O Mαɳυʂƈɾιƚσ - Cαρ. 7
𝟟 "Impressionava-me a forma como Javier conduzia o assunto, passando-me a sensação de que o mesmo já fora objeto de profundas reflexões — e preocupações que sem querer eu atingia no âmago. Se eu não soubesse quem era Javier, diria que, nalguns instantes, o espanhol até passava para o lado do questionador e talvez nisso residisse a estratégia, a empatia de saber colocar-se na posição do adversário, para conhecer exatamente como o combater. Nos dizeres de Sun Tzu, em 'A Arte da Guerra': 'A habilidade de alcançar a vitória mudando e adaptando-se de acordo com o inimigo'. Javier tinha um poder inegável de inebriar e quem sabe até, de ludibriar. Era um homem a temer-se, mas eu continuava sem medir as palavras:
"— Mais uma teoria conspiratória, quero crer...
"Javier quase gargalhou, o que seria algo bem inusitado:
"— Meu caro, compreendo a dificuldade em entender, pois é um assunto que está nas entrelinhas, subliminar. Contundo, tentarei trazê-lo à superfície para você...
'Veja, a princípio nada aconteceria, mas 'Q' já poderia determinar uma espinhosa e indigesta tarefa para a Teologia, tal qual: obrigá-la a rever a cronologia de surgimento dos documentos do Novo Testamento. E já lhe adianto: rever isso afrontaria as conclusões teológicas de um dos maiores pais da Igreja, Santo Agostinho, em seu 'De Consensu Evangelistarum', em que ele declara que os Evangelhos foram escritos na ordem em que estão no cânone. Esta ordem vem de mais longe, da Vulgata Latina de São Jerônimo, quando da organização dos evangelhos e tradução da Bíblia para o latim, a pedido do papa Dâmaso I. Jerônimo tinha duas opções, a latina, cuja ordem era: 'Mateus, João, Lucas e Marcos' e a grega: 'Mateus, Marcos, Lucas e João', adotando, portanto, a segunda opção. A crítica textual hoje tenta mudar isso, invertendo a ordem dos dois primeiros, o que acaba por influir na abordagem da vida de Jesus, enquanto Deus, induzindo a que ele seja considerado apenas um homem.
'Com 'Q' confirmado, o evangelho de Marcos teria que forçosamente passar a ser considerado como o primeiro a ter sido escrito e não mais o de Mateus, pois a partir daí, Marcos e 'Q' seriam as fontes de Mateus. Isso geraria a necessidade de correção na cronologia dos documentos canônicos, em especial aqueles que Paulo teve à sua disposição; e inclusive a data de suas epístolas.
'Parece pouco, mas a teoria das duas fontes sairia bem fortalecida, abrindo campo para inúmeras outras deduções e conjecturas, perigosíssimas, por sinal. Exemplo: quanto mais os evangelhos se afastam dos fatos primitivos, menos eles podem ser considerados tendo como autores os nomes que lhes assinam, o que afeta sua autenticidade. Para se ter uma ideia, a teoria das duas fontes, se comprovada, 'empurraria' o surgimento do primeiro evangelho bíblico para o ano 70 da Era Cristã ou daí para frente, sendo que a Igreja considera o ano 50 ou até antes, como o ponto de partida."
"Eu não queria perder o rumo da questão:
"— Mas o que tudo isso tem a ver com a questão da divindade de Jesus? Pois se entendi bem, Jesus passaria a ser tão somente um homem mortal (e não mais Deus), mas não consigo ver como.
"— É a questão da 'baixa ou alta' Cristologia. A baixa Cristologia trata de Jesus enquanto homem e o principal evangelho a destacar isso é o de Marcos. Já a alta Cristologia cuida de Jesus enquanto Deus, tendo em João e nas cartas paulinas a sua principal base. Ao invertermos Marcos com Mateus, dando primazia a Marcos, cresce em força a nociva ideia da construção de um Jesus 'mítico', o que, em contrapartida, daria ainda mais força ao pretendido Jesus 'histórico'. O Jesus mítico é o que os 'estudiosos' dizem fazer parte da Trindade Santa. Já o Jesus histórico é tão somente aquele que diz ser Jesus apenas um homem. Com 'Q' e Marcos na ponta inicial, dizem, fica evidente o mito criado em torno de Jesus. Com Mateus no início, não.
"— E por quê?
"Javier buscava um claro didatismo, de forma paciente, em total contrassenso com a postura anterior:
"— A construção mítica propõe, erroneamente é claro, que Jesus, de homem excepcional, foi guindado à condição de Deus, com o mito de sua divindade tendo sido elaborado ao longo dos anos. Quando colocamos Marcos no início, fica clara essa construção, porque em Marcos nada há sobre a natividade do mestre: Jesus já aparece adulto e é ressaltado apenas como um homem de grande poder. E com Mateus em segundo, é como se o evangelista acrescentasse um ponto: não só temos Jesus como homem excepcional, mas também de origem excepcional (concebido pelo Espírito Santo)...
'Lucas, por sua vez, o terceiro (e a seu tempo), teria agregado outra excepcionalidade: Jesus, além de ter grande poder e um nascimento excepcional, é também filho de Deus. Por fim, João, o mais tardio, viria a consumar a construção do mito: Jesus é o próprio Deus encarnado. Percebe? Ao longo do tempo, segundo a ardilosa ideia que propagam, o erigir do mito? A teoria diz que Jesus foi guindado de homem excepcional a Deus. Agora, quando se reconduz, corretamente aliás, Mateus ao início, recolocando Marcos no seu devido e segundo posto, a construção mítica já não pode ser aventada, pois Mateus já começa com a concepção excepcional. Portanto, é muito mais fácil identificar uma construção mítica com Marcos em primeiro, do que com Mateus. Interessa-lhes, portanto, aventar a existência do documento 'Q', alterando a ordem dos evangelhos no cânone e assim consolidar a ideia de que houve a criação de um mito, por parte do Cristianismo."
"— Compreendi, mas não seria a Igreja, por outro lado, a ter o interesse de manter Mateus em primeiro, para justificar suas crenças?
"Javier fulminou-me com o olhar e toda a tolerância dele pareceu findar-se ali. Vendo-me em apuros, tentei consertar, mas quase o tiro saiu pela culatra:
"— Isso tudo, contudo, não quer dizer que Jesus seja um personagem inventado...
"— Claro que não! Jesus existiu! Nem os céticos hoje em dia duvidam de sua existência, são poucos os que ainda pensam assim. Não!, o foco dos detratores agora é outro: questionar, com suas heresias, o miraculoso nascimento, a divina filiação e a espiritual natureza. Assim, com 'Q' nas mãos vão incutir essa trágica ideia na mente das pessoas, facilmente.
"Assim que me apartei de Javier — e escondido atrás de uma portentosa coluna, vi o 'grão-mestre da confraria' a sussurrar algo no ouvido de um diácono, que logo imaginei ser: 'Esse Omar é perigoso, precisamos ficar de olho nele."
Em contrapartida a toda aquela conversa, os integrantes da Ordem certamente não ignoravam que Agnus Dei, em latim, significa: "O Cordeiro de Deus", numa clara alusão à passagem do evangelho de João, encontrada no capítulo 1, versículo 29, que diz: "Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo" e que pouco adiante, João Batista comenta: "E eu vi, e tenho testificado, que este é o Filho de Deus", numa clara alusão a Jesus e Deus como pessoas distintas, sendo Jesus subalterno a Deus.
Aliás, apenas uma vez nos evangelhos Jesus se reporta a Deus (e a ele próprio), como sendo "um" (eu e o Pai somos um)¹, mas nas outras inúmeras vezes se refere a si mesmo como o filho e a Deus, como o Pai. E esse "eu e o Pai somos um", talvez não fosse algo literal, mas sim em sentido figurado. Sendo Jesus o porta-voz de Deus, todo porta-voz, quando se expressa, é como se o próprio mandatário falasse, tornando-os um só.
Questionamentos como esse é que faziam Javier Loyola assustar-se. Segundo ele, 'Q' teria o poder de ratificar ideias assim.
Como aparte, ainda existia, embora já estivéssemos no século XXI — e representando uma nociva herança de velhos tempos, um pequeno grupo de fanáticos, liderados por Javier Loyola, integrantes da Ordem Agnus ou Ordem do Cordeiro, membros que ainda se mantinham fiéis aos antigos preceitos fundamentalistas, princípios estes que pautavam a organização desde sua fundação, entranhadas nas atitudes e ações daqueles que, comungando ideias com Javier, integravam-se à seita, gerando discriminação e preconceito, quando não, desmandos e violência. Parecia que espíritos inquisidores do passado haviam-se reunido no além e combinado reencarnar naquelas pessoas, todos de uma só vez, tamanhos eram sua intolerância religiosa e fel.
Doutrinas como o Espiritismo, a Fraternidade Branca, o Mormonismo, as Testemunhas de Jeová, o Neopentecostalismo e sua teologia da prosperidade e mesmo a Renovação Carismática Católica, conforme o país e a localidade, não escapavam de suas perseguições e ataques. Em geral, eram seus alvos preferidos. E o Gnosticismo, com suas ideias hereges a permear muitas dessas crenças, disseminado em quase todas elas, não deixava de ser igualmente indesejado.
Já documentos como "Q" representavam para eles um perigo iminente, uma bomba relógio pronta para explodir, pois qualquer novidade se tornava preconceituosa e arbitrariamente suposta erva daninha a ser eliminada, tivesse o preço que fosse, sem prévia análise ou estudo.
Decorridos cinquenta e um anos de sua fundação, a Ordem ia perdendo força, pela própria força das circunstâncias — e dos tempos. Em 1960, quando da conversa entre Javier e Omar, a 'irmandade' era bem mais influente e poderosa, vindo a atingir seu apogeu na década de 1980, infiltrada em todos os setores da sociedade mundo afora. Os anos foram se passando, os fundamentalistas mais antigos foram morrendo ou ficando doentes, as novas gerações foram arejando a instituição, que se tornou um pouco mais aberta ao diálogo. O tempo promoveu uma 'limpeza', pela própria seleção natural da vida, mas ainda havia guetos de fanáticos e naturalmente muitos desvios de conduta, crimes inomináveis e motivos os mais escusos, além de afiliados que utilizavam a 'confraria' como fachada para a obtenção de lucros financeiros ilícitos, como Jerome Gasly.
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Nota:
¹João, 10,30.
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