Capítulo 32 - Duas rainhas no xadrez
Não há locais realmente confiáveis no meu quarto para armazenar um revólver, além de que não faria sentido esconder isso na passagem abaixo da beliche, eu não teria tempo de pegar numa emergência. Odeio a ideia, mas vou levar comigo, deixar no bolso frontal do meu vestido e com paninhos em cima. É o jeito mais prático de manter a minha atenção nisso e também ter versatilidade para caso haja a necessidade.
Ainda não sei se reiteraria o ato. Atirar deve ser tão maçante quanto enfiar uma faca no pescoço de alguém, mesmo que na facada você sinta a efetividade do seu corte, toda forma de assassinato carrega um fardo idêntico.
Se Danu ainda estiver me ouvindo, eu não desejo apontar essa arma para ninguém.
Minha primeira tarefa do dia, às sete da manhã, é levar os suprimentos que chegam a Kildare até o armazém do Crann Bethadh. São caixas de madeira bem pesadas e frágeis, por isso eu me concentro em cada passo, sentindo a pistola bater nas minhas coxas e me recordar frequentemente da sua presença.
Desço os degraus de pedra para ir ao subsolo e tenho que abrir a porta usando as minhas costas, pois eu esqueci de deixar aberta e fazer isso é mais educado do que chutar a porta. O armazém é uma sala espaçosa e pouco interessante, com pilhas de caixas para se perder de vista e iluminação escassa. Duvido que alguém da corte pise nesse lugar, ele não é belo e nem rodeado de preciosidades.
Shira está aqui, olhando para determinadas caixas e realizando as suas anotações rotineiras. Sua disciplina é inigualável, pois não para de escrever na folha apoiada na prancheta nem com a minha chegada. A pena que Shira usa tem uma tinta de última geração que é duradoura.
— Pode colocar essa caixa aqui. — Shira aponta com a pena para um espaço vazio próximo a si. Eu obedeço prontamente e já me preparo para buscar os outros suprimentos, porém a criada-chefe faz um som com a garganta. — Bridie, hoje a sua agenda será diferente.
Ah, não.
— Sim, senhora.
Paro à frente de Shira, esperando as novas ordens.
— Presumo que ontem você não deva ter comido a salada de legumes que ofereceram no horário do jantar. — Balanço a cabeça. Eu comi três pães com bastante manteiga e só. — Vários criados passaram mal por conta da salada. Acredito que as bananas estragaram e prepararam sem perceber.
Não entendo onde ela quer chegar, mas mantenho o silêncio, mesmo quando Shira fica calada para continuar as suas anotações. Ela não tem muito tempo nem para conversar.
— Norah está incapaz de fazer o seu serviço, então preciso que você vá até este quarto. — Shira vira a folha, começa a desenhar a planta de um dos últimos andares do Crann Bethadh e faz um círculo no cômodo. Sua memória é grotescamente fiel à realidade, é sobre humana. — Sabe onde é?
— Vou encontrar — digo.
Eu vou até os fundos do armazém, onde também fica o inventário e pego tudo o que consigo carregar nas minhas mãos. Como Shira está apressada e mal me explicou sobre o trabalho, vou trazer tudo comigo para não ter que ficar indo e voltando.
Apresso a corrida por estar com um balde cheio de água, vassoura, rodo, dois panos e os produtos necessários. É difícil manter o equilíbrio, especialmente quando há o perigo de o revólver no meu bolso ser descoberto. Até cogito um lugar melhor para encobertá-lo, porém estou sem opções.
Sinto o olhar de julgamento sobre mim, dos nobres que perambulam pelo castelo. É uma falta de cortesia os criados andarem sem as mãos à frente do corpo e com os passos perfeitamente retos. Não podemos ser escandalosos, e eu estou atuando como um carro alegórico para acelerar o meu serviço.
Este andar do Crann Bethadh sem dúvidas é um dos que eu pisei pouquíssimas vezes. Não é o local mais pomposo, porém é o mais encantador em termos mágicos e naturais. A natureza está misturada ao ouro, em perfeita harmonia com a magia que ilumina as arandelas num tom de azul suave. Há algo no aroma sofisticado desse lugar que me faz ter a sensação de que estou boiando em águas serenas.
Paro diante da porta adornada e noto que esta é a única com uma mensagem entalhada.
"Se você olhar bem, verá que o mundo todo é um jardim."
Bato à porta três vezes com o cabo da vassoura e espero.
— Está aberta. — Ouço falarem comigo. Eu com certeza já ouvi essa voz quando trabalhava ouvindo o rádio, só não estou reconhecendo.
Eu abro a porta usando o cotovelo para abaixar a maçaneta e empurro bem devagar, afinal já estou sendo desrespeitosa pela forma como estou me comportando.
Rei Dagda está sentado na beirada da cama de casal enquanto lê um livro tão grosso quanto um dicionário. Como o representante dos druidas filid, suas vestes brancas são formais e feitas de algodão. Não é o maior luxo, apenas confortável. Ele também tem uma Rosa da Glória, como a que Dother me deu, só que a dele é menor e está acoplada na região do seu peitoral. A coroa de carvalhos retorcidos reside na sua cabeça já pela manhã e, apesar de me hipnotizar, acaba me lembrando que eu fui mandada para limpar o quarto da entidade mais célebre de todo o país.
Tenho que me controlar para que a onda de medo não tome conta do meu coração e acabe arruinando tudo. Há inúmeros motivos para eu acabar morta nos próximos minutos, afinal eu sou uma criada inexperiente, humana e condenada. Erros são fatais.
Humanos são proibidos em Kildare. Sabe o que acontece se descobrirmos um desses vermes aqui? É só olhar para o seu copo e terá um bom exemplo. Nunca entendi o que Dian quis dizer. Ele me mandou olhar para um copo com seiva, não tinha cheiro de sangue.
Sou rápida para organizar os itens que estou carregando e os coloco em um canto do cômodo que não deve incomodar. Acho que Dagda vai só me ignorar, então eu avalio o ambiente e tento descobrir o que Shira me mandou fazer aqui. O chão está mais limpo que os pratos da minha casa, a cama já está arrumada, os objetos, medalhas, joias e quadros com pinturas abstratas estão todos ordenados. Passo o dedo por um dos vasos de cerâmica com gladíolos policromados e constato que estão bem empoeirados. Deve ser isso.
Levo uns vinte minutos para fazer a minha limpeza. O silêncio é estranho, porém incômodo não é a palavra certa para defini-lo. Rei Dagda continua lendo o seu livro enquanto eu estou averiguando novamente para ver se não esqueci de nada — e reavalio o meu serviço, para garantir que tenha ficado aceitável.
Faço uma reverência, mesmo que ele não esteja nem lembrando da minha existência, e me encaminho para a saída com todos os aparatos exagerados que eu trouxe.
O som do livro sendo fechado ecoa pelo quarto.
— Desculpe pela demora. — Fico confusa com sua afirmação, o bastante para quase derrubar o rodo e a vassoura. — Pedi para que Shira convocasse alguém para praticar xadrez comigo, apesar disso, agradeço pela limpeza dos vasos.
Rei Dagda deixa o livro de lado e se levanta para ir até a mesa de dois lugares, onde as peças já estão organizadas e polidas. Eu dou poucos passos até essa mesa, mas não me sento.
— Fique à vontade para se acomodar, mocinha. — Ele faz um gesto suave com a mão, me indicando a cadeira. — De preferência, quero jogar xadrez com alguém que não conheço.
Eu não sei jogar.
Me sento lentamente, com os olhos presos nas peças, numa esperança sem futuro. Jamais vou descobrir o que cada uma faz, mesmo que no máximo conheça apenas os nomes das peças e como cada uma é visualmente. Tudo é de mármore cintilante, dos tabuleiros às peças ainda em perfeito estado.
Dagda move um peão para frente e eu faço o mesmo, uma jogada espelhada para garantir que não vou errar, mesmo que a derrota seja óbvia para mim.
Um peão contra um rei.
— Quando ainda era humana, você foi à escola? — indaga de repente.
— Sim, Vossa Majestade. — De soslaio, fico observando ele analisar o tabuleiro. Não parece pensativo, só desatento. — Tive aulas com Redmond Kavanah.
De acordo com a história que Dother armou para a audiência, Bridie Marfach foi resgatada do Condado de Carlow. Se Redmond estiver interligado somente com Wexford, vou dizer que eu me mudei e parei de estudar.
Rei Dagda levanta o olhar imediatamente para mim. Há um brilho inesperado nele, como numa revelação para alguém que está perdido e viu uma centelha de luz.
— Redmond Kavanah — repete, então um pequeno e inesperado sorriso transparece nos seus lábios. Acho que a minha história cheia de mentiras é dispensável, por ora.
Há um pouco de silêncio. Rei Dagda move o cavalo em L para frente e eu, sem nem pensar, realizo um movimento idêntico ao dele.
— O que... O que você achou das aulas dele? De Redmond. — Outra pergunta estranha.
— Ele veio me ensinar gramática embaixo de chuva, enquanto eu tinha que ficar cortando lenha e não podia parar. Acho que foi um bom professor. — Só a parte da lenha é mentira. Na verdade, Redmond me deu aula enquanto eu forjava uma lança, aos quinze anos.
— Redmond se tornou um homem invejável, de fato. — Agora o semblante do Rei Dagda parece mais desgastado. As rugas provindas da idade reforçam a sua mágoa. — Não há nada mais valioso que ver um aluno superando o seu mestre.
Inclino a cabeça.
— Aluno?
— Redmond foi um dos meus alunos, antes de eu perder o meu irmão mais velho, Donn Fir Bolg. — Ele continua olhando para o tabuleiro, como se estivesse sozinho e falando consigo próprio. — Eu fui um príncipe caçula com fome demais pelo conhecimento e sede demais para espalhá-lo aos menores. Fui professor antes de rei. E sou melhor professor do que rei, afinal, o único conhecimento que não tive apreço em adquirir foi o de governar.
Percebo só agora que eu esqueci de fazer a minha jogada e eu movo o meu cavalo branco, igual ao que Dagda fez.
O rei pacificamente pega o cavalo preto e derruba o meu peão branco, assim tirando a peça do tabuleiro e tomando o lugar dela. Acho que estou entendendo, o cavalo se move em L, então eu faço o mesmo movimento e derrubo o peão dele.
— Toda jornada tem o seu dia final, por isso não devemos apressá-la. — Estou em silêncio, ouvindo atentamente até em suas pausas. Dagda fala lento. Conversar com ele é como navegar por um lago pacato. — Sabendo disso, me dei tempo para aprender a governar, fui paciente, no entanto, há pouco descobri que não se tratava de governar, de fazer os outros felizes ou de fazer as escolhas que cabem somente a mim, se tratava de ser o epicentro da diferença. Não existe certo ou errado, existe mudança. Eu fui um rei que não mudou os costumes, que não foi além dos conhecimentos dos livros. Não influenciei uma cultura menos violenta para o Beltane. Não fui capaz de abolir a prática do obair... Fui um rei, na verdade, governado pela saudade. — Dagda suspira antes de continuar, observando a uma xícara vazia ao lado da mesa. — O chá tem o mesmo gosto que eu me lembro, mas onde está aquela que compartilha essa memória? — pergunta em retórica.
— Eu lembro de ouvir Vossa Majestade no rádio, enquanto ainda trabalhava. — Não sei se eu estou fazendo o certo de acabar falando junto com ele. Talvez o meu papel seja apenas ouvir. — No evento de abertura do Beltane, lembro de um discurso de Vossa Majestade. "Talvez você já tenha encontrado a sua posição no mundo, o seu propósito, a sua missão, aquilo que quer fazer de bom pelo resto da sua vida. Se ainda estiver procurando, saiba que este lugar existe e está esperando por você."
Eu ainda não sei se estou no lugar certo ou se procurei o bastante, mas, pela forma como Dagda me olha, há uma dor inexplicável através dos seus olhos dourados, quase exatamente como os de Dian, só não são semelhantes aos de uma cobra, porém são vivos e expressivos. Eu não tenho certeza sobre mim, mas Dagda tem certeza sobre si mesmo.
O rei pega a peça do cavalo e recua com ela para a frente de um dos peões que ainda não se moveu.
— Você é a moça que Dother resgatou, não é? — Faço que sim com a cabeça. — E você está vivendo bem aqui? Está feliz?
— Sim, Vossa Majestade.
Como já entendi como funciona o movimento dessa peça, eu só avanço com o meu cavalo e paro à frente de um peão de Dagda.
— Faz muito tempo desde que eu me senti vulnerável pela última vez — retorna o rei. — Quem usa esta coroa é abençoado com a maior das sortes, por isso eu não posso ser morto e nem preciso de guardas me cercando. Mesmo se você tirasse um estilete do bolso agora, algo aconteceria e você não teria êxito em me assassinar. E caso alguém realmente me mate, essa pessoa receberá a pior punição de Danu. Consegue imaginar o porquê disso, de tantas precauções divinas?
Qual a finalidade de tanta proteção, se druidas já são sortudos o bastante?, eu mordo a língua para não verbalizar as besteiras da minha cabeça.
— Não sei, Vossa Majestade.
— Druidas são criaturas frágeis. — Ele sorri calmo perante o absurdo. — Sobrepondo a magia, a sorte, a espiritualidade e o conhecimento, todos nós ainda temos um coração humano e somos governados por ele. Todos. Até aqueles que tentam esconder esse coração dos outros e de si próprios.
Dagda move a sua peça de bispo para a frente do seu rei, provavelmente para protegê-lo.
E eu, numa jogada perpetuada pela quietude, fico pensando que o cavalo se move em L, então posso comer uma das suas peças e me aproximar do rei para dar xeque. É a primeira vez que eu ajo conforme a minha vontade. Não estou querendo vencer, visto que nenhum de nós está atento ao jogo, no entanto, o xadrez ganha um novo significado quando eu empurro a peça que derrubei usando o cavalo.
Eu tirei a sua rainha do jogo.
O rei se mantém tácito pelo o que parecem segundos intermináveis, os olhos cravados na peça que cai do seu tabuleiro. O som do impacto na mesa é alto demais para nós dois. É incomodativo, triste, solitário e consumido pela saudade de um tempo que ficou no passado.
— O amor é o maior exemplo da nossa fragilidade — ele volta a dizer, a voz ainda suave e melancólica. — É da nossa natureza amar somente uma vez, uma única pessoa. Deve ser por isso que nós escondemos o nosso coração no lugar mais profundo e inacessível, porque amar é perigoso para nós... O casamento é a purificação de todos os males. Não importa se você agiu errado ou a gravidade do que fez, se alguém te amar, então você é digno de ser perdoado, na visão de Danu.
A cena de Carman torturando Dian volta à minha mente em um lampejo fatídico e indesejado. Não consigo ver isso como amor em hipótese alguma, tampouco que Dagda tenha decidido se relacionar com uma mulher como Carman.
— Mas é muito pior quando o casamento acaba. A perda inevitável dói tanto quanto o luto, principalmente quando ela foi embora também por amar. Ela não queria ir. — Só agora percebo que Dagda não está se referindo a Carman, e tudo começa a fazer sentido para mim. A sua consternação fica cada vez mais compreensível quando eu relembro de Dian e hoje olho para o rei tão esmorecido. Eles são semelhantes, porém Dian não se parece com Carman.
Meus olhos estão presos na peça da rainha que foi derrubada do tabuleiro.
Carman não é o primeiro casamento de Dagda. Não deve ser a mãe de Dian.
— Hoje é o último dia que eu permaneço neste quarto. — O rei mantém as suas mãos fora da minha vista, abaixo da mesa e provavelmente apoiadas nas suas pernas. Não acho que vá voltar a jogar. — Ouvi dizer que ela ainda está viva.
— Como é o nome dela... Vossa Majestade? — Estou incerta sobre continuar falando, tanto que quase esqueço do pronome de tratamento.
— Boann. — Dagda balança a cabeça, como quem ainda está em negação. — Ela nos deixou com a promessa de que iria voltar da peregrinação, sendo que recentemente completaram vinte anos. Os que não esqueceram de sua existência esqueceram do seu nome, hoje Boann é somente a Rainha Peregrina, a rainha que abandonou a coroa.
Só então Dagda olha para mim. Mesmo que a sua conclusão não seja tão entusiasmada, ele ainda se atreve a sorrir gentilmente, começando a arrumar as peças de um jogo não finalizado.
— Peço perdão pelas minhas divagações. — Dagda está focado na tarefa que deveria caber a mim. — Obrigado, mocinha boa ouvinte, foi bom conhecê-la.
Algo me diz que não era para ter acabado, que o rei está apenas antecipando o fim desta conversa, quando o seu semblante só me transmite o olhar de alguém que ainda tem muito o que dizer e que, no entanto, a pessoa a qual ele gostaria de revelar os seus pesares não está aqui para ouvi-lo.
Nunca imaginei que faria isso, mas eu me curvo na minha melhor reverência com toda a minha boa vontade e, ao me voltar para o Rei Dagda, também me atrevo a pôr um sorriso no rosto e dizer:
— Eu também acredito que a minha mãe vai voltar.
É estranho. Não me sinto conversando com o homem mais poderoso de Danann, nem com o governante que veste as roupas mais célebres e que discursa com uma voz forte e arbitrária, que intimida até os que estão fora do seu alcance. É como ter uma conversa com o meu avô, só que mais emotiva e honesta. Esqueci de usar o pronome de tratamento, mas Dagda não mostra sinais de se importar com a formalidade.
— Vamos tomar chá enquanto jogamos xadrez em uma próxima oportunidade, mocinha.
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