E
𝓔 Bruno estava cada vez mais envolvido pela história. Era impossível não mergulhar de cabeça, ansiando pelo próximo episódio. Diante da já conhecida pausa para respiração, o advogado quase exigiu: "Continue"!
— Ok!
"Acordei com alguém me chamando. Quando abri os olhos, era o Ti Belo:
"— Olavo! Olavo! Acorde.
"Tomei pé da situação com muito custo, a dor de cabeça era terrível e meus pulsos doíam:
"— O que houve tio? Que lugar é esse? Onde estou?
"— Num retiro.
"— Retiro? Que retiro?
"— Na beira da estrada, a que vai para Congonhas. Eu falei para você, teimoso, não sai debaixo de chuva.
"Somente aos poucos a memória foi voltando:
"— Sim, a cabana do homem da pinga... — sussurrei.
"— Homem da pinga? Do que você está falando?
"— Um sujeito que vi lá no alambique, comprando pinga com o Fábio. Saiu feito doido e quase me atropelou.
"Expliquei todo o acontecido, omitindo a história do manuscrito. Até que tivesse certeza absoluta de que não havia perigo, era melhor me precaver. Apenas falei que o homem me seguia há alguns dias e que me socorrera ali. O tio ouviu a tudo atentamente, mas muito desconfiado.
"— E onde está o sujeito? — perguntou.
"Nisso, um policial fardado entrou na cabana:
"— Delegado Belo, nenhuma dúvida, a árvore foi cortada com uma motosserra e isso deve ter sido ontem mesmo, ainda há bastante material no chão, resultado do corte.
"— Cortada? Não foi um raio que a derrubou? — perguntei.
"O policial respondeu:
"— Nenhuma possibilidade. Foi cortada.
"Ti Belo elucidou:
"— Desconfiamos de um assalto, Olavo. Cortaram a árvore de propósito. Limparam teu carro, se quer saber. Depois que você apagou, te amarraram e só não levaram o carro, porque estourou o radiador.
"Haviam me amarrado? Por isso meus pulsos doíam? Ou teria sido o impacto da batida, ao segurar o volante com força?
"— Mas como sabiam que eu ia passar aqui?
"— Pode haver cúmplices, quem sabe, afinal você diz que tinha alguém te vigiando.
"Então era isso? Um assalto? E toda aquela história de manuscrito e documento "Q", tudo mentira?
"Tencionei levantar-me, mas ainda estava zonzo. Ti Belo providenciou um copo d'água e passados alguns minutos, consegui erguer-me. Só então que vi as condições da cama em que estivera apagado. De palha, com um lençol imundo. Olhei em volta e vi que a poeira reinava absoluta, exceto na cozinha. Corri os olhos e não vi o manuscrito. E seria óbvio: se meu tio o tivesse encontrado, já teria falado dele para mim. Teria eu imaginado coisas? Mas até que pudesse apurar com precisão a questão, deixaria prevalecer a versão do assalto, haja vista o aviso de que era melhor ninguém saber sobre o manuscrito.
"— Levaram tudo que estava no teu carro, inclusive sua carteira e documentos. É melhor irmos logo ligar para o banco e cancelar talão de cheques e cartão de crédito.
Um tratorista, que viera avisar que a estrada já estava liberada, foi interpelado por meu tio:
"— Sabe quem é o dono desse retiro?
"— Um homem de Conselheiro Lafaiete — disse. — Não sei o nome. Me falaram que ele comprou essa parte da antiga fazenda do seu Nogueira faz uns dois anos, mas nunca ninguém o viu por aqui.
"— E o pitbull? — perguntei. — No canil...
"O tratorista disse:
"— Não tem nenhum cachorro no canil. Está vazio."
Bruno massageou o couro cabeludo com a mão esquerda, pensativo:
— Bem que você disse que seria uma história difícil de acreditar... Mas o manuscrito acabou por retornar às tuas mãos, não é? Senão, não estaríamos aqui!
— Isso é certo.
— E como se deu?
Olavo Ravacini tomou fôlego:
— O carro teve que ir para o conserto e isso me obrigou a ficar vários dias no Esmeril. Acabei enviando uma procuração a São Paulo, para que cuidassem das coisas urgentes para mim. Nem roupas eu tinha. Dessa forma, precisando de novas vestimentas, meu tio me levou a Congonhas. E também tivemos que prestar depoimento na delegacia, sobre o ocorrido, além da necessidade do boletim de ocorrência, para acionar o seguro do automóvel.
"E foi num dos momentos em que estava sozinho, após sair do banco, que um adolescente me abordou..."
— Um adolescente?
— É. Me cutucou pelas costas e disse:
"— Moço, o senhor é o Seu Olavo?
"— Sou eu, sim.
"— Pediram para te entregar isso.
"E me passou uma sacola plástica, onde estava, adivinha o quê?"
— O manuscrito!
— Exatamente.
"O rapaz saiu correndo e desapareceu. Curiosamente, dali por diante me senti com uma obrigação. Minto! Com uma tarefa. Melhor, uma missão! Domingos Casqueira possuía uma ascendência sobre nós, acho que isso desenvolveu aquele sentimento em mim. Sua voz era portentosa, ainda que rouca. Ele era alto e encorpado. Sua presença fora mesmo impactante, muito embora eu pudesse ter-me impressionado por toda a situação circundante. Conversei com ele pouco mais de trinta minutos e em situação para lá de inusitada: à meia luz, tomando um café horrível, numa cabana isolada e açoitada por uma forte tempestade. Há que se considerar que isso potencializou minha impressão, devo reconhecer. Ele me roubou, é verdade, mas tudo parecia ter sido para despistar. Enquanto a polícia pensava num assalto, a verdadeira história sobre um arqueólogo, entregando-me um manuscrito, passaria por bebedeira, caso eu resolvesse contá-la, mas tive cabeça fria e entrei no jogo. E esse era o motivo de a mim escolher: eu saberia com quais cartas jogar.
"Foquei no principal. Ele nada havia dito sobre quem estava atrás dele. Precisava, portanto, ler o texto o mais rápido, pois tais dúvidas certamente se dissipariam. Segundo deduzi, ele não queria o conteúdo do manuscrito divulgado pela polícia de uma cidade pequena, mas sim em grande estilo e com holofotes nacionais, quiçá mundiais. Assim, confiara suas anotações às mãos de um jornalista que ganhara o prêmio Jabuti, que tal? E tudo para criar uma carapaça de proteção em torno de um achado importante. Naquele momento, imaginei que esse seria o objetivo."
— Mesmo assim, você demorou vinte anos para pensar em publicá-lo... Por quê?
— Não era algo tão simples. A história era tudo o que eu procurava, porém, como jornalista investigativo, eu precisava checar informações, levantar dados, ter material comprobatório das variadas informações, além de estender o texto por mais capítulos. Tudo isso demandou muito tempo e dinheiro e, anos depois, quando enfim eu já podia publicar, os negócios foram tão mal, que tive de fechar a editora. E fui fazer outra coisa da vida, adiando o projeto.
"A Editora Ravacini ficou inativa por anos. O país também atravessou grandes turbulências político-institucionais, principalmente de 2013 para cá, culminando na pandemia, mas agora penso em lançar finalmente o livro, inicialmente em formato e-book, cujo custo será bem menor do que uma publicação física, coisa que se tornou muito fácil, ultimamente."
— Mas, voltando a 2001, não mostrou o manuscrito a seu tio?
— Não, tendo em vista que o arqueólogo havia pedido sigilo (e movera mundos e fundos para despistar). Na oportunidade, deduzira que tudo havia sido mesmo um plano, o suposto assalto, etc., para tirar o foco do real objetivo: forçar a publicidade do material por alguém de peso: eu! Para justificar o assalto, drogou-me e assim sendo, se deixasse o manuscrito lá, meu tio o veria.
"Nessa versão, porém, seria necessário que Domingos tivesse sabido da minha saída do sítio, a fim de bloquear a estrada, mas como? Isso porque não havia nenhuma 'coincidência' no fato daquela árvore estar cortada e caída no caminho. Assim, logo imaginei um informante, alguém de dentro do alambique. E não teve como não pensar no Fábio. Cheguei a sondá-lo, mas não consegui muita coisa. O fato de eu ter escondido a história do tio, impediu que eu desse uma prensa nele. Depois ele acabou indo embora da cidade e não tive mais contato."
— E por que o Domingos simplesmente não lhe enviou o manuscrito pelos Correios?
— Boa pergunta: por quê? Muito provavelmente ele temia ser morto, sem que houvesse tempo de me enviar o documento e quando soube que eu ia embora, viu-se obrigado a acelerar as coisas, mas ainda assim, fez tudo parecer um assalto, para não se expor. É provável também que precisasse me falar tudo pessoalmente, para que eu comprasse a ideia de manter o sigilo. São hipóteses, porém.
— Parecem coerentes...
— A questão foi o que descobri depois, meio sem querer...
— O quê? Tem mais?
— Estamos só no começo...
"Na manhã seguinte, Fábio não foi trabalhar e resolvi ajudar no alambique. Ao embrulhar uma garrafa de aguardente para um comprador, vi uma notícia no jornal matutino da região, abandonado por alguém na expedição..."
— E o que havia na notícia?
— Domingos Casqueira: havia se suicidado na noite anterior!
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