O Mαɳυʂƈɾιƚσ - Cαρ. 3
𝓝𝓪𝓰 𝓗𝓪𝓶𝓶𝓪𝓭𝓲, 1945
𝟛 — Eu respirava ofegante, observando em desespero Amir Hilal e seus irmãos matarem um homem a golpes de picareta, enquanto seguíamos para a falésia Jabal al-Tarif, proeminente paredão rochoso das margens do Nilo. A mãe — e viúva, orientara os filhos a manterem as picaretas afiadas de sobreaviso, caso topassem com o infeliz, assassino de seu marido. Depois do crime, arrancaram seu coração, depositando-o ainda quente sobre uma rocha. A divisão foi feita em partes iguais, sob o fio de uma navalha.
"— Acenda uma fogueira, Sr. Omar.
"— Para quê?
"— Não acha que vamos comer o coração do desgraçado cru, não é?
"A ideia imediatamente me provocou náuseas, mas acabei por fazer o que Amir pedira, melhor, ordenara. Quem seria eu para questionar um homem capaz de tamanha brutalidade? Atabalhoado, juntei alguns gravetos e os arrumei para queimar. O sol estava forte, não ventava, o fogo logo crepitava e o bafo quente resfolegava de encontro ao meu rosto. Sem maiores cerimônias, cada qual dos irmãos espetou um pedaço da 'iguaria' na ponta de sua picareta, assando-o nas chamas, devorando-a logo em seguida.
"— Que foi, Omar? Na tua terra não apreciam coração?
"E gargalhou feito uma hiena. Após o macabro ato de canibalismo, enterraram o homem ali mesmo, ao que Amir proferiu:
"— Em nome de Alá, o clã al-Hilal está vingado. E que o Eterno o lance no mármore do inferno.
"Seguimos em frente, como se nada tivesse acontecido, mas sem que eu jamais viesse a processar mentalmente a cena... Até hoje quase vomito, só de pensar..."
— E o que o senhor estava fazendo lá?
— Eu tinha desembarcado na cidade após uma longa e árdua jornada de trem e barco. Ia, como sempre, na esperança de encontrar artefatos lendários e guiava-me pela intuição, sempre aguçada — aliada a muita sorte, é bem verdade. Assim que desembarquei, um homem soturno, alto e magro, barba preta, olhos penetrantes, avizinhou-se de mim, muito provavelmente já imaginando o que um tipo como eu tinha ido fazer ali.
"Ele era um intermediador e achegou-se rápido, quase sussurrando, falando sobre o beduíno Amir, pertencente ao clã Hilal. Em troca de razoável quantia, a informação foi muito boa: dizia-se que o beduíno e os irmãos tinham encontrado utensílios antigos nas falésias do extenso e caudaloso Nilo, enquanto procuravam o sabakh, um tipo de fertilizante usado em plantações por lavradores em al-Qasr."
— E o senhor não suspeitou de um golpe?
— Com certeza, sou gato escaldado, mas de qualquer modo o homem já tinha me arrancado alguns trocados e qualquer informação, naquelas terras, só era mesmo obtida mediante ao que eu chamava de 'combustível'. Tive que 'queimar' alguma 'lenha' já de largada, mas mesmo assim o avisei: "Se a informação for falsa, eu te acho até no inferno e te arranco o fígado"...
— Falava sério?
Ele riu:
— Aprecio mais fígado do que de coração.
— Mas e aí?
— Toda cautela era pouca, falsificações havia de toda ordem, vendidas como relíquias nos mercados clandestinos. Fiquei ansioso, mesmo assim, pois era justamente para isso que eu estava no Egito, em busca de suvenires raros. O que não esperava é ter que sair de lá com o ônus da cumplicidade de um assassinato, cometido a sangue frio e com requintes de crueldade. Como negociante, porém, precisava estar alheio a tudo isso e tirar necessariamente algum proveito pecuniário de todo aquele martírio..."
— E tirou?
Ele fez suspense:
— Logo você saberá!, mas posso adiantar, minha descoberta não somente mexeu com um grupo de beduínos canibais, não!, eu acabaria por mexer com forças ocultas, aquelas que ficam nas sombras, arraigadas a seculares dogmas, dispostas a tudo para atingirem seus objetivos espúrios.
Omar Khaled emprestava à narrativa um ar grave, de choque vital entre extremos. Seu tom ia além de uma simples entonação cênica, havia ali algo de realmente verdadeiro.
— E de quem o senhor está falando?
— De Javier Loyola, fundador da Ordem Agnus.
A Ordem Agnus surgira na Espanha em 1950, cidade de Salamanca. Ao longo do tempo, tornara-se extremamente conservadora e reacionária, quase uma inquisidora dos tempos modernos. Aparentemente católica, no fundo cristã fundamentalista, capaz das maiores barbaridades.
— Segundo sei, em 1945 a Ordem ainda não existia.
— Sim, mas foi justamente pelo que descobri em Nag Hammadi que ela passou a existir. Aquilo tudo foi a gestação desse mal.
— Ora, que história é essa?
— Primeiro deixa eu voltar aos Hilal... — Omar alisou a barba. — Na época eu tinha só 25 anos e se a história dos artefatos fosse mentira do homem no cais, voltaria lá e lhe daria uma bela surra, sem pensar duas vezes. Eu era forte e viril, puro músculo, fruto de muito peso que carregava, para cima e para baixo...
"Segui a indicação do taciturno homem, esgueirando-me primeiro por entre mercadores numa rua larga, depois entrando à direita numa viela estreita, até atingir um pequeno descampado, avistando mais à frente um grupo de moradias muito simples. Ali encontrei o beduíno.
"Em meu primeiro contato com Amir, em sua casa erguida com taipa e adornada com tapetes coloridos e talismãs pendurados na porta, um silêncio constrangedor pairou no ar. De maneira cautelosa nos estudamos pelo olhar. Eu falava árabe egípcio até bem, por ter vivido muito tempo no Cairo, embora nunca tivesse ido a Nag Hammadi, mas minha procedência turca, pelo sotaque, era logo percebida. Amir também conhecia o copta, mas eu não dominava esse antigo idioma.
"Assim, com postura respeitosa e palavras cuidadosamente escolhidas, expressei meu interesse no seu achado e propus um acordo: em troca, eu lhe daria uma quantia em dinheiro que ele jamais sonharia ter."
— Andava com dinheiro na bolsa? Não tinha medo de salteadores?
— O dinheiro não ficava comigo, estava seguro no navio com um ajudante de confiança, meu 'segurança', Elif, que fazia a guarda dos recursos armado até os dentes. Permanecera no cais, acorrentado ao baú.
"Bem... Para meu azar, infelizmente o integrante do clã Hilal já tinha vendido os utensílios, lamentando por eu ter perdido meu precioso tempo e dinheiro, dizendo que não havia sido tanta coisa assim, uma tigela e um pequeno cântaro."
"— Amanhã vou voltar nas falésias, quer ir junto? Quem sabe não encontramos mais alguma coisa.
"Ofereceu-me um canto para me ajeitar e passar a noite. Fazia frio e ele ainda arrumou algumas peles de carneiro, com as quais me cobri. Já estava mesmo acostumado a dormir em qualquer lugar e o chão forrado com palha foi mais uma vez minha companhia naquela noite fria.
"No dia seguinte, saímos cedo, na direção do paredão rochoso do Nilo. No caminho, ele apresentou-me à sua mãe e seus irmãos. Ela falou algo em copta, que não entendi bem, mas devia ser: 'Afiaram as picaretas'? E foi no caminho para o Jabal al-Tarif que topamos com aquele homem, que inutilmente tentou esconder o rosto atrás do guthra¹, logo recebendo uma saraivada de picaretas.
"Digerido o coração, enterrado o assassino do patriarca do clã, eles caminhavam como se tivessem acabado de comer um carneiro (e eu quase regurgitando o desjejum). Quando finalmente chegamos ao paredão, subimos o escarpado nas rochas e adentramos uma gruta. Ansiava-se por qualquer sombra que fosse, após a longa caminhada sob o sol lacerante. Em ritmo lento, iniciaram a escavação. Metiam as picaretas nas bordas rochosas e aos poucos foram acelerando. Cavavam em busca do fertilizante, mas com esperanças de uma nova relíquia. Amir Hilal disse-me que tinha sido naquele local que encontrara os artefatos, isso três dias atrás.
"Na árdua batalha contra a pedra, a macia rocha calcária cedia aos golpes das picaretas. Manchadas de sangue, resquícios do crime, as marcas do assassínio aos poucos desapareciam pelo branco da calcita que as recobria. A quantidade de fertilizante ali encontrada seria a promessa de fartas colheitas, verdadeiros oásis em meio à aridez. O sabakh, uma relíquia mais do que preciosa, contudo, seria trocado sem qualquer escrúpulo por qualquer objeto em ouro.
"— Não sejam tolos. — Amir sentou-se para descansar. — Isso aqui eram túmulos de pobres camponeses. Se quiserem tesouros de verdade, arrisquem-se a entrar nas pirâmides... se forem homens suficiente para isso, é claro. — E sua gargalhada de hiena ecoava dentro e fora da caverna.
"Continuaram a cavar, até que a picareta de um deles bateu em algo duro, mas cujo som parecia oco. Animados, juntaram-se três no mesmo ponto e logo, para espanto geral, vimos que o som provinha do crânio de uma ossada humana."
Fazendo um aparte, o local já servia a sepulcros desde a VI Dinastia egípcia, há quase 4300 anos, essa a razão do esqueleto. Omar prosseguiu:
— Afastado o crânio, escavaram um pouco mais, até que surgiu um grande jarro de cerâmica, sessenta centímetros de altura por trinta de largura. Uma tigela tampava a boca, selada com betume. Exultei:
"— Meu Deus, outro cântaro!
"— Vamos abrir! — sugeriu um dos irmãos.
"Amir estava receoso:
"— Não! E se liberar algum gênio ou espírito, preso aí dentro?
"Outro dos Hilal rechaçou:
"— Deixa de bobagem, Amir.
"— É — falou um terceiro —, precisamos saber se não vai ser um vaso recheado, parando na mão de um desses antiquários... — E olhou-me, alisando o cabo de sua picareta, talvez doido para fincá-la na minha cabeça.
"Inadvertidamente — e sem prévio aviso, o primeiro dos interessados em um tesouro sentou a picareta no jarro, que se partiu. Um pó colorido subiu no ar, fazendo-os recuar. Amir Hilal gritou:
"— Eu não falei? É um gênio!
"Mas o pó dourado logo se assentou, colorindo o fino branco do calcário e o jarro ali permaneceu, inerte. Avancei sobre ele, rindo do temor, afinal, o que seria um espírito perto da lasca de coração humano engolido sem qualquer escrúpulo por aquele sujeito, não fazia nem duas horas? Minhas ávidas mãos afastaram as partes quebradas do jarro.
"'Papiros'!, pensei, quase tocando o invólucro dentro do vaso partido. Nisso, Amir encostou a picareta na lateral do meu corpo, roçando minhas costelas:
"— Tss... Tss... Tss... Calma lá, isso aí não é teu. Seja o que for, é dos Hilal, mas podemos negociar depois...
"Tomei um susto, caindo sentado. Minhas retinas alertavam-me para ter cuidado redobrado, vivas eram as marcas da cena daquele homem brutalmente assassinado, sepultado sob as areias desérticas, agora sem um coração a pulsar no peito.
"Na volta das falésias, ao passo que nos afastávamos da cena do crime, entre as nuvens eu vislumbrava uma legião de abutres aproximando-se. De pelagem branca e asas manchadas de preto, pousaram logo depois, atrás de carniça fresca sobre a cova rasa. Tinha que tomar cuidado, para não ter o mesmo destino.
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Nota:
¹Guthra: Lenço de cabeça da vestimenta árabe.
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