C
𝓒om esmero, Ravacini ajeitou alguns papéis sobre a mesa:
— Passada mais aquela tarde, eu retornei à vila logo pela manhã para fazer uma ligação para São Paulo. Naquela época já havia celulares, mas ali no Esmeril o sinal só chegou em 2015. Lembre-se que estávamos em 2001.
"De um orelhão que ficava em frente à escola, eu telefonei para a editora. Para minha surpresa, havia um assunto que ia requerer com urgência a minha presença no dia seguinte.
"Meu tio me esperava no carro:
"— E aí, tudo certo na editora?
"— Más notícias, tio. Vou ter que ir embora hoje à tarde.
"— Já? Você não disse que ficaria até sábado?
"— Disse, mas surgiu um problema.
"— Que pena! — E colocou a cabeça para fora, alertando-me: — Acho que você não devia ir hoje. Está armando uma chuva daquelas. Deixa para amanhã.
"— Se esperar chover, aí é que não passo naquela estrada.
"— Isso é verdade, mas conheço bem a região e a chuva está indo na direção de Congonhas, vai te pegar em cheio.
"Fomos a pé até o alto do morro da cruz. Olhando o horizonte, disse ao tio:
"— Não parece que vai chover para os lados de Congonhas.
"Havia um casal passando por uma trilha. Escutando a conversa, a mulher aproximou-se de nós e disse:
"— Moço, bem se vê que não é daqui. Moro toda vida no Esmeril. Vai chover e muito. O delegado Belo tem razão.
"O marido desdenhou da esposa:
"— Que chuva, que nada, mulher! Vai chover não!
"— Vai sim — insistiu ela.
"O marido então apostou:
"— Se chover, eu bebo a água toda dessa chuva!
"Rimos. Mais tarde, quase iniciando a noite, eu arrumei as malas e resolvi arriscar. Ti Belo tentou me dissuadir, mas não houve jeito, eu estava resoluto:
"— Vou embora e pronto!
"— Tá certo, teimoso. Toma aqui um litro de pinga, mas é para beber só em São Paulo, hem? Vê lá!
"Peguei o litro e o coloquei encaixado entre os bancos dianteiros, pois já tinha fechado a mala.
"— Até mais ver, tio. — E parti."
Bruno passou a mão na testa, pensativo, pousando a destra sobre os lábios:
— E o tal que passava com a mulher no morro? Teve que beber toda a água?
Ravacini sorriu:
— Sim e com certeza afogou-se nela. Desabou o mundo!
— Então a chuva te pegou...
— Se pegou? Pegou foi é pouco. Alcançou e com força!
"O vento chegou rodopiando, as folhas começaram a girar nos pastos e galhos secos voaram na minha direção. A noite chegou rápido e os primeiros pingos vieram após um raio que caiu a poucos metros de mim, com um trovão estrondoso. Acionei o borrifador e a primeira passada do limpador carreou poeira para o para-brisa, o que tampou minha visão. Perdi o controle e derrapei, raspando num barranco, logo sentindo um baque. A roda do carro tinha caído no vão de um mata-burro."
Bruno fez cara de desentendido, franzindo o cenho:
— E mata-burro vem a ser o quê?
— São esses estrados que os fazendeiros colocam sobre uma vala, nas divisas de propriedade.
Bruno teve um lampejo:
— Ah, sim, eu sei. De ferro, não?
— Na maioria das vezes, sim, mas também tem alguns de madeira. O que peguei era de concreto e possuía um vão no meio.
— Servem para quê?
— Para não ter que colocar porteiras nas divisas. Os carros passam livre, mas os bois não conseguem mudar de pasto.
"Bem, em maior velocidade eu teria passado direto, pois o carro era uma espécie de jipe, alto e com roda larga, novinho em folha, mas com a derrapada, o pneu entrou no vão. Por sorte, o veículo tinha tração traseira e aí eu engatei a ré e consegui sair. Parado na estrada, com o vidro já limpo, consegui seguir em frente, mas logo adiante a chuva apertou e, de repente, não mais que de repente, uma árvore atravessada no caminho! Colidi, o capô enfiando-se debaixo do tronco.
"Fiquei ali, travado. Tentei sair para trás, não consegui. Uma das rodas começou a patinar e acabou fazendo uma sulco na terra. Acabei atolado."
— Disse que o carro era novo. Conjugou bem: era!
Ravacini riu:
— Sem dúvida. Quase o destruí e xinguei como nunca. Devia ter escutado o tio. E tive que beber eu mesmo toda a água daquela chuva.
"Mas estava um breu. Escuro e chovendo, meu coração acelerado. Sem pensar duas vezes, peguei o litro de pinga, abri e tomei um gole. Um segundo trago. E um terceiro... Foi quando escutei uma batida no vidro do passageiro."
Bruno aprumou-se na cadeira. Ravacini contava a história como se a revivesse e deveria ser um excelente escritor, pois a narrava dando-lhe a interpretação que só um excelente contista conseguiria.
— Batidas no vidro?
— Sim
— E quem era?
— Chovia e trovejava muito, eu não ouvia, nem enxergava nada. Os faróis acesos refletiam nas folhas da árvore caída, ofuscando-me, mas quando relampeou, vi um vulto parado ao lado do carro. Tomei um tremendo susto e logo senti a adrenalina chegar a todos os recônditos do meu ser. Acendi a luz do habitáculo. Ele insistiu, bateu mais uma vez. Sem quase me mexer, uma das mãos pousada sobre o apoio de braço da porta, virei a chave na ignição e desci o vidro até a metade. O homem vestia uma capa de chuva e portava uma lanterna, apontada para o chão. Mal podia ver seu rosto, mas o ouvi quase a gritar:
"— Está em maus lençóis, hem, doutor? É melhor descer. O carro não vai sair daqui. Só com uma junta de bois ou trator. E ainda tem que tirar a árvore. Um raio derrubou ela, não faz meia hora.
"Tentei travar um diálogo:
"— Mas vou deixar o carro atravessado na estrada? E se vier um caminhão?
"Ele respondeu:
"— Com esse tronco aí ninguém vai conseguir passar. Esquece, só amanhã. Vem comigo, minha morada fica logo ali."
Ravacini encarou Bruno:
— Você iria?
Bruno fitou Ravacini diretamente nos olhos. Esfregou uma mão na outra, angustiado:
— Parece que não havia escolha, mas sair debaixo daquela chuva?
Ravacini esboçou um sorriso:
— Verdade... Só que o homem já tinha saído de casa preparado.
— Como assim?
— Eu já tinha subido o vidro, pois estava molhando tudo, mas ele pediu para baixar e então me passou pelo vão uma capa de chuva e um par de galochas.
— Sério?
— Sim...
"E explicou:
"— Lá de casa eu vi tudo. Já trouxe de prevenção.
"Eu só não compreendia como ele tinha conseguido ver, mas logo deduzi que devia ter sido após um raio, que clareou tudo, exatamente como eu próprio o vira da primeira vez. E daí ele já pegou capa e galochas, sabendo que o motorista iria precisar..."
— Faz sentido — refletiu Bruno. — E depois?
— Puxei o banco o máximo que deu para trás, calcei as botinas e vesti a capa. Saí.
"— O doutor desculpe, mas não usei a lanterna antes para não te assustar.
"— Te agradeço, mas assustou do mesmo jeito.
"— Ande devagar e me acompanhe. Muito cuidado.
"Eu mancava, numa possível entorse no tornozelo, na verdade um problema de ligamento que me acompanharia pelo resto da vida. Caminhando com dificuldade, uma placa na cerca preocupou-me. Dizia: 'Cuidado, cão bravo'.
"— E o cachorro? Está preso?
"— Está.
"— Que raça é?
"— Pitbull!, mas fique tranquilo, está preso no canil.
"— E por que está quieto?
"— Ele nunca late...
"— Mas certamente morde!
"— Na verdade, ele não morde, ele mata, mas só se sair de lá!
"Estremeci:
"— Espero que esteja bem preso.
"— Está, não se preocupe.
"Rapidamente atingimos um vaivém."
— Vaivém?
Ravacini comentou, jocoso:
— Sr. Bruno, nunca esteve na roça? Um vaivém é um vão... como posso explicar... em forma de "U". Deixa uma passagem na cerca para as pessoas, mas impede o gado de sair.
— Sei... — comentou Bruno, demonstrando que na verdade não tinha entendido lá muito bem. — Depois vejo na internet. Continue...
— Bem, passamos pelo vaivém e segui por um caminho cimentado estreito, enquanto ele ia pelo gramado, até atingirmos a casa.
"Disse:
"— O doutor me desculpe, aqui não é bem uma casa, é um retiro. O doutor sabe o que é um retiro?
"— Sei sim."
Bruno havia feito uma cara já conhecida, que fez Ravacini adiantar-se à pergunta:
— Um retiro? Sr. Bruno, Sr. Bruno... — ironizou. — Não estaria interessado em passar uma temporada no sítio do Ti Belo?
"Retiro é um galpão de ordenha, o pessoal usa para reunir as vacas e tirar leite. Mas o retiro dele era mais sofisticado, pois havia também uma pequena edificação, com quarto e sala, cozinha e banheiro.
"— Mais uma vez o doutor me desculpe, mas com a tempestade a luz acabou. Costuma demorar a voltar. Vou acender o lampião. Pode sentar, por favor.
"Na cozinha havia uma mesa com duas cadeiras, um fogão de quatro bocas a gás, bem surrado e uma pia de cimento muito mal feita, com tampo de mármore sintético. O homem esquentou um café e me serviu. Foi só então que a luz do lampião finalmente iluminou seu rosto. E sem o capuz, eu vi quem ele era..."
— Você o conhecia? — perguntou Bruno, atônito.
— Sim!
— E quem era?
— O homem que vinha me seguindo. Primeiro no Santuário, em Congonhas. Depois no sítio do meu tio.
— Aquele que parecia o centurião da capela dos Passos? E que depois estava comprando pinga?
— Ele mesmo!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro