O Mαɳυʂƈɾιƚσ - Cαρ. 1
𝓠𝓾𝓶𝓻𝓪𝓷, 2001
𝟙 O sol escaldante castigava-me, enquanto delicadamente com um pincel varria a poeira de sobre fragmentos de cerâmica, presos ao ressequido solo de Qumran. Além da pá e da picareta, ferramentas mais do que costumeiras, o espectro do moderno georradar revelara, a meio metro de profundidade, traços de utensílios e restos de pergaminho, que eu ansiava tivessem sido produzidos por hebreus há mais de 2000 anos.
Atingi-os com exultação e a cada toque metálico da colher, aproximava-me de evidências da grande descoberta de 1947, quando então um jovem beduíno árabe, a procurar uma ovelha desgarrada um quilômetro e meio distante do mar, jogou uma pedra numa caverna, cujo baque retornou um estranho som. Amedrontado, buscou ajuda e adentrado o local, descobriram dois longos vasos de argila (ou cântaros), contendo pergaminhos. A princípio, sem dar importância ao achado — e até que a notícia da descoberta chegasse à comunidade científica, em suas mãos 'desavisadas' documentos viraram sapatos e bolsas; ou se esfacelaram, ao serem manuseados sem as devidas técnicas; e outros tantos foram vendidos clandestinamente, a preço de bananas.
Percebida a importância, a "École Biblique et Archéologique Française", de Jerusalém, a partir daquela data e até 1956, empreendera várias pesquisas na região e arredores, acabando por revelar ao mundo uma das maiores conquistas arqueológicas do século XX: 900 escritos datando em até 250 anos antes de Cristo, sendo 210 deles relativos às escrituras hebraicas (no mundo ocidental, o "Velho Testamento"). Dentre os mais importantes, um texto com o livro completo do profeta Isaías, em sua língua original, o hebraico, confeccionado cem anos antes da Era Cristã, sem dúvida um dos mais importantes achados da arqueologia bíblica — e para o qual eu sempre especulava: não teria sido essa a cópia usada por Jesus na sinagoga, aos doze anos, quando a lera para os sacerdotes? Quem sabe...¹
Satisfeito com minha própria descoberta, infinitamente mais humilde, é verdade, subi a escada de madeira a ranger sob os pés, atingindo um platô. A luz solar atrapalhava minha visão e até então não tinha observado um homem trajando alva túnica, a proteger sua cabeça um lenço branco preso pelo igal². Estendeu-me a mão para que eu pudesse vencer o último lance de escada, dirigindo-se a mim em inglês:
— Mr. Casqueira?
— Sim, eu mesmo. Em que posso ajudá-lo?
— Informaram-me em Jericó que poderia encontrá-lo aqui. É um grande prazer conhecê-lo. Sou amigo de sua família, de longa data. Omar Khaled, a seu dispor.
Estendi novamente minha mão, dessa feita para cumprimentá-lo, enquanto caminhava em direção a uma tenda. Ele prosseguiu:
— Fui professor de Adriana Casqueira, sua mãe, quando ela esteve na Turquia, em 1962, estudando Conservação e Restauro.
— Minha mãe?
— Sim. Além disso, estive no Brasil. Acompanhei-a na viagem de volta e fiquei por lá alguns anos, estudando as obras do mestre Aleijadinho. Infelizmente ocorreu toda aquela tragédia. Você nem imagina, mas eu te vi nascer.
— Ora, ora, que coisa inusitada! — E eu me lembrava mesmo de tia Laura (minha tia e mãe de criação) a mencionar um turco que estivera no Brasil, passando uma temporada com nossa família. Olhei bem para ele, barba branca, um senhor de seus 75 anos, de semblante ainda jovial.
Mostrou-se compadecido:
— Sinto muito por seus pais, Sr. Domingos.
— É a vida, acontece.
Adentrei a tenda:
— Mas pode aguardar um instante, por favor? Preciso ensacar esses pedaços de cerâmica e pergaminho. É bem provável que sejam da época dos beduínos de 47.
— Acredita mesmo nisso?
— Há uma grande chance.
E nisso lhe expliquei que quando arqueólogos rastrearam passo a passo o caminho dos pergaminhos do Mar Morto, contrabandeados em Belém, conseguindo dois anos depois chegar ao local da descoberta, não havia mais jarros intactos ou rolos de texto nas cavernas, até porque, nesse ínterim, outros já haviam revisitado aqueles sítios, ainda assim, fragmentos de manuscritos, restos de vasos e outros utensílios permaneciam como evidências não só da notável descoberta, mas daquilo próprio que elas representavam historicamente.
— Conheço toda a história — apressou-se em dizer, fazendo um giro com a cabeça, a fim de observar as áridas cavernas e ruínas do Khirbet Qumran. — Há muitos anos eu próprio estava aqui quando aqueles jovens encontraram os jarros. E sabidamente era mesmo hábito dos hebreus guardarem em cântaros de barro, rolos de textos importantes.
Logo desconfiei da conversa, pois também era habitual, desde remotos tempos, surgirem do nada homens com histórias fantásticas, tencionando depois venderem algum tipo de 'relíquia'.
— Verdade? Estava aqui?
— Sim, estava, mas não participei da ação, apenas a acompanhei. Sabe, sempre fui chamado por meus filhos de o "Allan Quartermain da Turquia", conhece o personagem?
— Do livro "As Minas do Rei Salomão"?
— Ele mesmo.
Omar Khaled então revelou ter participado de histórias incríveis, de jornadas épicas, com incursões pelo Cairo e Nova Delhi, além de Hong Kong, sempre à cata de souvenires raros e exóticos, mas havia uma em especial, ligada a Nag Hammadi, alto Egito.
— Nag Hammadi? — interessei-me. — Conte-me mais.
O turco estava em pé, fora da tenda:
— Terei todo o prazer de lhe contar e digo, após saber o que tenho a dizer, considerará esse seu achado de hoje como algo sem importância.
Sorri, ironicamente:
— A mim, não houve descoberta mais importante do que o rolo completo de Isaías, da caverna 1, aqui mesmo, do Khirbet Qumran, mas se está falando em Nag Hammadi, tem a ver com a biblioteca copta?
— Quem sabe...
E nisso mostrou-se preocupado:
— Melhor não falarmos aqui. Está vendo aqueles dois sujeitos?
Quase fiz menção de apontar, ao que ele segurou meu braço:
— Cuidado! Seja discreto!
Os homens tinham acabado de chegar e estavam a uns quarenta metros de nós, trajando calça e camisa beje, chapéu largo na cabeça.
— Aqueles dois, lá em cima?
— Eles mesmo. Pensei que os tinha despistado, estão na minha cola desde cedo.
— Por quê?
— Não posso dizer agora. Já terminou por hoje?
Aquele era meu último dia em Qumran e meus principais equipamentos já estavam no saguão do hotel, em Jericó, para serem despachados, estando eu ali apenas finalizando detalhes da descoberta.
— Sim.
— Sei onde está hospedado, foi lá que me informaram sua localização. Está de carro?
— Não. Há um ônibus fretado que parte em meia hora.
— Estou voltando para Jericó, dou-lhe uma carona. Vamos?
Pensei se não seria temerário aceitar, mas a curiosidade sobre o que ele tinha a dizer era mais forte, assim, coloquei meu achado dentro da mochila, jogando-a sobre as costas — e mais alguns apetrechos numa sacola, e apressadamente saímos, com eu carregando uma pá e uma picareta. Atingido o carro na estrada, coloquei as ferramentas no porta-malas e partimos. Em vão procurei os homens que supostamente o seguiam, pareciam ter evaporado.
Apreensivo e afogueado pelo clima seco e sufocante, acomodei-me no banco do passageiro. O calor era intenso e o vento a adentrar a janela e a colidir contra meu rosto de nada adiantava. Trafegávamos pela Road 90, cujo nome "Al Bahr al Mayet", transliterado do árabe, quer dizer: "Mar Morto".
O velocímetro indicava 120 km/h, bem superior à máxima permitida para a rodovia. Diante de uma ultrapassagem apertada, senti um grande alívio quando o turco retornou à sua faixa de rolagem.
— Ei — ousei certa intimidade. — Não espere que Jesus venha nos ressuscitar... Por que a pressa?
— É esse maldito cheiro, não vejo a hora de ficar livre disso.
Na região, os minerais e a rápida evaporação geravam uma névoa com odor de enxofre, que os mais crédulos associavam à destruição de Sodoma e Gomorra e não à toa, o mineral escolhido para transformar a mulher de Ló em estátua tivesse sido o sal, tamanha era sua abundância naquelas paragens.
Durante o trajeto, enquanto eu contemplava as imensas planícies e a vegetação rastejante, extensíveis do desértico sul ao semiárido norte, o silêncio fazia-se sepulcral, até que ele disse:
— Não olhe para trás, mas estamos sendo seguidos.
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Notas:
¹Lucas 4,16-21 / Isaías 61,1-2.
²Igal: Corda de lã, usada em duas voltas como auréola para prender o lenço (guthra) sobre a touca (gafirah) na cabeça; acessório também utilizado por beduínos para amarrarem as pernas dos camelos.
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