
Capítulo 11 - Apagável e ignorável
A druida me guia pela noite com a eficiência de um morcego. Não precisa enxergar o caminho. Em dado momento, ela usa um galho para me tocar e empurra minha cabeça para baixo.
— Entre — ordena.
— Aonde? — Eu realmente não sei o que ela quer dizer com isso. Não estou vendo nada além do breu.
— Entre. — O tom é mais ríspido e o galho puxando os meus cabelos está começando a me irritar.
Minhas mãos tocam em uma superfície lisa e eu continuo tateando para alcançar a maçaneta. Acho que isso é um transporte, sou um tanto surpreendida pela porta não ranger, pois todas no Condado de Wexford tem o costume de parecerem saídas das peças teatrais de terror e, só pelo fato da porta não ranger, sei que estou indo para longe de casa.
Sou empurrada para subir as escadinhas, empurrada para entrar e empurrada para sentar em qualquer lugar. A druida fecha a porta e bate três vezes em algum vidro das janelas, antes de se acomodar no banco à minha frente. O transporte começa a se locomover com o som de galopadas e as rodas esmagam folhas secas no caminho, indo direto para o desconhecido.
— Não durma. Chegaremos em uma hora.
— Posso saber pelo menos... — Sou calada com a droga do galho indo direto na minha bochecha.
— Uma hora — repete. — Mortos e condenados não fazem perguntas.
Do lado de fora, graças à luz do poste, consigo ver que a carruagem é vermelha, com adornos em suas bordas douradas e a cobertura é escarlate. Se eu roubar um único pedaço de ouro, será capaz de nos alimentar para todo o sempre. A tentação seria maior se eu não estivesse ao lado de uma druida de pele parecida à de um porco espinho. Só quando ela sai da carruagem, percebo como é alta. Não chego nem na altura dos seus seios.
Eu me espelho em cada passo dado pela druida. Passamos pelos dois cavalos marrons que nos trouxeram e não vejo a cara do druida — ou humano, mais provavelmente — que nos conduziu. Não sei onde estou. Não tem plaquinhas azuis para me indicar qual é a rua, como em Wexford. A mata envolta me priva do mundo e a minha única visão é o paredão branco à nossa frente.
Sou guiada até o porão ao lado do mesmo paredão. O corredor abaixo é estreito e iluminado por uma cadeia de lâmpadas colocadas de forma improvisada, com os fios elétricos completamente à mostra, como fazem nas escavações. Parece que estou indo para as minas, mas não me encontro em posição de contrariar ninguém. Já estou condenada e toda minha família também está por tabela, nada do que vier me fará muita diferença.
Ainda assim, confesso que nesse momento me permito sentir um pouco mais de raiva de Brizo. Se ele não tivesse sido idiota e se continuasse a me obedecer, poderíamos ao menos ter tido um bom jantar no Beltane. Eu sigo inconformada com a sua impulsividade, principalmente com o que tive de fazer para libertá-lo. Ambos erramos, porém eu fui a única a pagar caro por isso. Deduzo que serei presa novamente se retornar ao meu condado, afinal eu ainda pretendo fazer Conan engolir todos os seus dentes assim que a minha mão sarar, se é que vai algum dia. Acho que agora entendo quem diz "aproveite o seu dia como se fosse o último". Não sei se o meu último dia é hoje ou apenas o que marca o fim da minha rotina como eu conheço.
— Serei sucinta. — A druida para na porta ao fim do corredor e se volta para mim, ainda com o galho irritante em mãos. — Uma pessoa anônima contratou os seus serviços. Te pagará bem. As únicas condições são que você venha trabalhar nesta residência e mantenha o bico fechado.
Não tenho espaço para uma resposta, a druida se vira de costas para mim e abre a portinha, permitindo-me vislumbrar o interior. Se antes eu achei a Ferraria do Visco um local bem cuidado, não tenho o suficiente para descrever o meu novo ambiente de trabalho. A sala única possui a cor creme nas paredes e os batentes são brancos. Uma pequena elevação no solo tem uma escadinha e o piso é diferente, como se a minha área de trabalho fosse mais rústica e anexada à residência. Parte do chão é feita de pedra, das escadinhas para lá é de porcelanato. Como esperado, a fornalha se encontra no canto mais afastado e possui uma chaminé, e os utensílios necessários estão na prateleira. Tudo parece brilhar a ouro e diamante.
— Você não está permitida a sair por nenhuma das três portas. Se sair, haverá retaliação — alerta a druida. Duas das portas estão na parte chique do cômodo, a outra foi a que entrei. — Eu te buscarei ao fim do expediente e te levarei de volta até Wexford. Você será vendada na carruagem e não terá o direito de retirar a venda até que eu permita.
— Por que tudo isso? — A minha língua não fica presa como deveria. — Eu estou condenada.
Um sorriso perigoso aparece no rosto dela. A druida fica ainda mais intimidante quando demonstra qualquer expressão mais extrema.
— Justamente por isso, menina. Aos olhos da sociedade, você não existe mais — ela desdenha. — Eu estive à procura de alguém ignorável ou apagável. Você pode ser os dois aqui.
Tento falar por cima. Estou confusa, porém a druida antecipa o meu movimento e continua:
— Preste bastante atenção na parte do apagável. Qualquer deslize da sua parte e você vai para o julgamento, como era planejado.
E considere-se sortuda. Muito sortuda. Poderia ter sido qualquer ferreiro na minha situação a ser convocado. Não sou especial e sou substituível. Eu adoraria dizer que pareço calma, mas não consigo sequer transmitir isso.
Ela segue até a prateleira e puxa uma cartolina enrolada feito pergaminho. Ao esticá-la sobre a minha futura mesa de trabalho, vejo o desenho em grafite de um arco e uma flecha.
O meu silêncio continua mesmo após ler algumas das anotações na folha.
— Será paga diariamente para produzir essas duas coisas: um arco e flechas de visco. — A druida volta a se focar em mim, apoiada sobre a madeira. — As monas chegarão na sua residência, ou seja, você e sua família não podem se mudar de lá. Não podem enriquecer socialmente.
Quando lembro do que passei às dez da noite, na véspera do Beltane, de Leanan me colocando nas suas costas para atirar em uma mulher enlouquecida, sinto vontade de vomitar só com a memória. Não posso enriquecer. Não posso sair daquele inferno. Sequer importa o quanto receberei por esse trabalho, meu destino está preso em Wexford ou o julgamento.
Mas estou livre, recordo-me. Estou livre de Conan, que pensa ainda me ter na palma de sua mão asquerosa.
— Como voltarei para casa se todos acham que estou presa? — A dúvida vem imediatamente à minha mente, assim que penso sobre o meu noivo.
— Faça todos acreditarem que você continua presa. Revele-se apenas para os mais confiáveis e à sua família — diz. Ela não parece se importar menos. — Se qualquer denúncia a seu respeito chegar ao meu conhecimento, haverá consequências também.
Não existirei mais aos olhos da sociedade, como bem dito. Não sei dizer como me sinto. Acho que me encontro no que dizem ser o estado catatônico. A druida fala e fala. Eu ouço e ouço. Posso estar ouvindo o maior dos absurdos, mas estou completamente isenta da opção de recusar. É como se parte de mim ainda estivesse naquela cela, preparada para enfrentar o destino a colocar uma aliança no anelar de um desgraçado.
— Eu aceito — digo, sem saber se é uma proposta recusável ou não. Não ligo. Quero falar. — Qual o prazo?
Normalmente qualquer humano aceitaria para impressionar o druida contratante, porém é surpreendente por eu não estar remoendo isso. Eu não tenho a intenção de bajular ninguém, tampouco de me tornar druida, por mais que os admire. Seja amada por um druida ou vitoriosa no Beltane, o braço faltante e o olho cortado do meu pai serão lembranças eternas. Druida ou não, minha alma talvez esteja sempre na miséria humana.
A druida continua sorrindo, é um riso diferente do de antes. Agora somos aliadas, comparsas nessa mentira.
— Tem quatro meses. O arco é fácil, as flechas nem tanto, mas em breve chegará ajuda para você. — Antes que eu espere, a druida estende o braço para mim e oferece um aperto de mãos. — Não espere que seja um nome verdadeiro. Me chame de Balor.
É um pouco desconfortável por ela oferecer justo a mão direita para que eu a cumprimente. Minha mão direita está quebrada, então sou obrigada a passar pela vergonha de esticar a esquerda. Além de ter o aperto de mãos mais estranho da minha vida, ainda sou acometida por várias picadas inesperadas e Balor não segura a risada por nem mais um segundo.
— Tola. — Ela ri com gosto e demoro demais para entender a lição que quis me passar. — Não toque deliberadamente em druidas, menina. Alguns podem esconder mais do que espinhos sobre a pele.
Minha mão está com várias bolinhas vermelhas, por onde gotas finas de sangue escorrem. Eu odeio a sensação imediata que isso me causa, a de ter sido feita de trouxa. Havia me esquecido de que Balor tem pele de porco-espinho e de que, apesar de vê-los todos os dias de longe, eu não sei praticamente nada aprofundado a respeito dos druidas. O que mais tenho contato é o professor Redmond, que ironicamente também nunca nem cumprimentei com um aperto de mãos.
— Irei te dar privacidade agora. — Balor não pestaneja para se afastar de mim e ir em direção a uma das portinhas que leva para a área abastada da residência. Ela é tão alta que precisará abaixar a cabeça para passar.
— Espera. — Dou um passo acidental na sua direção e mostro a minha mão quebrada, sem conseguir movê-la bem. Ainda dói como o inferno. — Não tenho como começar a trabalhar.
— Providenciarei uma solução — diz, simplesmente, e sai.
Leva cinco minutos para a porta ser novamente aberta, não por Balor. Estou esperando sentada em um banco, com as mãos sobre as coxas. A mulher que entra também é uma druida, e posso deduzir isso pelas suas orelhas exageradamente pontudas — não que todos druidas tenham orelhas parecidas, mas nenhum humano é assim. Ela está com roupas de pano branco, além de um véu jogado para trás na cabeça. Carrega um balde raso com uma mão e uma sacola de papel na outra.
Ela arrasta a cadeira ao meu lado para improvisar e, antes de sustentar o balde ali, o enche com água da torneira. Intercalo o foco e a mulher gesticula.
— Para colocar minha mão na água? — pergunto e ela assente. — Mas...
Não tem mas. A druida, apressada, puxa o meu punho e enterra a minha mão quebrada na água. Sufoco um grito e involuntariamente tento levar a minha mão ferida para perto de mim, porém meu punho continua sendo segurado e a dor é excruciante. Ela é mais forte que eu, mais inexpressiva também. Suas pálpebras não demonstram a menor alteração.
Com a mão livre, ela retira ervas da sacola marrom amendoado e as despeja no balde. Não ouso mover um músculo sem que ela mande, apesar de não compreender porque ela está fazendo esse tipo de tratamento, sendo que o ferimento é interno, não superficial. A druida me solta finalmente e agora posiciona as duas mãos sobre a água, deixando-as boiar. Ela me encara como uma águia a todo segundo, sem perder um movimento meu.
De repente, ela se levanta e sai da sala a passos largos. Fecha a porta silenciosamente e eu permaneço estática. Será que vai voltar? Fico receosa, por isso não me movo. A druida não retorna, o mesmo vale para a dor quase insuportável nas costas de minha mão. Assim que tiro minha mão da água, não sinto nada. Está em perfeito estado. Abro, fecho, encosto, aperto. Não dói mais.
— Bom... Acho que agora eu começo. — Estou tão sozinha ultimamente que falar comigo mesma em voz alta não soa tão mal. Leanan Sidhe tem essa mania, já a peguei até brigando consigo própria.
Colocando-me de pé, dou uma boa inspirada e observo o ambiente com mais dedicação. Tem tudo o que eu preciso aqui, até comida. Há uma cesta com maçãs, bananas e goiabas num balcãozinho e suponho que a minha fonte de água seja a torneira. Tem até... um pedaço de bife para mim. Mais de um pedaço. O garfo e a faca estão posicionados ao lado do prato.
Dormir enche barriga. Eu sempre dormi o quanto pude. Sempre economizei cada mordida no pão e tentei encher o resto do vazio com ar ou sono. Só jantávamos bem quando assistimos ao Beltane, o que significa que jantamos dignamente no máximo duas vezes. Toda fome de anos acumulada está prestes a me consumir se eu não ingerir esses pedaços de carne. O cheiro é mais atrativo que qualquer perfume, mais embriagante que qualquer bebida.
Eu me sento no balcão e agarro as fatias com a mão. Mordo como um lobo feroz arrancando os pedaços da presa sofrida. Há tanta necessidade que mal consigo me dar ao luxo de morder e sentir o prazer do gosto suculento. A comida é atraída pelo meu estômago rápido demais, até me fazer engasgar. Ainda acho que estou sonhando. A fome diminui à medida em que a culpa volta a se agravar. Estou me empanturrando e Feal está morto a preço disso.
Sinto um leve tremor e me foco na parede creme à minha frente. Reparo então num pequeno detalhe: há um buraco que me permite ver do outro lado. A fissura parece ter sido feita por um machado ou coisa assim, afinal há armas velhas amontoadas aqui para que eu reutilize o material.
Feliz ou infelizmente, não vejo nada comprometedor pelo buraco. É estreito, certamente se trata de um corredor com a mesma estética luxuosa. Ouço o trinco da porta no momento em que dou as costas e penso ser Balor ou a curandeira de antes, porém não é nenhuma das duas.
— Ah, desculpe. — É um rapaz da minha idade. A maior parte das características únicas de um druida aparece nos seus olhos, e os dele são cristalinos e brilhantes. Ele ainda me esboça um sorriso, e percebo que os seus caninos são avantajados. — Essa sala esteve abandonada por tanto tempo, não imaginei que encontraria alguém por aqui.
Minha garganta está travada, ainda estou engolindo a carne. Se ele está aqui por engano, não sei se devo estabelecer uma conversa ou apenas ignorar. Tenho a sensação de que Balor está sempre à espreita com seus espinhos, isso me obriga a afastar o olhar dele e dou passos recuados, para fingir que preciso voltar ao trabalho.
Observo a cartolina com o projeto desenhado sobre a mesa e me assusto com as mechas de cabelo preto encaracolado se despontando na minha visão. O rapaz faz de propósito para que eu foque nele, e funciona. Não posso ignorá-lo ao notar suas vestimentas compostas por uma farda branca e uma calça preta com uma faixa larga vermelha em cada lateral da perna. Na parte superior há um dólmã vermelho, com uma faixa azul na transversal e detalhes dourados nas mangas e na gola.
— Pode falar comigo — assegura, como quem prevê os meus pensamentos. — Balor não reclamará.
— Certeza? — Me descuido.
Agora não consigo olhar para a folha, só para ele.
— Certeza. — Ele está prestes a continuar falando, contudo, o som de um sino o interrompe. O druida perde a atenção em mim por alguns segundos e retorna, sorrindo com tranquilidade. Sua postura parece a do professor Redmond, é ereta e sábia. — Infelizmente, há compromissos para mim hoje, mas creio que mais tarde posso voltar e te fazer companhia. O que acha? Prometo não atrapalhar.
— Isso não parece certo. — A verdade sai rasgando pela minha garganta. É claro que eu quero ter alguém para jogar conversa fora, isso se eu estivesse aqui com esse propósito. Eu fui tirada de uma prisão e contratada porque não sou mais considerada ativa na sociedade. Só que ainda estou curiosa a respeito dele. — Por que se daria ao trabalho?
— Eu também não tenho com quem conversar. Só isso. — Dá de ombros, não parece realmente triste. — Te vejo mais tarde...?
— Aisling — respondo à questão previsível em sua expressão. Ele assente. — Nos veremos mais vezes então, se isso não causar problemas.
— Dother. — Faz o mesmo. Ele indica que vai se afastar, porém retorna, puxando a manga de seu dólmã. — Ah, e com licença.
As palavras de Balor ressoam em minha mente, pois eu não devo concordar que um druida se aproxime tanto de mim. A pele deles é perigosa. Ainda assim, nada acontece como espero, Dother apenas passa a manga de sua vestimenta caríssima e permite que seja manchada pela sujeira de carne próxima aos meus lábios. Só então percebo que estou sujando a mesa também, pois eu comi sem o uso de garfo e faca.
Em um único dia eu devo ter conversado com mais druidas do que muita gente na vida inteira. Normalmente eu deveria estar surtando feito uma adolescente após o primeiro beijo, porém mal me reconheço. Estou neutra quanto a isso desde o último Beltane. A minha idolatração esvaiu um pouco no momento em que encontrei aquele druida de olhos dourados de felino.
Independente do que me aconteça, eu continuarei sendo uma condenada. Serei morta e descartada no menor erro cometido, e sinceramente tenho receio de o meu primeiro passo aqui já ter sido fatal. Eu consenti Dother, um druida desconhecido, a entrar e me fazer companhia. Talvez eu esteja mais solitária do que tenho confessado.
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