N
𝓝ora era uma pessoa forte, mas voltar àquele dia não lhe era nem um pouco confortável:
— Eu tinha feito uma palestra e este senhor me abordou ao final.
"Estatura mediana, calvície pronunciada, olhos negros e invasivos, pele facial invadida por acnes, apoiado sobre uma bengala entalhada com uma cabeça de leão. Esperou que o auditório ficasse quase vazio:
"— Sra. Gômer?
"— Pois não?
"— Meu nome é Javier Loyola. Sou o grão-mestre da Ordem Agnus.
"Para encurtar caminhos, ele fizera questão de logo se posicionar, pois naturalmente que eu já saberia de antemão tudo o que ele pensava.
"— Ordem Agnus? Sei bem o que é.
"— O que é, não! Quem somos!
"— Refiro-me à 'confraria', não aos integrantes. Sei bem o que ela é e o que busca representar.
"— Então sabe que primamos pela pureza do Cristianismo.
"— O Cristianismo é muito amplo. De que pureza o senhor fala?
"Ele se julgava tão autossuficiente, que nem considerou o que eu perguntei:
"— A senhora dizia sobre o gnosticismo...
"— Sim...
"— O gnosticismo engloba mesmo muitas seitas religiosas e filosóficas, antes e depois de Cristo, todas heréticas, evidentemente, e há séculos condenadas pela Igreja. A maior dessas heresias, a senhora relembrou hoje: dizer que o mundo teria sido criado por um deus menor, chamado demiurgo, que seria o próprio Javé.
"Corrigi:
"— Não exatamente o demiurgo, de Platão. Javé, segundo os gnósticos, era um deus bélico e zeloso; cioso e irascível, portanto, imperfeito. O verdadeiro Deus Criador estaria acima dele.
"— A senhora se dá conta do absurdo que está dizendo?
"— Olha, dou-me conta daquilo que precisamos saber, para tirarmos nossas próprias conclusões. A mim me parece algo muito sensato. Javé, pela Bíblia, realmente é bélico e cioso de seu povo. Não me parece ter as mesmas características do pai amantíssimo e bondoso, apresentado por Jesus.
"As faces dele estavam vermelhas tal qual um pimentão:
"— A senhora não sabe o que diz! Não entende o básico. Estudou Teologia?
"— Sou graduada e tenho doutorado em outras especialidades, mas eu lhe pergunto, qual faculdade Agostinho de Hipona cursou?
"Javier gargalhou:
"— Não me faça rir, quer comparar os dias de hoje com os do passado? Santo Agostinho teve uma educação clássica, estudou retórica e era professor. Ordenou-se bispo quando se converteu. Não havia esse tipo de referência na época dele. Ademais, ele é a própria referência. Seria o mesmo que perguntar qual faculdade de filosofia Aristóteles cursou. Faça-me o favor!
"— Bem, é só isso?
"Ele empostou a voz, dando meio passo à frente, aproximando-se mais de mim, nitidamente querendo me intimidar:
"— Essa história de Maria Madalena... O tal evangelho de Filipe... A senhora tentou amenizar, dizendo que o beijo de Jesus em sua boca foi apenas um gesto gnóstico, pois através do beijo eles entendiam transferir conhecimento.
"— Correto, falei sim. A gnose.
"— Pois bem, tentam consertar um erro com outro. Jesus então não teria tido relações amorosas com ela, com o que a senhora parece concordar, mas aí vem insinuar que Jesus era gnóstico? Que foi enviado pelo Criador para nos passar conhecimento? E que a forma era beijando as pessoas na boca? Ficou a emenda, pior que o soneto.
"— Meu senhor, tudo isso é um simbolismo e não são ideias minhas. Apenas eu, de minha parte, também transfiro conhecimento. Os gnósticos simplesmente acreditavam que as almas dos homens teriam vivido em um universo de luz e paz, mas foram aprisionadas por Javé em corpos humanos, após uma rebelião, o que obrigou o Criador a enviar ao mundo um mensageiro, um eon: Jesus! É um nítido paralelo com a doutrina dos anjos decaídos, inclusive. Eles entendiam, portanto, que a salvação das almas só se daria com a posse de um conhecimento espiritual, a gnose; e que Jesus seria o portador desse conhecimento.
"Ele estava cada vez mais vermelho:
"— Deturpações. Com qual autoridade a senhora se arvora para perpetuar essas mentiras?
"— Com o mesmo direito que o senhor se investe de dizer que são mentiras. Sugiro que faça uma palestra e apresente suas considerações, o senhor mesmo, que tal?
"— Além de tudo, é desaforada.
"— E o senhor também, mas eu estava quieta no meu canto. Olha, não estou gostando do rumo que essa conversa está tomando. O espaço aqui não é público, peço a gentileza de se retirar, senão vou chamar a segurança."
Bruno estava visivelmente irritado:
— Que sujeito intragável! E perigoso! Admiro sua coragem.
— Pois é, Bruno, mas confesso que tive uma pontinha de medo. Não sou tão corajosa assim.
— Eu teria corrido, se topasse com esse padre. Ele é padre?
— Não, não é, mas inquisidor, com certeza. E muito estudado, não se engane quanto à formação dele, que não é pouca. Todavia, formação não garante sabedoria.
Bruno percebeu que a conversa já estava no fim e que não havia sentido pedir mais um café. Buscou, no entanto, esticar o assunto:
— O quarto evangelho da Bíblia, o de João, não entra na análise sinótica, por quê?
— Ah, já estava esperando essa pergunta. É que o evangelho de João quase não tem a ver com os demais, portanto, não é considerado sinótico. Na visão de conjunto, ele se mostrou bem diferente.
E Nora não resistiu em insinuar:
— João é até considerado um tanto quanto gnóstico, se quer saber... — riu. — Tanto ele quanto Paulo.
— E qual a razão?
— É que os dois se utilizam de conhecimentos e termos gnósticos, como a "pneuma", por exemplo, palavra grega designativa de espírito e respiração, como na passagem em que João diz: "O vento assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.¹"
— Então João é gnóstico?
— Não que seja, parece, mas a Igreja sempre negou isso. Há argumentos a favor e contra, é uma longa discussão. Um bom exemplo é a questão do "Logos".
— Logos?
Nora poderia ficar horas ali:
— O "Logos ou a Palavra"... O "Verbo que estava com Deus e era Deus, fazendo-se carne e habitando entre nós"², como descrito no início do evangelho joanino. A passagem tem levado muitos a pensar que João era gnóstico, pois vem ao encontro da ideia do eon enviado ao mundo pelo Criador, a fim de trazer a gnose. Mas a Igreja contesta. João, no fundo, teria combatido a ideia, quando afirma que Jesus teve um corpo de carne, contrário às correntes gnósticas, que diziam ter ele apenas um corpo aparente ou fluídico. João busca enfatizar que Jesus 'era Deus', parecendo eliminar a ideia do eon ('um deus'). Por tabela, a frase acaba sendo a base da doutrina da Santíssima Trindade."
— Santíssima Trindade? Javier pensa que "Q" tem o poder de destruí-la.
— Bobagem, são crenças seculares, muito enraizadas.
— Mas ele não pensa assim. Estaria disposto a matar, por isso?
Sentiram um arrepio.
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Bruno ainda buscava alguns minutos de acréscimo na adorável companhia:
— Sabe uma coisa que me ocorre? A preocupação em se saber exatamente quem disse ou como registrou, não seria secundária? Quero dizer, o mais importante não é o conteúdo, aquilo de positivo que uma mensagem passa?
— Concordo. "A forma não é nada, o pensamento é tudo"³. Mas não é só uma questão de "quem", há também o "quê" e o "porquê". Toda investigação tem a finalidade de extrair a essência, de tirar o verniz, de chegar na pedra bruta, no mineral não maquiado. Buscar a essência de uma mensagem é trazer à tona o que está implícito. Como dizia Jesus, para que a verdadeira luz realmente brilhe e não fique escondida, devemos colocar a candeia sobre o alqueire.⁴
— Posicionamento aparentemente louvável. Justifica a pesquisa?
— Claro! Todos os posicionamentos são louváveis, meu querido, desde que possuam um propósito no bem.
— Mesmo o inferno estando cheio de boas intenções? Ainda assim, quem é que está com a razão?
Ela respondeu com uma piscadela:
— Todos! Ou ninguém! Quem pode saber?
— Creio que Javier possa ter suas razões.
— Talvez, mas ele erra na forma.
— Talvez não no conteúdo...
E ficaram ambos admirando-se, enamorados, sem perceber que o atendente já segurava a comanda há alguns segundos, aguardando que um deles tomasse a iniciativa de pegá-la. E pagá-la!
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Notas:
¹ João, 3,8.
² João, 1,1-14: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. (...) E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós (...)."
³ Frase de Allan Kardec.
⁴ Mateus, 5,15: "Ninguém acende uma candeia e a coloca debaixo de um alqueire, mas no velador, e ilumina a todos os que estão na casa".
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