O Mαɳυʂƈɾιƚσ - Cαρ. 4
𝟜 "O irmão que quebrara o jarro colocou uma das mãos no ombro de Amir, dizendo-lhe (no exato momento em que a picareta era 'fincada' na lateral de meu corpo):
"— Deixa isso para lá, Amir. Não deve valer nada.
"Amir, porém, pressentiu que o objeto poderia ter valor, tendo em vista a minha reação. Intrigado, e aproveitando o desapontamento dos irmãos, enfiou o embrulho de couro em sua bolsa, cujo tecido era mais vagabundo do que os prováveis pergaminhos de 1800 anos que iria transportar, levando também o jarro partido. Quando voltamos para a aldeia, ele jogou o achado sobre uma mesa, abrindo o pacote. Fiquei admirado! Certamente manuscritos em papiro de um tempo muito antigo, talvez dos primeiros séculos e os irmãos Hilal sequer suspeitavam disso. Amir os manuseava sem qualquer cuidado, alguns se iam rasgando, outros esfarelando, a dor em meu tórax ia encrudescendo, pela visão da destruição, ao mesmo tempo em que a cena do coração arrancado retornava à minha mente, e nesse dilema, entre tomar uma atitude para salvar os papiros ou salvaguardar minha vida, o beduíno ia acabando lentamente com eles, um material possivelmente milenar.
"Eu pusera-me na ponta dos pés e olhava agora sobre o ombro do egípcio, desesperado, querendo agir, enquanto ele virava os fólios sem qualquer zelo. Imergira de tal modo nos documentos, que o mundo à minha volta desapareceu, como se num sonho eu estivesse, daqueles em que desejamos falar e a voz fica presa, retida nas cordas vocais, ungidas pela emoção e letargia: a 'biblioteca de Nag Hammadi'!, um tesouro de valor incalculável para a humanidade, mas que Hilal, por pura ignorância, ia eliminando da face da Terra. Todavia, se eu lhe dissesse sobre o valor, sairia de lá sem a roupa do corpo, numa eventual negociação."
Tive de interromper:
— Tudo isso é realmente verdade?
Seu sorriso foi de orelha a orelha:
— Pois não estou lhe dizendo? Claro que sim!
— E o que o senhor fez? Aquele homem ignorante, destruindo os manuscritos...
— Tive de tomar uma atitude. Segurei seu braço, impedindo que ele continuasse a virar os fólios...
"— Não faça isso! — gritei e minha mão pousou firme sobre o antebraço esquerdo dele, segurando-o. O beduíno então levou a destra a uma faca largada na mesa e num rápido giro de corpo, imobilizou-me, colocando o objeto cortante em meu pescoço:
"— Quer morrer, é?
"— Calma, Amir. Solte-me, eu explico.
"Hilal empurrou-me para longe, mesmo assim em guarda:
"— Diga!
"Eu devia estar mais alvo que a kandura¹ que ele usava:
"— Precisa ter cuidado. Esses papiros são frágeis, são muito antigos. Se você continuar assim, vai destruir tudo.
"— Então são valiosos? Hum... Bem que desconfiei... Acho que você vai ter que deixar suas calças aqui, se quiser levar um deles...
"Na manhã seguinte, levantei-me cedo, antes do próprio Amir. O dia anterior não havia sido nada fácil, em todos os sentidos, e o beduíno ainda dormia. Ouvira-o levantar à noite e do lado externo da casa, 'limpar o estômago'. A exótica 'refeição' canibalesca não passara impune. Notei, porém, que os manuscritos não estavam mais sobre a mesa. Teriam sido furtados? Algum dos outros irmãos, alertado sobre o valor dos documentos? Receoso de um roubo, porém, ele próprio os escondera de mim, sob seu colchão de palha.
"Assim que levantou, fomos para a casa de sua mãe. Amir estava visivelmente mal e dificilmente engoliria qualquer coisa naquele dia. Recusou o café, buscando um local para descansar, deixando os manuscritos sobre um baú.
"E nesse ínterim, quando desviei o olhar para a matriarca, ela tomava para si os papiros, já levando um deles ao fogo. Quase que meu coração saiu pela boca e pulou dentro da panela de água fervendo:
"— Não! — E corri em sua direção. — A senhora está louca? — Tomei-lhe das mãos o códice, sacudindo-o contra o corpo.
"A mulher idosa e de cabelos grisalhos, tentando afastar a tóxica fumaça de seus olhos, fruto da incineração dos documentos, proferiu:
"— Temos de queimar esses rolos. Eles têm maldições... E estou sem lenha para o almoço.
"Você poderá não acreditar, mas salvei do fogo o evangelho de Filipe, justamente aquele que daria origem à lenda da 'Linhagem Sagrada do Santo Graal'; e aí jamais saberíamos dos beijos gnósticos de Jesus em Madalena."
Em 1946, os irmãos al-Hilal entregaram os códices a um sacerdote copta no Cairo, cujo cunhado vendeu um deles ao Museu Copta, e só então se verificou a importância dos documentos. A essa altura, porém, a maioria deles já havia sido repassada a um antiquário cipriota, acabando retidos no Departamento de Antiguidades. E similar a Qumran, muito se perdeu pelo incorreto manuseio, inclusive com um dos manuscritos 'atravessando' o mar Mediterrâneo pelas mãos de um antiquário belga, que tentou vendê-lo em Nova Iorque, depois em Paris, sem sucesso, até que o "Instituto Jung", em Zurique, interessou-se e o comprou.
Após a guerra de Suez, em 1956, os códices foram finalmente reunidos, excetuando-se o "Codex Jung", repatriado ao Egito tão somente em 1975, depois de muita briga.
— Treze códices em papiro, embrulhados em couro. Cinquenta e dois livros, escritos em copta, e somente muito tempo depois eu soube: as descobertas em Nag Hammadi nada tinham a ver com o Antigo Testamento, mas sim com o Novo e isso movimentou ainda mais o mercado, pois se dizia tratar em sua maioria de 'evangelhos'...
"— Apócrifos, Omar. É assim que os estão chamando — informou-me um filologista.
"— Apócrifos?
"— Sim, não inspirados por Deus ou 'não canônicos'.²
"— Não canônicos? Por quê?
"— Porque não pertencem ao cânon da Igreja, não estão na Bíblia.
"Quando se iniciou a 'perseguição aos apócrifos', devido a uma carta festiva de Atanásio de Alexandria, monges coptas teriam escondido o que foi possível em jarros e cavernas."
Eu queria manter o foco:
— E o que o senhor, afinal, comprou do beduíno?
Omar continuou, com ar circunspecto:
— Foi algo incrível, como tudo nessa história! E a sorte virou para o meu lado...
"Finalmente livre daquele 'bendito' beduíno, saindo de lá com um mísero códice..."
— Só um?
— Só! O miserável resolveu não vender tudo ao primeiro que aparecesse, pois imaginava que haveria melhores negócios à frente, mas para não me deixar na mão, me vendeu um. Tratava-se curiosamente do códice Jung.
— O Codex Jung?
— Exatamente.
O referido códice incluía, dentre outros livros, um tratado sobre a ressurreição, algo muito curioso, pois o texto defendia o contrário da perspectiva gnóstica conhecida por Docetismo, para a qual Jesus não teria tido um corpo de carne e sim um corpo etéreo. O texto rebatia a ideia e dizia que a ressurreição não era uma metáfora e sim um acontecimento real, sendo esse o exato posicionamento que prevaleceria no Cristianismo mais à frente.
— Pois bem! — Omar prosseguiu —, voltei ao barco, zarpando com destino à Grécia, depois Istambul. Nag Hammadi não tinha sido lá muito proveitosa, mas eu ia com boas mercadorias, obtidas no Cairo e região, sendo que em Atenas eu esperava ter mais sorte. E nada de corações na brasa.
"Quando em pleno Mediterrâneo, uma tempestade nos alcançou, o casco de carvalho rangia e Poseidon chicoteava o navio, como a desejar ver a embarcação no fundo do mar..."
— Sempre achei que Poseidon cuidasse apenas dos oceanos...
Omar ficou pensativo:
— Eis aí uma boa questão, não sei, o que sei é que quase afundamos. A tripulação no convés agarrava-se ao que podia, já eu, me encolhia num canto, enquanto Elif se amarrara a um balaústre, o que julguei não ser boa ideia. E a cada onda a esperança de um porto seguro se esvaía, restando apenas a fé na bravura dos marinheiros e na misericórdia dos deuses.
"Enfim, tudo se acalmou. Estávamos vivos e ainda flutuando nas águas agora tranquilas, com o capitão contabilizando os prejuízos. Fomos ao depósito para conferir nossas mercadorias e por lá estava uma bagunça só.
"— Elif, onde está a caixa de Nag Hammadi?
"— Está ali, patrão.
"— Mas há duas caixas iguais. De quem é a outra caixa?
"— Não sei. Devem ter se misturado durante a tempestade.
"Por sorteio, decidimos que seria a da esquerda. Com receio de abrirmos a embalagem errada, criando confusão com o dono da outra caixa, tentamos a sorte. Com isso, o códice Jung foi parar na mão de um antiquário belga..."
— Era a caixa da direita, então...
— Sem dúvida.
— E o que havia nela?
— O cântaro dos códices, encontrado na caverna, colado com resina de goma arábica!
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Notas:
¹Kandura: Túnica da vestimenta árabe.
² No ano de 367 d. C., em sua 39ª "Carta Pascoal", o bispo Atanásio de Alexandria rejeitou as 'heresias gnósticas', bem como os apócrifos, afirmando: "São quatro os Evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e João".
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