O Mαɳυʂƈɾιƚσ - Cαρ. 8
𝓣𝓾𝓻𝓺𝓾𝓲𝓪, 1963
𝟠 Os evangelhos gnósticos, a seu tempo, tinham sido considerados heréticos pelo Cristianismo, mas no fundo tudo tinha muito a ver com o patriarcado imperante na época, em especial o que se relacionava com Maria Madalena. Como apóstola, ela foi assumindo um papel cada vez maior no seio do movimento cristão nascente, ameaçando a hegemonia dos grupos primitivos patriarcais (consequentemente machistas) que defendiam o primado do apóstolo Pedro. Assim, importava minar os grupos gnósticos e, mais à frente, eliminar seus documentos, para não se ter o risco de uma mulher encabeçando a obra do Cristo.
E no que os apócrifos afetavam esse primado? Se os canônicos apenas insinuavam a importância de Madalena, haja vista ela ter sido a primeira a ver Jesus ressuscitado (e também incumbida por ele próprio de comunicar isso aos apóstolos), os apócrifos ressaltavam abertamente essa importância. Por isso sempre fora necessário destrui-los ou desacreditá-los, mas Nag Hammadi os trouxera à tona, ao menos em parte, quisessem ou não seus contraditores.
Por outro lado, se "Q" era canônico (e portanto, não gnóstico), qual o perigo dele, se não trazia nada além do que já estava na Bíblia?
Paradoxal, mas não se travava do "quê" e sim de "quando". "Q" alterava a ordem de surgimento dos evangelhos e para Javier, em seus devaneios, isso poderia destituir Jesus de sua divindade, abalando o dogma da Santíssima Trindade. Embora conspiratória, a teoria encontrava-se no limite do inverossímil, ou seja, apesar de improvável, era possível. E sempre haveria pessoas interessadas em destruir documentos que colocassem em risco as suas crenças.
— E como termina a história, Omar?
Ele me olhou e devido à longa jornada, demonstrava cansaço:
— Ela não termina, pois ainda nem começou. O fundador da Ordem Agnus, Javier Loyola, está atrás de mim!
— E por quê?
— Porque descobriu que foi enganado.
— Enganado por quem?
— Por Helga.
Helga, então, tornara-se a especialista em trair consortes? Omar explicou:
— Desde 1952, o documento "Q" estava na casa de Javier, em uma vitrine impenetrável.
— O troféu da vitória!
— Exato! Mas Helga acabou por se arrepender e encomendou uma falsificação. Comparsa de Javier, ela sabia como penetrar a inexpugnável 'fortaleza' e assim trocou os documentos. Quando foi embora de Salamanca, no final de 1962, levou consigo o verdadeiro "Q" e Javier jamais desconfiou.
— E onde está o verdadeiro códice?
— É aí que entra sua mãe! E é por isso que fui te procurar.
Estava mais do que surpreso. O que minha mãe teria a ver com tudo aquilo?
— Em janeiro de 1963 eu estava no porto e embarcaríamos para o Brasil, eu e Adriana. Foi então que Helga apareceu...
"— Omar...
"— Helga? O que faz aqui?
"— Vim me despedir. Vou voltar para Berlim. Larguei Javier.
"— Ora, que notícia boa! Mas tenha em mente que você não traiu somente a mim, ou a ele, você sabe, não é? Traiu à humanidade inteira.
"— Eu tive meus motivos.
"— Motivos? Quais?
"Havia angústia em sua voz:
"— Eu precisava de dinheiro, por causa de meu irmão. Ele devia à máfia italiana e estava sendo ameaçado de morte. E aí surgiu Javier, oferecendo-me uma soma irrecusável.
"— E por que nunca me disse?
"— Não queria envolvê-lo nisso, não seria justo, mas saiba, eu nunca amei Javier.
"Animava-me o fato de que não fora por causa de uma paixão, mas por um motivo nobre: salvar a pele do irmão. Ela prosseguiu:
"— Eu sei, eu errei, mas tentarei consertar. Quando me afastar, repare bem em mim e entenderá.
"— Sobre o que está falando?
"— Javier agora só tem uma falsificação. — E deu-me um demorado beijo. — Adeus, Omar!
"— Não vá, venha comigo!
"Sem responder e em silêncio, ela se afastou. Então eu a observei e só aí percebi: quando chegou, carregava uma mala e agora saía sem nenhuma. Voltando o olhar para a minha bagagem no ancoradouro, percebi: Helga deixara ali a mala que trouxera consigo."
— Mas não compreendi, quando foi que Javier descobriu a falsificação?
— Ano passado. Soubemos, porque estávamos de olho no teu 'mecenas', Jerome Gasly. Nós grampeamos os telefones dele.
— Nós, quem?
— Eu e meu filho, Aziz. E descobrimos que Gasly é filiado da Ordem. Já reparou se ele usa uma gargantilha, com um pingente contendo uma ovelha e uma cruz?
— Não, nunca.
— Os membros da Ordem costumam usar esse adereço. É um símbolo tomado emprestado da devoção ao Agnus Dei. Pois bem, foi num desses nossos grampos que soubemos: ano passado, convencido por Gasly a verificar a datação, Javier descobriu a falsificação. Devem ter ido atrás de Helga, mas ela morreu faz cinco anos e assim começaram a me cercar.
E finalmente havíamos chegado ao ponto do porquê da perseguição:
— É por isso então que os dois capangas estão atrás de você?
Naquele instante, ouvimos fortes batidas no portão de ferro:
— Omar! Abra! Não adianta mais fugir.
— Nos acharam! Demoraram a chegar. Devem ter ido primeiro ao hotel.
E suas palavras demonstravam que, sem que eu quisesse, estava mesmo envolvido até o pescoço naquela história.
— O que fazemos, Omar?
— Tenho um plano. Você sai pelos fundos e pula o muro para a casa vizinha. Dá um jeito de pegar um táxi e foge. Procure meu filho, na Turquia. Já eu, vou segurá-los aqui.
— Nem pensar! Não vou deixá-lo sozinho.
Omar possuía uma tranquilidade invejável:
— Vá!, pode ir. Eles não vão me matar, pois tenho a informação que desejam.
— A localização do documento "Q"?
— Não há tempo para explicar. Preciso telefonar.
Fez uma rápida ligação, falando em árabe, idioma que eu não dominava.
— Pronto! Tenho conhecidos na Autoridade Palestina, em breve membros da Polícia Civil estarão aqui. E esses dois são bem amadores, estarei bem. Vá embora, antes que seja tarde.
Um dos homens novamente gritou:
— Omar! Abra ou vamos arrombar. Sabemos que está aí. Você e o arqueólogo.
O aviso ao menos já esclarecia: sabiam realmente de mim!
Com muita relutância — e mesmo considerando que não o matariam, mas poderiam torturar, ainda assim fiz o que ordenou e pulei o muro, caindo no terreno vizinho. Um menino que brincava deu um grito e logo sua mãe apareceu, com uma faca na mão, gritando em árabe. Um cachorro agarrou a barra de minha calça e tive de arrastá-lo até a saída, quando então lhe dei um chute e ele se afastou, ganindo. Saindo para a rua, corri como um louco, sem saber para onde iria, até que cheguei a uma movimentada avenida, onde tomei um táxi.
— Para o hotel Jericó, rápido.
Fechada a conta no hotel e já em posse do carro alugado em Telavive, com todos os meus pertences praticamente atirados, ou no porta-malas ou dentro do habitáculo, segui rapidamente para a estrada e em pouco tempo virava à direita no entroncamento que, em linha reta, levaria a Qumran.
Preocupado, lancei um último e angustiado olhar na direção do Mar Morto, que de mar e morto nada tinha, muito embora a alta concentração de sais no lago, dez vezes maior do que em qualquer oceano da Terra, tornasse inviável a vida orgânica em suas águas, exceto a bacteriana. Em pura audácia, os peixes que se atrevessem a chegar nele pelo Jordão, igualar-se-iam a homens que se atirassem em um mar de lava.
E era assim que eu estava me sentindo, dirigindo agora para Telavive, onde em breve embarcaria para a Turquia. Aquele dia tivera tudo para terminar tranquilo, não fosse Omar surgir feito tempestade, atirando-me ao centro de um furacão, contando-me uma história que eu não sabia dizer onde terminava a realidade e começava a ficção.
Olhava tudo, desconfiava de todos, estava inclusive acelerando mais do que o habitual, certificando-me a toda hora de não estar sendo seguido. E Omar? O que teria acontecido com ele? Teria sido justo deixá-lo à própria sorte, à mercê dos bandidos de Gasly? Ainda que não fosse um assunto que me dissesse respeito, embora de meu total interesse — e a despeito do fato de que eu fora inserido nele sem prévia autorização, ainda assim, quisesse ou não, havia laços quase familiares entre eu e Omar Khaled.
Em meio a esses pensamentos, desviei meu olhar para o painel, cujo relógio indicava pelo menos duas horas até o aeroporto em Telavive. Qumran e Jericó ficavam para trás, e meus pensamentos fixavam-se agora em Istambul, onde um declarado inimigo, antes aliado, me aguardava: Jerome Gasly!
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