ruim se todo mundo vai ficar vivo, maninha.
― Eu não vou poder ver vocês ― nego o seu positivismo. ― Como vão se sustentar lá?
― Sobre isso... ― papai começa a dizer, porém a presença de Leanan o faz parar.
― Fiz café agora há pouco ― informa, encostada no batente da porta e apontando para fora do quarto. ― A viagem vai ser longa, então melhor irem encher o estômago. Não percam tempo só com conversa fiada.
Ninguém discorda. Permito meus familiares irem na frente e olho para trás, para o canto que Dian está reservado, aguardando eu sair para também me seguir, porém tão silencioso que certamente não é o momento ideal para conversar.
Eu não tenho família.
É irritante como esse pensamento não se ofusca e não se perde na minha mente, mesmo que eu balance a cabeça, tentando o afastar. Estalo a língua, desviando a atenção de Dian e sigo pelo corredor com o piso rangendo.
Leanan não se deu ao trabalho de colocar uma toalha de mesa ou fazer uma grande preparação para a última refeição da minha família em Wexford. É algo bem esperado para nós, simples, ordinário e humilde, como sempre fomos. E eu acho que essa é a melhor parte: a simplicidade, a sensação cálida de estar de volta em casa.
Tem espaço para cinco pessoas na mesa circular com pães e uma cafeteira de alumínio. Dian é o único que não se acomoda por livre e espontânea vontade, afinal ainda há um revólver apontado para ele. É quase como se Leanan conseguisse olhar para dois lugares diferentes, pois ela põe o seu café numa caneca branca com a maior naturalidade e sua atenção se desvia periodicamente para ele, então retorna ao seu desjejum.
O café é bem ruim se comparado ao que eu tomei nas manhãs em Kildare, porém não vou reclamar, pois é meio adocicado, apesar de fraco.
― Voltando ao assunto... ― começo, assoprando o café.
― Ah. ― Brizo queima a língua e olha para mim. ― A gente parou de gastar o dinheiro que você ganhou. Devolvemos a geladeira, o fogão e o sofá novo, e também cortamos a energia. O pai disse que não era justo contigo e que a gente não podia se deixar levar.
Até esqueço de assoprar.
― Como se mantiveram até hoje, se não gastaram nada? ― Desvio a atenção para o meu pai, que está comendo o miolo do pão.
― Eu reciclei lixo ― diz ele, normal, só até perceber como isso me assusta. ― Ah, não foi ruim! Na verdade, me fez bem sair de casa e andar por aí. É bem lucrativo, considerando que o povo joga tanto lixo na rua e esquece do seu valor.
― E eu comecei a trabalhar no cais. ― Eu torno para Brizo, com ele abanando a língua. ― Eu ía lá para estudar como rotina, porque é um lugar bem movimentado e eu gosto do ambiente. Um dia eles demitiram um moço e, como eu estava por perto, me chamaram para carregar as iscas para o barco. Até que ganha bem e eles me deixam estudar nas viagens de barco.
Eu intercalo a atenção entre eles, sem palavras.
― Estávamos nos preparando para o seu retorno ― revela o meu pai, de boca cheia. ― Imaginamos que você voltaria cansada e, te conhecendo, você ficaria culpada em descansar, porque não teria dinheiro entrando em casa, só saindo. Assim nós começamos a trabalhar para você descansar em paz.
Eu não era a única pessoa fazendo planos para um futuro melhor. De repente, eu não sou mais o único pilar que sustenta a casa e os sorrisos. Se tudo tivesse ocorrido como tínhamos planejado, seria perfeito. Simplesmente perfeito.
Sinto que há um peso saindo dos meus ombros, no fim.
― E, maninha... ― cochicha Brizo, com a mão ao lado da boca, mesmo que não faça a menor diferença. ― Quem é esse?
Está apontando para Dian.
― Sou acompanhante de Lady Aisling. ― A forma descompromissada e simpática do seu tom contrasta com o absurdo dito.
Eu tenho que segurar as minhas pernas para não levantar.
― Lady? Como que é? ― Minhas mãos batem na mesa, fazendo com que os copos balancem e papai tenha que segurar o seu para não derramar.
Sinto uma cutucada nas minhas costelas, o que me alerta para observar Leanan.
― O que você esperava, albininha? ― Ela é a única além de Dian que não esboça espanto. ― Um alto membro da corte te livrou do nó, seja lá por qual motivo tenha sido, não importa, é o mesmo que te considerar superior aos demais. Você faz parte da corte agora.
Meu pai e Brizo agora não sabem se me encaram ou a Dian, a surpresa e confusão tão evidentes quanto a minha, tanto que meu pai esquece de levar o pão à boca e Brizo está de queixo caído.
Eu me foco em Dian, esperando por uma explicação a mais, qualquer coisa, mas ele só dá de ombros para mim e permanece calado, tomando café como se fosse uma manhã tranquila de domingo.
É demais para processar.
Apagável e ignorável, não serei mais nenhuma dessas coisas quando eu voltar para Kildare.
― Estamos ficando atrasados, melhor vocês irem comendo na rua. ― Leanan não está sugerindo.
Ah, eu tenho que me despedir. Quase me esqueci. Foram poucos minutos, porém eu me sinto revigorada.
― Ela realmente não pode ir conosco? ― insiste o meu pai, como se Leanan tivesse algum poder de escolha.
A senhora não faz questão de responder. A resposta é óbvia.
― O senhor considera tua filha uma adulta? ― indaga Leanan.
― Sim, claro.
― Então ela tem idade para assumir a responsabilidade do que fez, mesmo que tenha sido com a melhor das intenções. ― A mulher me encara de soslaio, ainda me julgando. ― E eu espero que dessa vez ela faça a coisa certa.
É a primeira vez em muito tempo que ouço o meu pai rir, e ainda é uma risada desprazerosa.
― Eu não gosto dessa ideia, eu odeio, na verdade, mas às vezes é melhor só assumir a minha ignorância. Discutir o caso só irá atrapalhar, quando não há o que ser feito, então...
Ele volta a atenção para mim, como se estivesse me chamando para um abraço.
Enquanto me levanto, eu acabo observando-o por um tempo. Mesmo que esteja diante de mim, às vezes ainda me esqueço que ele perdeu um olho e um braço no Beltane, e a cada dia que passa meu pai recupera a sua própria independência. Aprendeu a escrever com a mão esquerda e agora recicla lixo. Ele sobreviveu ao Beltane, sozinho, sem que ninguém tivesse vindo para acudi-lo, como eu fiz com Brizo.
Meu pai pode ser considerado um inválido para a sociedade, mas para mim ele está cada vez mais próximo de ser um herói. Ele tropeça, às vezes me arranja casamento com idiotas, mas jamais irei condená-lo por errar e tentar fazer o que julga ser o melhor.
Eu também errei. E os erros são incontáveis.
Abraço papai e Brizo de novo, logo que eles se levantam, e os aperto até reclamarem que estão ficando sem ar. Depois que nos separamos, meu pai segura uma mão minha e Brizo a outra. Ambos têm os olhos marejados, porém o sorrisinho estampado no rosto de cada um é o que me dá certeza que, no momento, nos despedirmos é a coisa certa a se fazer.
Não é para sempre, quero acreditar.
― Eu vou dar um jeito. ― Já perdi a conta de quantas vezes disse isso para eles.
― Não precisa. ― E meu pai sempre me refuta. ― Mesmo se você não puder ajeitar as coisas, deixe que elas se ajeitem sozinhas, com o tempo. Nós vamos te amar, não importa o quão longe estivermos, não importa o tempo que passe.
― Ais ― Brizo me chama ―, você acha que a mãe vai voltar?
Dagda esperou por Boann, a Rainha Peregrina, por vinte anos e a sua esperança não esmaeceu com o passar das décadas. Eu também posso esperar pelo tempo que for.
― Não duvido disso nem por um único dia ― digo. ― Ela vai voltar.
― Então acredite que a gente também vai se ver de novo ― finaliza o meu irmão.
Minha visão está embaçando. Ainda dói fazer isso.
Um último abraço nunca é demais.
Eu sigo para a porta, onde Dian está à minha espera e, antes de passar a porta, eu dou o meu melhor para sorrir para os dois e aceno para eles. Quero que lembrem de mim assim, sorrindo, não em prantos.
― Volto logo. ― É o que eu disse antes de voltar à Kildare e não vê-los por um mês. Eu finalmente consegui dizer isso para eles, e a sensação é de ter outro peso saindo dos meus ombros. ― Amo vocês.
E eu fecho a porta amarela, deixando-os sob a proteção de Leanan.
É difícil me virar e sair andando, só consigo fazer isso porque Dian segue na frente, sem me direcionar um olhar ou demonstrar qualquer atitude que exalte o seu sarcasmo.
Não sei se entendo as razões para sua melancolia. Agora deveria ser o momento que eu destaco como a minha família foi amorosa comigo e faço-o engolir cada atrocidade que disse mais cedo, chamando-os de parasitas. Por mais que seja fácil cair nessa tentação, não condenarei Dian. Provar o meu ponto não é o certo, não é humano e nem empático fazer isso com alguém que acabou de perder o pai.
Há coisas que não precisam ser ditas.
Os céus estão nublados, mas a chuva cessou em Kildare. O sol, as estrelas, nada pode ser visto. A quietude, no entanto, é perpétua. Não há o canto matinal dos passarinhos e não encontro castores pelos campos vastos, além de que as ruas estão vazias, incluindo as comerciais.
O luto é de todos, porque todos sabem que tempos difíceis estão para arranhar as nossas costas.
Muirenn e Muirne tiraram a arma que estava escondida no meu uniforme de criada, enfaixaram a minha mão ferida e me colocaram em um vestido de gala logo no meu retorno, porque Kiera já havia contado para todos sobre o que Dian fez e, depois que nós dois fomos limpos e vestidos adequadamente, nos guiaram até uma propriedade sem dono, uma das mais distantes.
Ninguém se atreveu a se aproximar de Dian. Mesmo para um príncipe, a negligência por ser um darach, e o medo, tudo sobrepõe a sua posição social. Os druidas o desprezaram, enquanto a mim uns se curvaram e falaram respeitosamente.
As minhas roupas pinicam. Não são exatamente confortáveis. Até mexer os braços para pegar o chá disponibilizado na mesa é uma tarefa complicada, porque o vestido está fisgando na minha pele e me causa comichão.
A mesinha de jardim está um tanto empoeirada, junto das cadeiras e tudo o que há na propriedade. Nós não estamos autorizados a entrar lá até que limpem o ambiente, então nos acomodamos aqui. Dian está acompanhado da sua taça de vinho e eu do chá com leite.
Eu poderia dizer que os campos são uma vista aconchegante e bela, se a presença de Dian não tivesse secado cada árvore, plantação e grama ao nosso redor, com folhas mortas voando calmamente junto dos ventos que balançam os meus cabelos para lá e cá.
É a sensação de estarmos rodeados por morte, e não é tão exagerado, quando só penso em matar Dother, Carman e Balor.
Enquanto eles viverem, não posso ver a minha família.
― Você ainda não me disse qual era o seu preço por tirar o nó do meu pescoço ― eu inicio, já que não tem nada de melhor para fazer até Dub nos convocar para uma audiência.
― Honestamente? ― Dian dá outra golada na sua bebida. ― Eu não pensei em nada, de propósito. Guardarei para um momento crucial, e obviamente você não poderá negar a minha única exigência.
Desgraçado ardiloso.
Eu bato a xícara de chá na mesa e o fuzilo com um olhar de canto.
― Não se estresse à toa. ― Há um prenúncio de perigo em cada palavra que sai pela sua boca. ― Você conseguiu uma das coisas que queria: conforto. Agora que você o tem, aproveite e faça bom uso, Lady Aisling.
Continua no Livro II - O Príncipe do Infortúnio
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro